Está nas telas de algumas salas de cinema o documentário “Jorge Mautner – o filho do holocausto”, dirigido por Pedro Bial e Heitor D’Alincourt. Fui ver o filme, saí do cinema com a alma encantada com a alma desse artista, impregnada de cultura brasileira. Fui conversar com o Jorge Mautner, no dia seguinte. Saí de sua presença, após mais de uma hora de conversa, com a certeza: a cultura brasileira tem uma riqueza imensa, que precisa ser resgatada, espalhada, espalhafatada, vozeada. Jorge Mautner faz exatamente isso.
No mesmo dia à noite, houve um colóquio sobre o documentário no teatro do Centro de Cultura Judaica em São Paulo. No palco, Jorge Mautner, Carlos Rennó e José Miguel Wisnik, parceiros de música, de pensamento, de amor à cultura do Brasil. Na plateia, mais de 200 pessoas que tiveram o privilégio de assistir à perfomance poético-literária-musical desses três grandes artistas.
Mas o mote do encontro era a vida e a obra de Mautner. Ele subiu ao palco, sentou-se na poltrona, microfone na mão, começou a dizer a cultura brasileira. Porque Jorge Mautner não fala simplesmente. Se a pessoa espera um discurso linear, mecânico, com começo, meio e fim e sem dificuldades de compreender o que fala o poeta, esqueça. A mente dele parece funcionar de forma quântica – para usar uma expressão que ele gosta. As palavras vão vindo, em formas ondeadas, a poesia vai saindo, as frases ora se interrompem diante de outra frase que será, ou não, interrompida, mas aquela lá, que ficou sem final, irá retornar ao longo do discurso do artista. Nosso esforço é, em primeiro lugar, esquecer o discurso comum, a fala linear; em segundo, acompanhar as ondas do cérebro dele, com muito mais necessidade de foco no que ele diz, porque a compreensão do que ele diz virá ao final. Com certeza! José Miguel Wisnik disse, numa referência ao filme, “deixa o profeta falar!”
Jorge Mautner é comunista-artista ou artista-comunista. Esses títulos se fundem e se confundem em sua vida e em seu discurso. No começo de seus vinte minutos de fala inicial, ele citou José Bonifácio, o nosso “patriarca da independência”, um dos primeiros brasileiros a valorizar a nossa mistura de sangue, a nossa mestiçagem como nossa maior riqueza social e cultural, que cria o amálgama que nos une, todos os brasileiros. Mautner enfatizou muitas vezes a generosidade que faz parte da vida do nosso povo, povo hospitaleiro e receptivo aos estrangeiros, desde os tempos em que éramos todos índios e chegaram a estas terras os primeiros brancos europeus. E citou o padre Antonio Vieira que dizia que nós somos capazes de “ir além da terra, além do mar”.
“Nós nos reunimos aos milhões, disse ele, em nossas ruas no carnaval. Quase nada de grave acontece”. E acrescentou: “Desde os tempos dos índios tupis-guaranis, os brancos vinham em busca desta terra-sem-males. A generosidade do nosso povo é nosso maior tesouro, e é o que eu pretendo revelar o tempo todo”. Ufanismo? Será? Ele ia falando essas coisas para uma plateia feita em sua maior parte pela comunidade judaica, habitante de uma cidade como São Paulo onde uma elite historicamente conservadora sempre teve seus olhos e ouvidos voltados para o continente branco europeu. Para esta plateia, ele falou que a miscigenação do povo brasileiro é o que faz riqueza e nossa generosidade com todos. Direitos humanos todos querem, completou.
Mautner lembrou que Gilberto Gil, quando ainda era ministro, em uma de suas visitas oficiais aos EUA, a certa altura entoou a letra da música que ele fez em parceria com Jorge Mautner, “Outros viram”. Vale a pena publicar aqui um trecho dessa composição:
“O que Walt Withman viu
Maiakovski viu
Outros viram também
Que a humanidade vem
Renascer no Brasil!
(…)
Maiakovski ouviu
A sereia do mar
Lhe falar de um gentio
De um povo mais feliz
Que habita esse lugar!”
Lá pelas tantas, Jorge Mautner diz mais: “A arte, para mim, é para transformar o mundo. Sempre!”
