Emílio Moura: Nas ruas da Lapa

"Tinha relações cordiais com Drummond, mas nos víamos muito pouco. Só convivemos intensamente nesse congresso de Belo Horizonte. E ficamos camaradas. Tive boas relações com Manuel Bandeira, que era um homem encantador, uma pessoa sui generis. Agora, o meu amigo mesmo era Emílio Moura", confessa Antonio Candido. Em 2 de outubro de 1971, escrevendo a Drummond, o crítico dividirá lembranças comoventes do amigo em comum, morto no final de setembro daquele ano:

"Lembro dele falando a cada passo no Ca'los. Naquela saleta de trabalho da Secretaria, à sombra do busto de João Alphonsus, onde eu ia pegá-lo todas as tardes no fim do Expediente. Mas todas as manhãs ele ia me tirar da cama no hotel, todos os anos entre 1948 e 1951, quando eu frequentei Belo Horizonte. Contava histórias de vário tipo e ria muito das próprias anedotas, aliás engraçadíssimas. Mas falava com seriedade fervorosa dos palpites financeiros que dava aos primos de Dores e eles deixaram de aproveitar, perdendo ótimas oportunidades de enriquecimento…".

Quarenta anos após a morte de Emílio Moura, Antonio Candido consegue narrar uma das histórias mais reveladoras da alma do amigo. No lançamento das obras completas de Drummond e Manuel Bandeira, o editor José Olympio convidou Candido para participar de um almoço no Jockey Club do Rio de Janeiro. Sentou-se ao lado de Moura, o qual se dispôs a pega-lo no Hotel Serrador, na manhã seguinte, e leva-lo até o aeroporto (destino: São Paulo), pois viraria a noite em algum bar.

Dia rompendo, o poeta subiu devagar pela Lapa, interrogativo como seus poemas.

"Parece que eu já estive aqui, curioso… Não me lembro de ter vindo aqui, mas parece que já estive. Porque essas casas, esses jardins… Que sensação estranha!", especulava, enquanto seguia ao encontro de Antonio Candido.

Na chegada ao Hotel Serrador, a memória de andarilho destravou:

"Ah, já sei! Foi num livro de Machado de Assis!".

A história de uma máquina
(De uma carta a Manuel Bandeira, 6 de janeiro de 1955)

"Não surpreende menos o cabedal trazido a cada acréscimo, onde o coração do poeta surge sempre mais humano e mais depurado o seu instrumento. Quando supúnhamos que não poderia ir além, vemo-lo superar a humanidade e a pureza anteriormente reveladas", escreve Antonio Candido ao habitante de Pasárgada, "um homem encantador". O post-scriptum vai expor, com humor, um dos orgulhos do missivista:

"N.B. Esta máquina em que lhe escrevo é ilustre. Foi do Sérgio (Buarque de Holanda), e nela se escreveram Raízes do Brasil, Cobra de Vidro, Monções e outras coisas admiráveis. Herdei-a quando ele foi para a Itália, abandonando-a por uma qualquer Olivetti pelintra e aerodinâmica".

"Sérgio Buarque tinha uma velha máquina Royal, daquelas quadradas, grandes. Quando ele foi para a Itália (em 1953), com a família, comprou uma máquina moderna, portátil, e ia jogar aquela fora. Era uma máquina velha", descreve Antonio Candido. A história do presente inclui um diálogo de admirador:

"Se você quiser, eu dou a Royal pra você", disse Sérgio.

"Foi a máquina onde você escreveu Raízes do Brasil?", Candido interpelou.

"Foi".

"Então, eu quero!".

"Mandei reformar, limpar e trocar o teclado, porque estava meio apagado. Perfeita. Eu me servi desta máquina por muitos anos. Recebi no começo dos anos 50 e usei durante mais de 30 anos. Eu a tinha em nossa casa de Poços de Caldas. Morava um pouco em Minas, um pouco aqui. Em Poços de Caldas, onde tinha uma biblioteca, eu escrevia", detalha o crítico. Depois da morte de Sérgio Buarque de Holanda, em 1982, Candido doou a máquina à Unicamp para ser incorporada à biblioteca do ensaísta. Fez um aviso: "É a máquina em que ele escreveu Raízes do Brasil". E, acrescente-se, de onde nasceram outras obras-primas da crítica literária, no gabinete do segundo proprietário, numa casa mineira.

Uma dedicatória

De Vinicius de Moraes, num exemplar de "Ariana, a mulher":
"Para Antonio Candido, com a mão estendida para a amizade".

