Após dois auditórios lotados nos períodos da manhã e da tarde, a organização do Seminário Caminhos da Esquerda Diante do Golpe decidiu realizar o último debate no pátio do prédio da Faculdade de História. Cerca de quinhentas pessoas se amontoaram, na noite mais fria de maio, atentas e silenciosas para conseguir ouvir o que tinham a dizer representantes de partidos, sobre os próximos passos da conjuntura de crise política. O microfone praticamente não fazia diferença e exigia um esforço maior da audiência para acompanhar os raciocínios do vereador Toninho Véspoli (PSOL) e o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP).

Véspoli representou Ivan Valente, deputado do PSOL, enquanto outros representantes de partidos não puderam comparecer. Ainda assim, as análises foram ouvidas e deram margem para um debate acalorado em meio ao vento gélido que atravessava o vão central do prédio. 

A responsabilidade diante do retorno conservador

Orlando apontou na história do país o modus operandi dos consórcios golpistas, sempre formando uma aliança entre parlamento, judiciário, mídia e empresariado. “Após 31 anos de experiência democrática, estamos diante de um golpe que não é inédito, articulado entre mídia, Supremo Tribunal Federal, com grande apoio empresarial, que ratificam o golpe como se estivesse respaldado pela institucionalidade”, disse o deputado, mostrando que, desarticular esse tipo de consórcio não é simples.

“Este tipo de golpe não é um fenômeno brasileiro”, também ressaltou o parlamentar. O tipo de ataque golpista a governos em várias partes do mundo, segundo ele, faz parte de um projeto imperialista. Os ataques se dão, particularmente, contra governos que reivindicam projetos nacionais em conflito com os interesses imperialistas. Ele lembrou o caso do embaixador, representante dos EUA na Organização dos Estados Americanos (OEA), Michael Fitzpatrick, que ratificou o governo ilegítimo do Brasil, ao afirmar que não houve golpe, num indicativo da satisfação do Governo Obama com o resultado da crise política brasileira.

Para Orlando é importante analisar o que emerge desse golpe. Ele lembrou dos anos 1980 em diante, quando os setores mais conservadores da política governavam o Brasil com um violento projeto neoliberal, criminalizando os movimentos sociais. O massacre de sem terra em Eldorado de Carajás e a repressão ao movimento de petroleiros no Governo FHC foram lembrados como símbolos desse período. “Os movimentos sociais eram tratados a bala, uma realidade que vemos emergir desse golpe.”

Para ele, o desmonte do Governo Dilma por Temer, excluindo mulheres, jovens e negros das instâncias de poder, é fundamental para a implantação de um projeto conservador, ligado também a setores religiosos da política. “As mulheres simbolizam uma frente de luta tão importante nesse combate atual, assim como os jovens e negros que chegaram a universidade e lideram o combate ao desmonte da educação pública. As manifestações contra a homofobia se levantam para contestar a ordem que representa esse governo”, enumera Orlando a onda de lutas que se espalha pelo país.

“Há uma hegemonia conservadora que deve vir com esse governo ultraliberal na economia”, afirmou. Para ele, refletir sobre o papel do estado é refletir sobre valores progressistas, de como o orçamento público deve ser investido para beneficiar a população. Orlando volta a repetir que esse conservadorismo, inclusive na economia, avança em todo o mundo.

“A tarefa central é fazer a denúncia do golpe e, sobretudo, dos riscos para o país. Podemos perder, sim, as poucas conquistas que alcançamos”, alerta ele. Observando a movimentação do governo no Parlamento, ele antecipa que as reformas propostas na CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) não trarão nada de bom para os trabalhadores.

Orlando foi muito aplaudido ao prestar solidariedade aos manifestantes que protestavam contra Michel Temer nas proximidades de sua casa. “É uma vergonha o que a polícia do Alckmin fez com os trabalhadores no Alto de Pinheiros, enquanto os maloqueiros em frente da Fiesp [apoiadores do golpe] têm o apoio da polícia para bloquear a Avenida Paulista”. Orlando alerta para que os movimentos sociais não subestimem o aparato repressivo estruturado no estado brasileiro. É preciso estar atento à possibilidade da polícia estar monitorando quais serão as próximas ações de resistência ao golpe.

“Precisamos continuar acentuando o caráter ilegítimo desse governo”, sugeriu ele, acompanhado de gritos entusiasmados de “Fora Temer”. Em sua opinião, já no dia 17 de abril, com a votação do impeachment na Câmara já começou a “cair a ficha” da população para o que estava acontecendo. tos de “iais nedade aos manifestantes que protestavam contra Michel Temer nas proximidades de sâmara, . A consciência de que o novo governo nada mais é que o patrocinador da corrupção no Brasil, chefiado por Eduardo Cunha, que operou para impedir que as investigações continuem.

