O Professor José Luís Sanfelice, tem uma trajetória de vida em defesa e luta por uma sociedade diferente e por uma educação inclusiva, de qualidade, estatal e gratuita para todos. Sempre esteve na luta em defesa da democracia e da Universidade Pública. 

Mestre em Filosofia da Educação e Dr. em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Sanfelice é Livre Docente e Prof. Titular pela UNICAMP e pesquisador permanente do Grupo de Estudos e Pesquisas “HISTÓRIA SOCIEDADE e EDUCAÇÃO no Brasil -HISTEDBR-. Autor de diversos livros acadêmicos e do livro Movimento Estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64, publicado em 1986 e relançado em 2008 pela Alínea.

A pesquisa realizada pelo Professor José Luís Sanfelice sobre a UNE é fundamental para entendermos o período do Golpe de 1964 e a resistência desta importante organização estudantil no Brasil.

A entrevista abaixo foi concedida ao professor Eraldo Leme Batista doutor em Educação pela Unicamp para o site da FMG.

Eraldo-FMG: Professor Sanfelice, como surgiu a ideia de pesquisar sobre a UNE?
José Luís Sanfelice: Bem, eu ingressei na Universidade- atual PUC de Campinas- no ano de 1968, ano que se tornou mundialmente emblemático, dentre outras coisas pela rebelião e protestos dos jovens que fizeram balançar a sociedade capitalista ocidental e cristã. Ao mesmo tempo eu servia o serviço militar.  O mundo universitário e o serviço militar, no auge da ditadura do Movimento golpista de 1964, não se coadunavam. Vivi um momento difícil.  Um olho e presença em atividades do movimento estudantil e outro olho nas ameaças que os milicos faziam aos soldados, principalmente aos que fossem universitários, a priori chamados e considerados comunistas. Eu treinava como combater manifestações de rua e saia nas ditas manifestações na cidade de Campinas. A presença dos líderes estudantis vinculados à União Nacional dos Estudantes-UNE- nas Universidades era muito forte.  Apesar das divergências internas, as lideranças nos mantinham mobilizados, informados e nos alimentavam com material de estudos sobre a conjuntura e de divulgação. O ano de 1968, no Brasil, pode ser considerado aquele no qual seu deu o ápice do confronto entre os estudantes e a ditadura civil-militar.  Não somente os estudantes, mas em especial os estudantes e os operários foram os eleitos para sofrerem a repressão exemplar da ditadura. A morte do estudante Edson Luís Lima Souto, quando a polícia reprimia uma manifestação no Calabouço, engrossou as manifestações pelo país inteiro e, novas mortes aconteceram: Jorge Aprígio de Paula, Davi de Souza Neiva e Ivo Vieira. Houve muitos feridos e presos.  A Universidade de Brasília -UnB- foi invadida com grande aparato militar, novas dezenas de prisões de professores, alunos e a morte de Waldemar Alves da Silva. Na “Batalha da Rua Maria Antônia”, em São Paulo, confrontaram-se alunos da Filosofia da Universidade de São Paulo -USP-, sede da União Estadual dos Estudantes -UEE- e alunos do Mackenzie, núcleo de uma direita radical filiado ao Comando de Caça aos Comunistas -CCC-, à Frente Anticomunista -FAC-, e ao Movimento Anticomunista -MAC-.  Ocorreu a morte de José Guimarães. O desfecho do Ano de 1968 foi quando ocorreu a queda do XXX Congresso da UNE que seria realizado em Ibiúna -SP-. Quase mil estudantes presos e imensa repercussão nacional e mundial.  Nas Universidades uma sensação absurda de medo, com muitos colegas e amigos nas prisões. Estas vivências e outras nos anos seguintes, marcantes e que não derrotaram de imediato a UNE, se é que um dia da ditadura ela foi derrotada, mesmo na clandestinidade, foram ao longo de alguns anos me desafiando para que   um dia eu fizesse uma pesquisa extensa sobre aquela instituição histórica e presente desde os anos 30 na política e na educação brasileira.  A oportunidade surgiu quando fui realizar meu doutorado na PUC-SP.