Sobre o filme “Jorge Mautner – o filho do holocausto”, ele fez um breve resumo dizendo que lá está contada não só a sua vida, mas a sua arte e a sua militância política “desde a década de 1950”. Filho de pais estrangeiros (seu pai era austríaco e sua mãe croata), ele nasceu no Brasil. Sua mãe estava no oitavo mês de gravidez quando eles tiveram que fugir da Europa por causa da perseguição nazista aos judeus (seu pai era judeu, sua mãe católica). Até o sete anos de idade, Jorge Mautner teve uma babá negra, filha de santo no candomblé, que lhe deu todo o carinho e com quem ele aprendeu as primeiras lições de vida. “Um dia, ele conta, Lúcia disse para mim: ‘meu filho, seus pais vieram de um país onde tem muita gente má. Mas pode ficar tranquilo que aqui a gente gosta de você e nós vamos lhe tratar bem, viu?’” Tempos depois, nos jardins do Palácio do Catete onde Lúcia levava o menino para brincar, o próprio presidente Getúlio Vargas se aproximou dele e puxou conversa. Perguntou de onde ele era. Jorge Mautner respondeu: “Eu sou brasileiro, mas meus pais, coitadinhos, eles são estrangeiros”…
No teatro da Cultura Judaica, ele falou um pouco também sobre os períodos difíceis da ditadura militar, que o perseguiu desde os primeiros momentos. Jorge Mautner teve que se exilar duas vezes do Brasil, uma na Inglaterra onde conheceu Caetano Velloso e Gilberto Gil, seus amigos até hoje. No começo da década de 1970, ele disse, falaram que a gente devia voltar ao Brasil para ajudar na resistência à ditadura. Eu voltei e fiz diversos shows, em apoio ao movimento de redemocratização que se intensificou – ele enfatiza – “na minha opinião, quando a ditadura assassinou Vladimir Herzog”, fato que “mexeu com todo o Brasil e despertou mutirões de solidariedade” em todo lado. Jorge Mautner já era comunista, desde o final da década de 1950, quando Mário Schenberg, o famoso físico brasileiro, aproximou o artista do marxismo.
José Miguel Wisnik, compositor, pianista, professor de literatura brasileira da USP, continuou no mesmo tom, relembrando trechos do documentário e afirmando que Jorge Mautner “é uma pessoa e uma multidão” ao mesmo tempo. Ele disse que o documentário é “belíssimo” e que “a gente sai com a alma leve do cinema”, porque é um filme também sobre a nossa cultura, sobre nossos artistas e sobre um homem que teve, e tem, um papel muito importante na vida cultural brasileira desde a década de 1950. Wisnik destacou que o Brasil é um dos únicos lugares “do mundo onde a poesia se une à música”. E Carlos Rennó acrescentou: “E isso tem como pioneiros dois poetas: Vinícius de Moraes e Jorge Mautner”.
Claro que Jorge Mautner não deixaria de falar de seu companheiro de vida e de música, Nelson Jacobina, a quem o filme é dedicado. Jacobina morreu de câncer no dia 31 de maio do ano passado. “Nelson Jacobina viveu ainda quatro anos quando foi detectado que o câncer já estava em metástase, diz ele. Para Jacobina a música era a sua própria vida, era a sua alegria. Em muitos momentos em que ele estava muito mal e sentia muitas dores eu lhe dizia para não ir fazer o show comigo, mas logo ele dava um jeito de melhorar, e quando subia no palco ele era outra pessoa! Participou intensamente junto comigo nestes últimos quatro anos de sua vida!”
Ao final, os três músicos cantaram juntos, três canções. Sem o violino de Mautner, sem outro instrumento, só suas vozes. Tudo se encaixou: a fala do profeta-poeta, as palavras boas de Wisnik e Rennó, a música, a arte, a cultura, o Brasil.
Ao final do colóquio, já num clima de poesia e comunhão, Jorge Mautner disse: “Neste universo, tudo é surpreendente. A cada mistério revelado, mil novos mistérios surgem”. Mas, completou, a renda do mundo tem que ser distribuída entre todos, a injustiça deve acabar. Pois o homem deve se lembrar que “o que acontece com um, afeta todos”.
Finalizou afirmando que hoje temos um grande desafio: “Fazer tudo de novo, e melhor ainda!”

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* Bacharel em Letras, artista plástica, ilustradora, escritora e pesquisadora de história da arte.