“A única chance que temos de derrotá-los é levantar o Brasil, pois seremos cobrados como geração”, disse Orlando, citando a luta de professores da USP que viveram uma repressão brutal, durante vinte anos, por combater o golpe de 64. “Atacar a luta popular será uma necessidade política para eles. Eles vão ter que calar e impedir esses movimentos unificados em torno do Fora Temer. Precisamos ecoar essa palavra unificadora”, disse ele, mencionando que ministros e parlamentares golpistas são impedidos de falar em público pelas manifestações populares que cobrem suas vozes com o Fora Temer.

Orlando, no entanto, afirma que não se deve ter a ilusão de que a maioria do “Fora Temer” seja favorável ao Governo Dilma, pois o acordo feito na eleição, não foi o que se praticou após a vitória eleitoral. “Parte do esforço para convencer alguns senadores a votar pelo retorno de Dilma é que a presidenta convoque antecipação de eleições. Tem que ter uma saída política para esse impasse!”, concluiu ele.

Combatentes do golpe, mas críticos ao Governo Dilma, os representantes do PSOL atacam a política de alianças e são reticentes com certas políticas sociais do governo, defendendo esses fatores como parte das causas da crise política irrompida e do enfraquecimento dos movimentos sociais.

Véspoli, portanto, considera nocivas as alianças “com setores espúrios” e uma ingenuidade dos setores hegemônicos da esquerda que acreditam numa conciliação de classes com a Fiesp. Para ele, a política de distribuição de rendas baseada no salário mínimo, levaram a um aquecimento do consumo, sem promover uma reforma estrutural que aprofundasse as conquistas. “Agora, vemos o grau de ferocidade da perda de direitos que esse golpe representa”, lamentou. Para ele, “a mobilização nas ruas mostra que rumo tomar”, ao rejeitar o governo golpista de Michel Temer.

A necessidade de uma reforma judiciária

O Brasil atravessa momento de falta de credibilidade institucional, com o Poder Judiciário atuando de maneira decisiva na criminalização de movimentos sociais, na perseguição de alguns partidos políticos e na violação de direitos. Esta é a avaliação de especialistas em Direito que participaram de debate da terça-feira (24) na Universidade de São Paulo (USP), como parte do Seminário “Caminhos de Esquerda diante do Golpe”. Na mesa da manhã, estavam Kenarik Boujikian, da Associação Juízes pela Democracia (AJD), o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Alysson Mascaro, e o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Rafael Valim. 

Embora tenham opiniões divergentes sobre soluções para os problemas das instituições brasileiras, é unanimidade entre os três que o modelo do Judiciário é antidemocrático e que a presidenta eleita Dilma Rousseff sofreu um golpe para ser afastada do Executivo. 

O debate começou com professor Alysson Mascaro, o mais crítico. Para ele, o universo jurídico, da forma como está consolidado no Brasil, não é democrático e, o próprio direito é golpe, assim como o Estado. “O que aconteceu com Dilma é um golpe a mais, um golpe exacerbado. Este momento é uma exacerbação do que acontece todo dia”, afirmou. 

Ao explicar por que o direito e o Estado são um golpe, Mascaro mencionou que batidas policiais em negros nas periferias, feitas somente por serem negros. Estes são “golpinhos”. “O problema é que passa no mesmo lugar um helicóptero cheio de cocaína, enquanto a polícia passa horas procurando por um pneu murcho em um carro com negros na periferia”. Segundo ele, o mesmo aconteceu com Dilma. Embora as chamadas pedaladas fiscais não sejam crime de responsabilidade, para o debatedor, passaram meses procurando algum problema em seu governo para acusá-la e dar um golpe. 

Mencionou que, desde 5 de outubro de 1988, a Constituição determina que cidadãos tenham acesso à saúde e à moradia, mas nem todos possuem, de fato. “Golpe em geral é parar preto. É acusar bicha que foi agredida na Paulista e dizer que ele deu em cima do agressor. É dizer para a mulher que reclamou de assédio no metrô ‘também, com esta calça, você não queria ser estruprada?’”, disse.

O professor falou também da função do direito para fazer “trabalho samaritano”, e citou as 35 mil pessoas que perderam suas moradias no Pinheirinho, em São José dos Campos. “São 35 mil pessoas sem teto pelas mãos do direito”, afirmou.  