Quais documentos foram analisados, estudados e que contribuíram para a pesquisa?
Para desenvolver o projeto de pesquisa de doutorado, fiz uma breve incursão na história da UNE desde os seus primórdios, utilizando-me de revisão da bibliografia disponível à época. Não era muita coisa, mas foi o suficiente para construir uma trajetória até chegar aos anos 60. Para os anos 60 e 70, período focado em maior profundidade e abrangência, passei a contemplar as análises, propostas e as orientações produzidas pela própria UNE e relacionadas ao movimento estudantil ou à vida política do Brasil. Amplo leque de documentos foi levantado: Cartas de Princípio, Convocatórias, Análises extensas da conjuntura e sobre o imperialismo, Boletins, Deliberações dos congressos da entidade e Planos de Ação. Material produzido por outras entidades estudantis filiadas à UNE também contribuiu para a análise. Visando a construção do contexto foi fundamental a incorporação de artigos de jornais e revistas.  No contraponto ao Movimento Estudantil -ME- se postou a legislação da ditadura civil-militar do Movimento golpista de 1964 e a sua incrível leitura daquele momento histórico. O antagonismo aflora por inteiro. Para não tomar o ME como um fenômeno autônomo da sociedade da época, foi necessário recorrer não só à História, mas também às Ciências Sociais.

Como deu-se o processo para a publicação do livro resultado da pesquisa?
Inicialmente a tese, Movimento Estudantil.  A UNE na resistência ao golpe de 1964, foi publicada em três artigos na revista Reflexão da PUC-Campinas, números 31,32 e 33 em 1985. No ano seguinte, com alguma relutância por conta dos resquícios sombrios da ditadura e da sua censura, a Cortez Editora & Editora Autores Associados decidiu bancar a edição.  Foi um processo normal de compra e venda de direitos autorais, por vinte anos, e nenhum problema decorreu daí em diante.

 

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Quais principais dificuldades encontradas na pesquisa? (se elas existiram)
Dificuldades encontradas para realizar a pesquisa?  As dificuldades históricas para se realizar a pesquisa no Brasil e naquele momento com o sistema de Pós-Graduação apenas dando seus passos iniciais.  O sistema não estava consolidando e a própria conceituação de pesquisa acadêmica era bastante indefinida. Éramos as primeiras turmas a fazer a titulação por aqueles caminhos criados em plena ditadura.  Difícil foi conciliar trabalho em tempo integral, como professor hora-aula em várias instituições, e atender as exigências da pós-graduação. Árduo ainda foi encontrar e selecionar as fontes de diferentes espécies. E no fim?  Construir um texto lógico, fundamentado e de alguma relevância, dentro dos meus próprios limites.

Quais questões encontradas na pesquisa que chamaram a atenção?
Foram muitas as questões surgidas ao longo da pesquisa que, nas condições em que a fiz, demorou cinco anos. Meu problema de fundo era saber, na história da UNE, como ela havia liderado o ME ao longo do tempo e, como se inseriu no cenário político nacional.  O destaque seria para os anos 60 e 70 do século XX, vividos por mim e que, agora, um pouco à distância, gostaria de compreender em profundidade. Um olhar de pesquisador e não de participante dos fatos. Foi preciso ir diferenciando várias UNEs: atrelada e subvencionada pela ditadura Vargas, nacional desenvolvimentista, populista, sob o domínio da hierarquia da Igreja Católica e genericamente à esquerda com a presença de muitas tendências no seu interior até os anos 70. Precisei entender que os estudantes não se constituíam em uma classe social. Então, por que aquele comportamento? Também foi de suma importância decifrar que o material teórico produzido pela UNE era de autoria dos  grupos de lideranças com maior preparo intelectual do que a maioria dos estudantes  e que nem tinha acesso a ele mas, eram participantes das grandes manifestações por um efeito cascata de mobilização e estimulados pelas ideais da rebeldia juvenil.