"Lindo, né?" – emociona-se, ainda hoje.

"Política da toupeira"

"Tenho como princípio não me manifestar a respeito de nada. É uma promessa que eu fiz aos meus 90 anos. Sair do mundo!", Antonio Candido explica ao repórter, em janeiro de 2008, com uma voz apressada e ligeiramente rascante. "Espero que o senhor chegue a essa idade, e verá que chega um momento em que a gente sente muito vivamente que as coisas que tinha a dizer, já disse. Hoje, só me pronuncio quando não tem outro jeito".

O professor puxa da memória uma frase do crítico francês Sainte-Beuve (1804-1869): "Devemos largar do mundo um pouco antes que o mundo nos largue". "É uma medida de prudência", Candido justifica, e logo enuncia a sua própria máxima, irônico: "Estou preferindo agora a política da toupeira: entrar no buraco e ficar lá dentro".

Alô, Candido

"Tenho pavor de incomodá-lo", confidencia a escritora Lygia Fagundes Telles, 88 anos, ex-mulher do ensaísta Paulo Emílio Salles Gomes, por décadas um dos amigos principais de Antonio Candido. Quando tencionava ligar para o crítico, a fim de um palmo de conversa, ouvia o brado de Paulo Emílio:

"Não atormenta o Candido!"

Houvesse impulso, ignorava o apelo e cometia um telefonema:

"Você pode falar um pouquinho só?", iniciava, rangendo uma porta imaginária.

Na morte de Paulo Emílio, em 1977, Lygia fixou a imagem do choro de Antonio Candido. "Ele tem uma força". Há meses, voltou a inflar a alma de estudante de Direito cujo conto foi premiado pelo crítico, nos anos 40, e enviou um exemplar de "A disciplina do amor", relançado pela Companhia das Letras. Um regalo silencioso, sem cobrar palavra – "Não espero resposta, nem preciso". Às vezes, ao pegar o telefone, retorna aquela voz: "Não atormenta o Candido!". Mas, indo adiante, ela engatilha outra vez a doce introdução:

"Candido, você pode falar um pouquinho?"

Aquele Oswald

A homenagem a Oswald de Andrade, na 9ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), fez o poeta Lêdo Ivo lembrar-se que, nos anos 60, o professor Antonio Candido lhe falara da dificuldade de convencer seus alunos da Universidade de São Paulo a estudarem a obra de Manuel Bandeira. Queriam Oswald. Agora, na Flip, Candido precisou devolver àquela alma exacerbada a justa atribuição de generosidade e de ausência de rancor.

Em 1954, no prefácio de "Um homem sem profissão", as memórias oswaldianas, o crítico já o qualificara como um "gordo Quixote procurando conformar a realidade ao sonho". Mas permaneceram as restrições à personalidade, agravadas pela briga com Mário de Andrade. A escritora Lygia Fagundes Telles preserva a lembrança da aura de libertino. "Conheci Oswald na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Eram só seis ou sete moças no meu grupo, no fim da Segunda Guerra. Oswald aparecia por lá, mas nós éramos do tempo das virgens. Éramos todas virgens e tínhamos pavor de Oswald, corríamos dele! Ele era desatrelado", Lygia brinca.

Atacado ferozmente após uma crítica negativa do romance "Marco Zero", Antonio Candido se aprofundou no estudo da obra de Oswald e tornou-se um dos seus mais próximos amigos, no final da vida. "Oswald se reconciliou com todas as pessoas com que ele brigou, menos o Mário de Andrade. Porque Oswald não tinha rancor. Ele ofendia as pessoas, e esquecia. Ficava impressionado porque as pessoas ficavam zangadas! Era um pouco infantil, sob esse ponto de vista", explica. Protagonista de um barraco com o provocador-mor do Modernismo, Lêdo Ivo concorda com a definição: "Eu voltaria a falar com Oswald se ele tivesse morrido mais tarde. Não deu tempo".

Na velha disputa dos expoentes do Concretismo por um quinhão da glória póstuma de Oswald de Andrade, sempre se esquece o estudo pioneiro (e, de longe, mais corajoso) de Antonio Candido, "Estouro e Libertação", publicado em "Brigada ligeira", ainda em vida do modernista. Quebrou o medo de reavaliar a obra do "gordo Quixote".