Mascaro disse que seu argumento revela a hipocrisia que se esconde sob a legalidade e afirmou: “Dobro aposta das pessoas que se recusam a chamar este momento de golpe”.  Concluiu relatando ter uma grande desilusão quanto ao mundo jurídico. Para ele, a solução para o atual momento do país é que “o povo sufoque e coloque cada vez mais no escanteio do mundo os juristas”. 

Em seguida, falou Rafael Valim. O professor argumentou que, no Brasil, há cegueira inadmissível por parte das instituições: “Nossa institucionalidade não é fraca. Ela não existe”. Esta situação culminou em um “golpe com uma sofisticação que engana muitos incautos”. “O golpe que está sendo levado a cabo no Brasil tem verniz de legalidade”, justificou.  

Citou ainda aqueles que usam o argumento de que o impeachment está previsto nas regras democráticas do país e contestou: “Claro que impeachment está previsto na Constituição. Mas precisa verificar seu uso”. 

Para ele, é um equíovoco pensar que o Direito é neutro e que os responsáveis vão aplicá-lo segundo as regras do jogo democrático. A politização do Jucidiário e o protagonismo que ele adquire são problemáticos, afirmou o especialista. 

“Há momentos em que nos precisamos nos unir. Este é um momento em que a esquerda precisa se unir (…) Nos resta resistir, criticar, continuar peleando. Vamos em frente”, concluiu. 

Kenarik Boujikian afirmou que é importante, para além dos problemas das instituições, lembrar as 40 milhões de pessoas que saíram do Mapa da Fome. “Este é o grande diferencial. Para mim, não tem preço essas 40 milhões de pessoas não estarem no mapa da miséria. Para mim, estas pessoas são o campo imediato”. 

Citou o exemplo de pessoas que melhoraram suas rendas e puderam viajar de avião. “É o ódio que vem junto disso. Algumas pessoas não aceitam que aquele que está ao seu lado não viajaria de avião. No máximo, estaria em uma rodovidária a cada dois ou três anos. A pessoa que está ao seu lado tem um filho que entrou na universidade, e que não teria entrado”, argumentou.  

Kenarik criticou o difícil acesso da população ao Judiciário e citou iniciativas que querem proibir espaços de discussão do impeachment. “Judiciário deveria ser garantidor de direito que estão na Constituição. Mas estamos vendo situações completamente exdrúxulas (…) Limitar o que a sociedade vai discutir. A gente vê a ministra Rosa Weber explique o que ela quer dizer com golpe. Chegamos ao limite… inimaginável que pudéssemos chegar a este Judiciário de forma tão clara”. 

Concordou com Mascaro que o golpe acontece no cotidiano na periferia, mas se mostrou otimista ao mencionar a possibilidade de mudança: “Para a gente mudar isso, vamos precisar de muita luta, de muita educação, acho que precisamos investir nisto. Sou uma sonhadora, quero crer que possamos reverter isso”. 

Ela ainda citou a necessidade de uma reforma política que inclua o Judiciário. “Tem uma parcela do Judiciário que está tentando romper esta barreira. O Judiciário tem uma enorme importância, o direito tem uma enorme importância. Tem um papel muito grande e precisa ser disputado. Por que a gente critica este Judiciário? Porque ele não cumpre o papel que a gente está esperando”, disse. 

Segundo ela, é possível fazer pressão e reverter a decisão do Senado de afastar Dilma do cargo: “Estou nesta luta e quero continuar lutando. Que a gente possa tomar o microfone, que a gente tenha terra, que as crianças não morram mais de fome”.   

Organização da juventude

Militantes do Levante Popular da Juventude, do coletivo Rua, da Juventude do PT, do Juntos e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) foram os debatedores da tarde de terça-feira (24) na Universidade de São Paulo (USP). A programação faz parte do Seminário “Caminhos de Esquerda diante do Golpe”.

Estavam presentes nomes críticos ao governo de Dilma Rousseff e também aqueles mais otimistas com as mudanças realizadas no Brasil desde 2003. É consenso, porém, que este é o momento de unir forças para resistir ao golpe.

Uma das debatedoras foi a presidenta da Ubes, Camila Lanes. Para ela, “é hora de ressaltar nossas diferenças, mas nossa unidade. Porque o ladrão da merenda está solto em São Paulo e se enriquecendo com dinheiro dos trabalhadores”.

