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A conferência de David Harvey em São Paulo, nesta terça, abriu o Seminário Cidades Rebeldes com uma dedicatória ao pensamento de Karl Marx e sua contribuição para o debate sobre a urbanização. O geógrafo britânico contou como o pensamento marxista se torna uma influência fundamental em suas reflexões, a partir de sua chegada em 1968 a Baltimore, cidade dos Estados Unidos, em que ocorriam violentos distúrbios raciais que marcaram o movimento pelos direitos civis no país, a partir do assassinato de Martin Luther King.

Acompanhado do jornalista Flavio Aguiar, do autor do projeto do Passe Livre, o engenheiro Lúcio Gregori, e da geógrafa Amelia Damiani, Harvey apontou para sua perplexidade e tentativa de entender as características que apontam para a continuidade dos recentes protestos raciais na mesma cidade americana, agora que os EUA contam com um presidente negro e uma poderosa burguesia negra. Agora, munido do instrumental valioso de O Capital, é possível superar a frustração analítica daqueles primeiros anos de pesquisa, segundo ele.

“Os aspectos importantes para a urbanização [em O Capital] são os menos comentados na literatura, como a análise da questão financeira, o tema da propriedade da terra, o aluguel e a organização espacial”, diz Harvey, acrescentando que, na época em que escreveu, não havia nada sobre o assunto. Foi assim que começaram seus estudos sobre a crise urbana nos EUA, nos anos 1970, a partir de uma perspectiva que não se restringia apenas ao ponto de vista da “working class”, a classe operária, o que gerou muita rejeição do marxismo acadêmico da época. Foi esse ponto de vista original que acabou tornando-o uma referencia nos estudos da função da urbanização para o crescimento do capitalismo.

Habitação e crise financeira
Nos últimos trinta anos, de acordo com ele, houve uma mudança muito grande na urbanização. “Estamos vivendo, agora, uma relação muito simbiótica entre urbanização e acumulação de capital”, afirmou. Basta observar como a profunda crise capitalista atual está intimamente relacionada com o mercado imobiliário e, portanto, com a distribuição econômica e geoespacial das cidades. Foi com a revelação súbita das armadilhas do crédito imobiliário e da ocultação dos mecanismos financeiros dos bancos que se desencadeou uma quebra sistêmica de bancos nos países desenvolvidos.

O paradoxo dessa crise, segundo Harvey, é que o capital fictício leva à crise por causa da urbanização excessiva, mas também leva a sair da crise pelos mesmos mecanismos. Ele lembrou que a urbanização da China, com a imigração estimulada do campo para as cidades, levou à recuperação do capital naquele país. “Muitos países que saíram da crise de 2007 e 2008, conseguiram isso por comercializar com a China”.

Ele continua citando exemplos de como a questão urbana se tornou uma chave para o capitalismo financeirizado dos últimos trinta anos. As cidades se tornaram meio para que o capital excedente, estagnado nos fundos bancários, possa investir. “As cidades não são mais organizadas para que as pessoas possam viver com qualidade de vida, mas para que o capital possa produzir o maior lucro.”

“Temos ruas inteiras de Londres sem ninguém morando, pela pura questão do investimento, mesmo com problemas habitacionais graves atingindo as populações mais pobres”, citou. O bem estar da população geral não esta sendo pensado pelos governos. “O descontentamento com a vida urbana vira uma pandemia no mundo inteiro”, diz ele sobre as manifestações juvenis que tomaram o mundo na última década. As qualidades da urbanização tornam se um problema para a população em geral.

Harvey apontou para a necessidade de articular a fragmentação das demandas desses protestos em torno de um conceito de cidade alternativa com uma base mais igualitária. A noção de “direito à cidade” é frequentemente esvaziado pelos ricos que também se apropriam dele. Ele citou a recente eleição dos prefeitos de Barcelona e Madrid, a partir de referências esquerdistas do Podemos e dos Indignados, como um importante sinal dessa busca. “Isso que deve ser tomado como dinâmica da luta de classes”, afirmou ele, ao encerrar sua introdução ao tema.