Aquele Mário

"O Mário de Andrade é um caso diferente", introduz Antonio Candido. O parentesco de sua mulher, Gilda de Mello e Souza, com o polígrafo morador da Rua Lopes Chaves, origina confusões de intimidade. Apesar das raízes familiares, não tiveram proximidade, apenas um curto período de benquerença intelectual. "Minha mulher é prima dele, mas tive muito pouco convívio com o Mário. Encontrei com ele várias vezes na Livraria Jaraguá. A mãe dele era tia-avó da minha mulher. E minha mulher morou lá muito tempo. Era estudante. Então, eu ia lá e encontrava vagamente o Mário. Mas nunca tive uma conversa pessoal aprofundada. Nunca. Eu me casei, ele morreu um ano e pouco depois", justifica.

"Nós tínhamos relações muito cordiais!", ressalva, para não transparecer distanciamento. "Ele me estimava muito. Estou contando que, como eu fui casado com uma prima dele, as pessoas pensam que eu tive muito convívio com ele. Não tive. Eu tive muito convívio com um inimigo dele, que era Oswald de Andrade. Do Oswald eu fui padrinho do filho, compadre, depois de nós termos brigado, de ele ter me chamado de 'mineiro malandro'. Acabou fazendo as pazes e foi um grande amigo. Ele me queria muito bem".

O esbanjador Oswald contrastava com o monástico Mário de Andrade, de finanças atrapalhadas. Antonio Candido testemunha: "Mário vivia apertado de dinheiro. Ele vivia de lições de piano. Depois da Semana de Arte Moderna, a maior parte das famílias não quis mais aquele maluco em casa. Ele era muito apertado. O Oswald, não. Terminou muito apertado depois que ele pôs fora uma fortuna. Mas estava hospedado sempre em um 'Palace'. Aqui e na Europa. O pai dele foi muito rico, dono de um bairro de São Paulo. Depois, ele perdeu tudo".

Nas memórias do bibliófilo Rubens Borba de Moraes (1899-1986), "Testemunha ocular (recordações)", livro publicado postumamente pela editora Briquet de Lemos, há um depoimento sobre a "mão aberta" de Mário. "Ganhava bem, mas gastava tudo em livros, em quadros, em objetos de arte e folclore. (…) Em bares e restaurantes era desses que puxam a carteira em primeiro lugar. Quando morou no Rio e viveu numa roda de jovens literatos e de boêmios, pagava as despesas. Queixou-se a mim, estava farto dessa exploração carioca e nortista de um paulista inexperiente", revela Rubens Borba.

Oswald vs. Mário

"A briga de Oswald e Mário é misteriosa. Ninguém saber por quê. Mário era Mário Moraes de Andrade. Um dia eu perguntei a Oswald por que eles tinham brigado. Ele me respondeu: 'Questão de Moraes'", sorri Lêdo Ivo do trocadilho. Borbulhavam ataques pessoais nas colunas jornalísticas. "No Rio, Oswald ficou dizendo que Mário era homossexual. Que Mário era mulato e tinha os beiços grandes. Então, eu falei: 'Mas, Oswald, você que é anarquista, uma pessoa tão libertária, com esses preconceitos burgueses?'", recorda-se o poeta alagoano.

"O Oswald dizia coisas desagradabilíssimas a respeito dele. Mas passou a vida querendo fazer as pazes", enfatiza Antonio Candido. "Oswald era muito volúvel e não tinha rancor. Mário era aquele paulista antigo: falou, falou, acabou".

Antonio Groucho Marx Candido

"Ele é um grande arremedador de pessoas. Sabe fazer imitações impagáveis. De todo o mundo: aluno, colega, professor, intelectual, político. Tem a veia, é uma coisa intuitiva", assegura a professora Walnice Nogueira Galvão, ex-assistente de Antonio Candido na USP.

Filha do crítico, a designer e editora Ana Luisa Escorel se reanima com o "temperamento privilegiado" do pai. "Além do constante bom humor, mantido intacto até hoje, possui recursos de equilíbrio emocional que lhe permitem enfrentar, com grande integri­dade e boa dose de sabedoria, as inevitáveis perdas que permeiam um trajeto longo como tem sido o dele. Com isso, para nós, filhas, netos e, agora, bisnetos, a convivência com ele traz uma experiência permanentemente renovada de tranquilidade e bem estar", acarinha.

Oswald de Andrade e Giuseppe Ungaretti são das suas boas imitações. Ele confirma o talento: "Eu tenho muita tendência histriônica! Sou um ator cômico fracassado".