Comente sobre a importância dessa pesquisa para entendermos essa organização de estudantes universitários.
Creio que o valor da pesquisa se encontra na sua dimensão historiográfica pois registrou a existência de fontes de grande relevância para se entender um pouco melhor a história da própria instituição. Considero importante ter feito a análise da Instituição e sempre a relacionando com o contexto macro- econômico, político e social do Brasil.  Não foi um estudo da instituição em si mesma, mas da sua dinâmica no cotidiano dos fatos que lhe afetavam, bem como aos estudantes em geral. Registra-se então suas reações, intervenções e ações sejam teóricas ou práticas. É uma contribuição para a história da UNE e do ME que pode ser escrita ainda nos anos 80.  Anos depois muitas outras publicações vieram a acontecer e puderam se beneficiar de novos acervos de fontes.

Esse livro teve uma segunda edição, como foi o processo, foi solicitação do movimento estudantil? De estudantes universitários?
Sim.  O livro teve uma segunda edição em 2008 pela Editora Alínea de Campinas. Passados mais de 20 anos da primeira edição, os antigos editores disseram que “estas coisas de história não estavam mais vendendo”.  Sinal dos tempos. Os responsáveis pelo Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” -HISTEDBR-, sediado na Faculdade de Educação da UNICAMP, avaliaram que seria importante uma nova edição e me fizeram o convite. Assim, de fato aconteceu. Algumas observações são importantes: a segunda edição não traz a parte documental contida na primeira, por razões de custo; não fiz alterações no conteúdo, apenas correções pontuais, por considerar o livro datado. Caso fizesse alterações, deveriam decorrer de uma nova pesquisa e isso não foi feito; acrescentei novas notas informativas sobre produção vinculada ao tema e que eram posteriores ao livro; ampliei a bibliografia para consulta; produzi um novo Prefácio e um Posfácio onde narro a prisão, pela polícia, de um exemplar do livro numa loja fotocopiadora e um processo kafkiano daí decorrente. Era uma reação da Associação de Editores à cópia de livros, mesmo que esgotados.

Qual papel jogado pela UNE no período que antecedeu ao golpe militar?
No período que antecedeu o golpe civil-militar de 1964, a atuação da UNE foi intensa.  Algo que já vinha acontecendo desde o final dos anos 50 quando a entidade começou a abalar o controle que o Ministério da Educação e Cultura exercia sobre ela. Para exemplificar arrolo alguns dos seus posicionamentos: mobilização contra o aumento de preços e na defesa de um posicionamento adverso aos interesses das empresas estrangeiras e aos acordos militares do Brasil com os Estados Unidos; a realização do I Seminário Nacional de Reforma do Ensino em 1957; o engajamento nos debates por ocasião da Campanha de Defesa da Escola Pública e por conta da elaboração da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; o I Seminário Nacional de Reforma Universitária do qual resultou o expressivo documento “Declaração da Bahia”; a greve geral quando da renúncia do presidente Jânio Quadros e para integrar o centro de resistência legalista – a Rede da Legalidade- liderada pelo governador do Rio Grande do sul, Leonel Brizola; mobilização intensa para derrotar o golpismo do Presidencialismo, levado a plebiscito popular, e sob o qual João Goulart havia sido empossado; a incorporação da defesa das Reformas de Base de caráter nacionalista e, com destaque entre elas, a Reforma Universitária, considerada a luta específica dos estudantes; a UNE VOLANTE que percorreu o Brasil; a Greve do Um Terço pela democratização da administração universitária; a realização do II Seminário Nacional de Reforma Universitária, quando se produziu a “Carta do Paraná; o III Seminário Nacional de Reforma  Universitária reiterando a “Carta do Paraná”; a produção de documentos-estudo para subsidiar análises; as declarações didáticas contínuas de que era possível aproximar a luta dos estudantes com as lutas das classes trabalhadoras; tentativas sucessivas de fazer a interlocução com o “Povo brasileiro”  e a premunição analítica, presente em muitos textos, de que o imperialismo, o latifúndio e a burguesia nacional poderiam impor grande derrota a um possível reformismo. Foi o que aconteceu com o golpe de 31 de março de 1964. A UNE e os estudantes fizeram o seu papel de resistência dentro das condições e limites que lhes era possível. O castigo imediato veio: o prédio da sede da UNE no Rio de Janeiro foi incendiado de imediato e grande parte do acervo do Centro Popular de Cultura foi destruído para sempre.