Alienação e fascismo
A partir dos comentários de Lúcio Gregori, sobre a mercantilização dos serviços públicos, tornando-os produtos, como o caso do transporte coletivo, Harvey apontou para seus estudos sobre a noção de cidade como um lugar em que as pessoas deixam de estar juntas, e passam a estar distribuídas no isolamento de subúrbios fechados.

“As classes altas, por exemplo, estão excluídas da vida urbana de tal forma, que não se sabe sequer onde estão. Acho extremamente alienante esse processo urbanizador”, disse ele, citando pesquisas que revelam que o cidadão norte-americano odeia se deslocar para seus trabalhos. Gregori comentou esse aspecto ao lembrar que a imobilidade urbana tem um papel importante nesse processo alienante. Lembrou que as elites se deslocam de helicóptero, afastando-se de qualquer noção de realidade social. Harvey, por sua vez, contou que, nos EUA, há casos de comunidades religiosas fundamentalistas organizadas em torno de condomínios.

“Alguns incidentes urbanos, nesses últimos 15 anos, foram sobre essa alienação na cidade”, avaliou o britânico. Ele lembrou que Marx já dizia que “o dinheiro destrói a comunidade e depois se torna a comunidade”, de modo que nos tornamos o dinheiro e não importamos mais, “mas o dinheiro sim”.
Ele contou de seus alunos, que, embora não tenham experiência com empregos, portanto, com a luta de classes clássica, mas têm experiência de luta contra as empresas que dominam os serviços de cartões de crédito, bancos, telefonia, e percebem claramente a luta entre despossuídos e espoliadores. “Muitas análises marxistas focam na questão da produção, mas deixam de pensar no que o capital toma do trabalhador para pagar pelos serviços. Nos tempos de Marx, isso era muito pouco, mas agora é uma grande parte”.

Observando as manifestações na Turquia, em defesa de um parque público, ele alertou para o avanço da militarização da repressão a manifestações, como também nos Estados Unidos. Por outro lado, a partir da ação coletiva inédita ocorrida nesses últimos anos, essas populações urbanas alienadas se apercebem de que a vida urbana pode ser diferente. “Houve uma mudança de mentalidade coletiva quando aquelas pessoas tiveram que se organizar de maneira autônoma em acampamentos para subsistir e enfrentar a violência policial. Houve a revelação de que é possível viver de um modo diferente na cidade”, afirmou.

Em 2013, o ineditismo daqueles protestos levou-o a refletir para onde aquele processo poderia se conduzir. “Se essas populações alienadas não podem ir numa direção, vão para outra”, declarou, referindo-se às encruzilhadas à direita ou à esquerda. “Se a Grécia falhar –e a Europa vai fazê-la falhar –, a alternativa é o fascismo, como já se observa na Hungria”, alertou.

Frente a questionamentos da plateia sobre os destinos das manifestações de 2013, e a dificuldade de unificar centros e periferias em torno de uma pauta, a professora Amélia sinalizou para uma perspectiva ao contar que participou das mobilizações contra a ditadura nos anos 1970, que tinham raiz no movimento sindical, nas pastorais de teologia da libertação e associações de bairro. “Não eram mobilizações autônomas. É importante notar que a crise urbana está imersa na crise do capital e do trabalho”, analisou ela, ao sugerir a atenção da esquerda histórica para estes aspectos passíveis de ruptura com a alienação. A

Amélia também comentou a pergunta sobre prioridades dos governos de esquerda para democratizar o direito à cidade, quando muitas vezes estão rendidos ao capital financeiro. “Se esses governos não chegaram ao poder a partir de fundamentos revolucionários, que também não são sua sustentação, penso que está na hora de questionar esses fundamentos revolucionários”, sugeriu ela. Gregori, por sua vez, lembrou que o Brasil não tem mecanismos de democracia direta e lamentou a total ausência de regulamentação do monopólio de mídia, comentando o nível de alienação expressa da população manifestante.

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