Praça Norma G. Arruda, Alto de Pinheiros, o início da noite de domingo

Praça Norma G. Arruda, Alto de Pinheiros, o início da noite de domingo

Ela citou o acampamento nas ruas de Pinheiros, onde reside Michel Temer em São Paulo, e criticou o fato de a Polícia Militar nunca ter questionado os manifestantes que ficam na calçada da Avenida Paulista, a “torcida organizada pelo impeachment”. “Caminhões da Tropa de Choque, com água fria, tiraram trabalhadores da rua porque estavam na rua do Temer”, disse.

Alertou para a perda de direitos após o golpe, como bolsas de ensino superior e auxílio para permanência na universidade, e também para iniciativas de deputados conservadores, que querem anular o direito de uso do nome social por transexuais e travestis. “Se necessário, vamos ocupar a Paulista, vamos ocupar a Alesp de novo. Vamos fazer uma vaquinha e vamos ocupar o Senado. Não dá para ficar inerte agora”.

Em sua fala, Camila considerou que um dos problemas atuais é que não existe, há muitas décadas, um esforço para mudar a qualidade de escola pública. “O mesmo ensino que minha avó teve, minha mãe teve e eu tive. A escola pública parou no tempo”. Falou de sua mãe, professora, a primeira mulher da família a entrar no ensino superior.

Disse que estudantes conseguiram se organizar, seja por meio da Ubes, de outras entidades ou de maneira independente, e ocupar as escolas. “Hoje no país temos mais de 300 escolas ocupadas no Brasil. Isto é democracia”.

A militante Jessy Daiane, do Levante Popular da Juventude iniciou sua fala afirmando que a história do Brasil é aquela contada pelos conciliadores, é a “história do acordão”.

Os últimos 13 anos recompuseram a classe trabalhadora e permitiu que sua luta conseguisse avançar, e em nome da crise não se pode igualar o projeto do PT àquele do PSDB e do PMDB, disse ela. “Com todas as críticas ao projeto do PT, a gente não pode dizer que foi igual. E aí queria que vocês olhassem para o pedacinho do Nordeste. Mudou muito. Mesmo com o enorme crescimento que aconteceu, a desigualdade ainda é muito grande” argumentou Jessy. “É um governo neodesenvolvimentista comparado com um governo neoliberal, ortodoxo”, completou.

Em sua opinião, para traçar os próximos passos e conseguir avançar na história, este é o momento de fazer uma análise crítica para reconhecer os erros, mas não fazer competição de quem errou mais. “Concordo com a companheira Camila de que este é o momentio da unidade”.

Citou ainda que existe uma parcela, sobretudo entre trabalhadores que melhoraram sua renda e suas condições de vida, que está órfã de organização política, e que conquistar seu apoio é importante para mudar o Brasil. “É disputar consciência, disputar projeto”.

Já para o secundarista Ícaro Andrade, este é o momento para militantes independentes e movimentos sociais retrocederem em sua atuação, mas pensar em formas de avançar. Lembrou a briga dos secundaristas contra a reforma escolar do governo de Geraldo Alckmin (PSDB-SP), considerando as ocupações das escolas uma importante ferramenta de luta. “Antes a gente queria estar na escola, agora a gente quer comer na escola. “É uma questão de direitos humanos”.

Segundo ele, os secundaristas vão se manifestar contra o golpe. Neste momento, ele considera importante a união entre trabalhadores e sindicatos com estudantes para fazer frente a Temer.

Participou do debate também Wellington Amorim, do Coletivo Rua. Sua expectativa é que sejam aplicados pacotes de austeridade. Em sua avaliação, perdas no sistema previdenciário e nos direitos trabalhistas devem ser as consequências negativas, principalmente para os jovens que não entraram ainda no mercado de trabalho. “O que temos é um golpe institucional. Quem é negro, pobre, sabe dos desafios que é morar na periferia (…) o golpe de 64 acontece todos os dias na periferia”, disse.

Há um bloco liberal e conservador no Brasil que conseguiu se organizar em momento de crise e quis barrar qualquer avanço que caminhasse para acabar com desigualdades econômicas e sociais, ponderou o secretário estadual da juventude do PT de São Paulo, Erik Bouzan.

Existem setores que não aceitam as mudanças feitas pelo PT desde o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. “O salto civilizatório que aconteceu no Brasil é indispensável para análise, mesmo com as críticas”.

Para Bouzan, há uma crise geracional política, não somente no Brasil, como no mundo. E as esquerdas devem aproveitar este momento para discutir como ocupar novos espaços. “É preciso fazer uma reforma real do Estado para ele conseguir realizar as reformas necessárias”, finalizou.