Como a ditadura recém instalada procurou calar o movimento estudantil? Qual foi a reação dos estudantes?
Bem, já foi dito que a primeira manifestação de ódio aos estudantes foi queimar o prédio sede da UNE.  Na sequência houve a invasão da UnB com a demissão do seu reitor, Anísio Teixeira, e seu vice Almir de Castro. Zeferino Vaz foi nomeado reitor-interventor.  Professores foram demitidos sem investigação, sem processo e sem direito de defesa. Líderes da UNE retiraram-se do Brasil. O ministro da educação, Suplicy de Lacerda, deu início aos procedimentos para extinguir a UNE e todos os demais órgãos de representação estudantil. O presidente Castelo Branco, em visita à Universidade do Ceará, recomendou aos professores que não fizessem proselitismo com o objetivo de impor ideias ou ideologias e, aos estudantes, que não servissem de joguetes nas mãos dos que desejavam a subversão, segundo ele, falsos movimentos estudantis. No V Fórum Universitário, de iniciativa governamental, o ministro da educação disse que os comunistas bem sabiam que seria pela universidade que fariam surgir o Estado comunista. Como? Pela massificação do estudante e a omissão do professor. “Um desleixo e um crime”. “Continuamos ameaçados”. Novamente o presidente Castelo Branco discursou sobre a subversão presente no ME e propondo localizá-la e detê-la. Os comunistas eram os culpados por terem enganado os estudantes até então.

A primeira reação dos estudantes foi realizar uma reunião extraordinária do Conselho Nacional em junho de 1964, na sede da União Metropolitana dos Estudantes, no Calabouço (RJ). Foi instituída uma junta governativa para dirigir a UNE, com lideranças remanescentes das UEEs de Pernambuco, Paraná e Minas Gerais. Formou-se um colegiado com o desafio de fazer a UNE sobreviver e com três objetivos básicos: recuperar a sede da UNE na praia do Flamengo; realizar o Congresso Nacional dos Estudantes, e, derrubar o projeto Suplicy de extinção dos órgãos estudantis.

Quais as principais bandeiras do movimento estudantil entre 1964 e 1968? Existiam polêmicas em torno delas?
A lei conhecida por Suplicy de Lacerda acabou por ser aprovada e regulamentou toda a organização estudantil, agora submetida à fiscalização das instituições universitárias e aos órgãos oficiais. As manifestações de caráter político-partidário ficaram totalmente vedadas.  Interpretações, à época, afirmavam que ela visou a extinção do ME, sem autonomia e mero apêndice do Ministério da Educação. Contraditoriamente, foi a chama para reacender o ME que tinha muitas das suas entidades fechadas, líderes presos e aqueles que haviam saído do país. Em plebiscito nacional dos estudantes, a lei foi repudiada. A preocupação era a reorganização da UNE e o seu XXVII Congresso Nacional só aconteceu um ano depois do golpe e em situação muito adversa, face à repressão. A principal decisão foi a de boicotar a Lei Suplicy, não submetendo as entidades estudantis a ela e correndo os riscos das penalidades previstas como, por exemplo, a perda do ano letivo. Daí surgiram divergências entre o Partido Comunista Brasileiro e a Ação Popular (AP), a Política Operária (POLOP) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Os primeiros favoráveis a disputar eleições nos órgãos estudantis na forma da lei e os demais contrários. Os estudantes se dividiram e muitos, de posturas progressistas, ficaram nos Diretórios Acadêmicos Livres, mas de eficácia reduzida, pois fora das Universidades. Em Manifesto contundente a liderança da UNE denunciou as invasões das Universidades, o fechamento das entidades, as prisões de estudantes, operários, intelectuais e a prática da tortura.