A escrita elegante, em certo sentido comedida no recurso da galhofa, não reprimiu a defesa do senso de humor na literatura. Gosta do título de um artigo de Ronald de Carvalho: "O claro riso dos modernos". Imagem perfeita. Em 1992, no ensaio "Os dois Oswalds", Antonio Candido sustentou que "uma das grandes lições do nosso Modernismo foi papel profilático, regenerador e humanizador do humorismo". "Na literatura brasileira dos nossos dias há notória e lamentável decadência do humor, que agora só é cultivado pelos humoristas propriamente ditos, deixando de ser a brilhante senha que foi para tantos escritores avançados do período do entre as duas guerras", ponderou o admirador de Groucho Marx.

Numa homenagem ao ex-companheiro de "Clima", nos anos 1990, o crítico teatral Décio de Almeida Prado destacou-lhe a "pena da galhofa", referindo-se ao manifesto "O grouchismo" e ao espírito de molecagem. Em 1979, Antonio Candido enviou ao amigo uma biografia do ator Rodolfo Valentino (1895-1926), acompanhada de uma carta (póstuma) do "Sheik" do cinema mudo, num italiano de fazer salivar o cronista paulista Juó Bananère. Ao fim, assinava-se Rodolfo Alfonso Raffaello Piero Filiberto Guglielmi di Valentina D'Antonguolla, o nome completo de Valentino – e punha um PS: "Il Barone fu ferito, però migliora".

"Fora do tempo"

Aos 90 anos, Antonio Candido está na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, onde recebe o Troféu de Juca Pato de Intelectual do Ano de 2007, em 20 de agosto de 2008. "Uma das inteligências mais completas e influentes da cultura brasileira contemporânea", celebra a União Brasileira de Escritores (UBE). No auditório, a escritora Lygia Fagundes Telles, o bibliófilo José Mindlin, o tradutor e ensaísta Boris Schnaiderman, o presidente da Academia Brasileira de Letras, Cícero Sandroni, e os professores Davi Arrigucci Jr. e Fábio Konder Comparato.

Num tempo de camuflagens ideológicas, ele não atenua as antigas convicções socialistas, antes reafirma a militância esquerdista no Estado Novo. "Afinado com as tendências radicais do momento, assumi então posições socialistas que não abandonei mais e continuam a nortear as minhas convicções relativas à necessidade de transformar profundamente a nossa sociedade desigual e mutiladora", discursou.

Depois da cerimônia, agarra-se ao original do discurso, batido a máquina e acrescido de pequenas revisões manuais; logo parte para receber os cumprimentos numa sala lateral. Levanta-se somente para conversar com Mindlin e Schnaiderman. Por respeito aos mais velhos. Abraçado às folhas do discurso, abstêmio e cintado no paletó, avisa ao repórter: "Não dou mais entrevistas, nem leio obras novas. Estou fora do tempo".

Um gesto

A ensaísta Gilda de Mello e Souza (1919-2005), mulher de Antonio Candido, parece tomar as mãos de Fred Astaire e reproduzir na sintaxe a leveza dos passos dos musicais, num ensaio dedicado ao dançarino americano, em "A ideia e o figurado": "Fred Astaire é um dos poucos gênios artísticos do século XX e foi bom que não fosse bonito, como Robert Taylor, Clark Gable, Gary Cooper ou Tyrone Power, porque, sendo como era, manteve-se gesto, gesto puro, graça pura, arte pura, libertando-se dos cacoetes da mocidade para se tornar na dança um desenhista, um dançarino gráfico, puro arabesco sem cor".

"Gilda era uma pessoa muito inibida, escrevia pouco, mas o que ela escreveu, sou suspeito para falar, mas tudo que ela escreveu é obra-prima", gaba-se Antonio Candido, ao ser questionado sobre o fascínio da professora por Fred Astaire. "O ensaio é muito bonito como escrita, não é? Era uma mulher de raríssima, brilhantíssima inteligência. Uma pessoa encantadora". Abre-se, no rastro da admiração: "Foi a maior a amiga que eu tive na minha vida".

Antonio Candido, 93 anos

Depois da venda da casa em Poços de Caldas e da entrega de sua biblioteca particular à Unicamp (mais de 12 mil volumes), Antonio Candido convive apenas com os clássicos de sua predileção, na residência em São Paulo: Machado de Assis, Eça de Queiroz, Dostoievski, Tolstói, Marcel Proust, por aí. Nada mais escreve. "Só revejo prova de livro. É a vida comum de um aposentado". Para não soar eufêmico, reforça o autorretrato: "Sou um velho vadio".

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Fonte: Terra Magazine