 

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Qual a importância de 1968 no processo de resistência à ditadura?
Depois do Congresso da UNE realizado em Belo Horizonte, a divulgação do Plano de Ação, as greves e o Dia Nacional de Luta contra a Ditadura (1966), houve uma radicalização política no país considerável. O Ato Institucional n, 4, uma reforma constitucional arbitrária, o início da reforma universitária pelos governantes, cassação de direitos políticos, a Lei da censura sobre liberdade de manifestação e o Decreto que definiu os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social. A UNE estava legalmente extinta, e, lideranças da época, em depoimentos, afirmam que o importante era provar que ela continuava existindo mesmo que clandestina. Publicações de outras entidades estudantis reconheciam a representatividade da UNE e divulgavam o posicionamento dela. Por exemplo, a revista Revisão da FFCL da USP, publicou a Tese da UNE com o título: Seminário da União Nacional dos Estudantes sobre a infiltração imperialista no ensino brasileiro.  O documento faz uma apresentação teórico-conceitual sobre o que se entende por imperialismo, realiza uma análise do que é o imperialismo, denuncia a Aliança para o Progresso como instrumento de dominação ideológica, faz um histórico do capitalismo brasileiro, apresenta a visão da UNE sobre o Movimento de 64, identifica as estratégias mais recentes do imperialismo, aponta para a infiltração imperialista no ensino brasileiro e vê a reforma universitária em curso como decorrência do imperialismo -acordos MEC-USAID-. Finalmente, traça um Plano de Luta e um Programa Mínimo. No Plano de Luta há uma sugestiva análise da posição social do estudante universitário brasileiro e do movimento estudantil pós-64. Explicita que através da agitação, da denúncia e da resistência à ditadura, o ME cumpria o seu papel naquele momento. Mas, era necessário a aliança operário-estudantil-camponesa. Os estudantes não tinham condições de liderar sozinhos o processo.  E, para além da luta específica dos estudantes, proclama: ” O Movimento Estudantil brasileiro liderado pela União Nacional dos Estudantes -UNE- assume hoje o compromisso de lutar pela libertação do país incorporando-se às fileiras do povo brasileiro, fazendo sua a perspectiva das classes trabalhadoras”.

A politização crescente do ME fez com que ele passasse a ser motivo de preocupação cada vez maior nos círculos militares de Brasília, mas ainda assim a UNE conseguiu realizar o seu XXIX Congresso, novamente clandestino, em Valinhos (SP). A repressão chegou tarde ao local, um convento que foi depredado e os padres presos.  Do Congresso resultou uma Carta Política que reiterava e aprofundava vários aspectos da Tese da UNE.  Pontos cruciais a serem superados eram os que diziam respeito ao posicionamento do ME na luta geral anti-imperialista, anti-capitalista, em união com os operários e camponeses, e as lutas específicas dos estudantes. As várias tendências presentes na UNE divergiam e isso trazia algumas dificuldades para a mobilização. Travava-se uma luta pequeno-burguesa ou uma luta revolucionária?

No ano de 1968, aconteceu o ápice do confronto entre estudantes e as forças de repressão. A morte do estudante Luís Lima Souto, no Calabouço, proporcionou a organização de manifestações em diversos pontos do país. Houve reação da imprensa escrita e falada.  A Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro divulgou manifesto protestando contra a violência quando da realização da missa de sétimo dia do estudante morto. A mobilização crescia para além do ME. E as passeatas levaram milhares de pessoas às ruas, nas grandes cidades com mais 100 mil participantes. As “Passeatas dos cem mil” pareciam apontar para uma luz de esperança. Muitos prédios universitários foram ocupados por estudantes e professores que realizavam cursos alternativos ao currículo. O governo, por sua vez, avançou no preparo de medidas mais duras e proibindo todas as manifestações. Mais líderes estudantis foram presos e o Conselho de Segurança Nacional recomendou que o XXX Congresso da UNE não ocorresse sob nenhuma hipótese. O país tomou conhecimento do caso Parasar. Um plano dos oficiais da Aeronáutica para empregar sua unidade de busca e salvamento da FAB em missões de assassinato das principais lideranças estudantis, dos políticos da oposição e dos cassados considerados irrecuperáveis. As vítimas seriam sequestradas e lançadas ao mar.  Os militares que denunciaram o Plano foram presos ou perderam seus cargos. Os estudantes se dividiram em inúmeros grupos e a questão de fundo continuava: luta política ou reivindicatória específica? Vamos continuar nas ruas ou vamos voltar para dentro das universidades? Muitas acusações mútuas de divisionismo foram surgindo.  Chegou-se a falar que existiam duas UNEs. Quebrou-se a unidade e a hegemonia antes existente. O reflexo direto foi a desorganização nacional do ME e o desastre do XXX Congresso, realizado em Ibiúna (SP), quando mais de 800 estudantes foram presos.Daí em diante viriam os anos mais negros da Ditadura, com o AI 5, o crescimento sucessivo dos mártires estudantes e operários. Começa a história da UNE nas catacumbas.

Diante do atual quadro político do país, onde a educação e movimento estudantil sofre perseguição, demonização e ataques com objetivo de desmoralização, qual a importância desse livro?
Como já disse antes, o livro é datado no momento e nas condições em que foi feito.  Entendo que sua importância maior é o registro histórico. Aquelas lutas estudantis não podem servir de catecismo para os dias de hoje. Em cinquenta anos tudo mudou. Mas há semelhanças que podem ser analisadas e, no caso da resistência e da luta, algo se aprende com a história.  Os estudantes, quando se organizam na perspectiva das causas específicas, podem ser fortes. A ditadura precisou calar o ME para impor a Reforma Universitária de 1968 que lhe interessava e aos interesses que o governo representava. Veja-se o exemplo recente do movimento “Ocupa” que levou centenas de escolas a serem tomadas por estudantes, com o apoio de professores, pais e comunidade.  Como os estudantes não constituem uma classe social e em geral ainda não estão inseridos no sistema produtivo, não dispõem de forças para resistir nesse tipo de confronto. Podem apoiar e se unirem aos anseios das classes trabalhadoras.  A UNE dos anos 60 e 70 muitas vezes reconheceu que era alvo da repressão explícita por estar em destaque nacional, mas o inimigo real da ditadura era a classe trabalhadora, muito mais vitimada do que os estudantes do ME.  O capital precisava domar a classe trabalhadora a ferro e fogo. Quem estuda este lado da ditadura sabe bem do que estou falando. Nos dias de hoje, desde o golpe contra a presidente legitima e democraticamente eleita, só há retrocessos sob o governo Temer e o dito cujo que se encontra no momento lá na presidência. Retrocessos gerais e cada vez mais obscuros. O ME pode aprender com o desastre de 1968 e que nos serve de lição, que não basta ser de esquerda para combater o bom combate. É preciso ter a união das esquerdas e organização. Hoje, em época obscurantista e com sintomas novos de retrocessos, com as atuais bandeiras da direita e seus mecanismos de mobilização, é necessário um grande esforço para encarar as novas lutas anti-capital, anti-fascismos, anti-homofobias e anti tudo que significa trevas. Por isso o livro é um alerta: não ao esquecimento.  Não percamos a memória. As ditaduras matam, aprisionam, censuram, torturam e somem com as pessoas jamais encontradas. As ditaduras não são “brandas”. São ferozes contra todos os direitos humanos. Os jovens de hoje precisam saber disso. Como lá e hoje, os comunistas não são os culpados das aberrações históricas das elites brasileiras.

Considerações sobre o atual contexto atual e importância da UNE?
Comecei respondendo à entrevista, dizendo que me tornei universitário em 1968. Como vimos, o ano em que se deu o Ápice do confronto UNE x ditadura. Não tive condições de entender exatamente o que acontecia, embora sentisse na pele as consequências. Foi exatamente uma das razões para que me voltasse a pesquisar “aqueles tempos”.  O que é exatamente que tínhamos vivenciado? Com a UNE nas catacumbas, o ME ficou sem rumos durante bons tempos e sua reestruturação só viria dez anos depois. Os anos posteriores a 68 foram os mais terríveis da ditadura para toda a sociedade.  Participantes do ME aderiram à guerrilha urbana e rural. Um outro tema a ser melhor decifrado na ditadura. Em 1969, meu curso de Filosofia na PUC-Campinas foi detonado, por razões internas da instituição e pelo contexto do movimento estudantil. Houve grande demissão de docentes e, nós alunos, pedimos transferência para outras universidades. Fui para a PUC de São Paulo que já tinha feito sua devassa interna, mas que nos anos seguintes seria um campo importantíssimo da resistência acadêmica, intelectual, cultural e estudantil.  Lá fiz meu mestrado e doutorado. Acabei dando aula na instituição, até me transferir para a UNICAMP.

Tive a oportunidade de orientar vários trabalhos sobre o ME e de participar de inúmeras bancas de mestrado e doutorado que trataram do tema. Aprendi, com os trabalhos analisados, a especificidade do ME em muitos estados e localidades, por conta das organizações locais e da repressão específica. Também vi a necessidade de se focar a relevância do ME secundarista, em muitos lugares, o mais relevante. O ME nunca deixou de existir, mesmo com a UNE clandestina. Após a reestruturação da UNE, a sua história já é longa e necessita que se façam novas pesquisas para melhor entendê-la nas configurações políticas e sociais que a sociedade brasileira adquiriu. No momento, não lhe faltariam razões para se posicionar contra os atuais descalabros do governo em exercício.  A luta específica dos estudantes poderia ser um grande gancho para as lutas gerais.

Com os atuais assédios criminosos que a educação vem sofrendo por parte do atual governo, o corte de verbas e o movimento “Escola sem partido” são questões a serem combatidas de frente. O desmonte do MEC, o ataque sistemático às Universidades Públicas e em prol da privatização não podem passar em branco. A militarização das escolas municipais e estaduais é também um desvio gravíssimo. A reforma do ensino médio, o ataque às ciências humanas, o abandono do Plano Nacional de Educação e a censura de livros são posturas terroristas contra os avanços obtidos após a Constituição de 1988. 

Felizmente a sociedade não está inerte. A UNE, juntamente com outras entidades estudantis, associações docentes e centrais sindicais deram início a grandes manifestações em defesa da educação e contra o projeto de lei da reforma da previdência. Os dias 15 e 30 de maio de 2019 entrarão também para a história.

LIVRO
Movimento Estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 1964

SINOPSE
O livro atenta principalmente para a UNE perante o Movimento de 1964. Mostra seus momentos de reação, de radicalização e de confrontação com o autoritarismo instituído. De um lado, predomina ao longo das páginas do estudo a resistência teórica e prática ao Golpe de Estado de 1964. De outro, estabelecem-se os contornos da consciência social dos estudantes, presentes na UNE.

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