Uma das mesas mais esperadas do seminário “Os caminhos da esquerda diante do golpe”, ocorrido na Faculdade de História da USP, no dia 30 de maio, foi marcada pelos confrontos tradicionais de narrativa entre intelectuais de esquerda que olham a atual crise política de fora, ou por dentro da luta entre forças sociais progressistas no governo e os setores conservadores de oposição. Enquanto os filósofos Vladimir Safatle e Paulo Arantes pintaram um cenário desolador e abstrato, Marilena Chauí e o cientista político André Singer buscaram esperança numa dialética em que a sociedade é capaz de reverter o quadro por meio de uma resistência em defesa da institucionalidade degradada pelo golpe.

Singer acredita que as forças populares só poderão contar consigo mesmas para reverter os retrocessos. Ele defende que esse enfrentamento seja feito institucionalmente, em torno da questão da democracia, mesmo com as instituições tendo participado do golpe. “A questão da legalidade é da esquerda e precisa ganhar os setores de centros que aderiram à ilegalidade”, completa.

Safatle preferiu fazer uma narrativa histórica do que ele considera os erros cometidos pelo governo de esquerda, que levaram ao golpe, enfatizando a tentativa de conciliação de classes aceita apenas em parte pela burguesia nacional. Ele acredita que olhar para esse, que ele considera um erro fundamental, já permite tirar lições valiosas para a superação dessa realidade.

Para ele, a receita que Lula e Dilma deveriam ter seguido era, “desde o início”, modificar a estrutura política brasileira, combatendo as relações promíscuas entre capital, empresariado e política, assim como fortalecer mecanismos de democracia direta, reformando a função do Congresso como caixa de ressonância dos interesses oligárquicos. Como isso não foi feito, em sua opinião, a esquerda sofre as consequências por meio do golpe.

Chauí avalia que o golpe desnudou a estrutura do estado brasileiro. O golpe teria mostrado o que é o Congresso Nacional e o que é o Poder Judiciário, portanto o que é a institucionalidade brasileira. “Com isso, deu um programa para a união das esquerdas, que é a criação de uma nova institucionalidade política que seja democrática e republicana”.

De acordo com a filósofa, o grau de desinstitucionalização ocorrido nesse processo golpista é muito favorável, porque “o desrespeito entre os Poderes, que garantiu o golpe, é o que o fragiliza”. De acordo com ela, num diálogo com a proposta de Singer, cabe à esquerda analisar essa percepção teórica e prática, que permita mostrar por onde pode passar e agir.

Num diálogo com a crítica de Safatle, Arantes foi ainda mais pessimista, pintando um quadro distópico, onde qualquer horizonte de projeto de futuro para o país se enterrou nesse processo de ruptura institucional. No entanto, para ele, os últimos governos vinham construindo um projeto de Brasil Potência que foi duramente golpeado.

“É um golpe? Pra mim é coisa pior, que nós não sabemos. É apenas um sintoma de uma grande aceleração rumo a desintegração social. Se tem uma quadrilha reunida no Congresso com adjacências no Suprema Corte, golpe é uma palavra otimista e progressista, porque você supõem que vem um passo adiante depois de um golpe. O passo adiante é um filme distópico, à maneira de Lars Von Trier com estupro e linchamento. Em 64, não foi um bando de homofóbicos estupradores que entraram, foi outra coisa”, disse ele, mencionando uma charge de Bruno Maron para a Ilustríssima da Folha de S. Paulo, do dia anterior (veja abaixo).

Antes das palestras, o organizador do evento, o sociólogo Ricardo Musse fez um balanço do evento, mencionando as dificuldades criada pela reitoria para a ocupação dos auditórios. Também mencionou as críticas recebidas de setores representativos da universidade, que preferiam discutir a greve em andamento. Musse lamentou que essa postura umbilical esteja tornando a USP irrelevante politicamente, deixando de ser uma voz influente na política, como já foi em outros tempos. 

 

Democracia é a luta da esquerda

Para Singer, o ângulo da luta de classes é o mais rendoso do ponto de vista analítico. Por isso, ele avalia que qualquer que seja o resultado do golpe, a classe trabalhadora foi colocada numa defensiva política. Para ele, o retrocesso que emerge desse golpe não se referencia nos últimos 14 anos de governos progressistas, ou desde 1988, quando foi sancionada a Constituição em vigor após a ditadura. “Estamos retrocedendo em relação a conquistas dos anos 1940. “O desafio da capacidade política da esquerda é dirigir a construção de uma maioria social para barrar esse enorme retrocesso”.

Em seu balanço sobre o que ele denominou “o lulismo”, é que houve um erro muito importante, que esses quatro mandatos de governos progressistas não fizeram a consolidação das leis sociais quando havia maioria para isso. Ele também considera que o lulismo não é mobilizador, politizador, nem conscientizador, “enquanto a direita se organizou”.

Dilma tentou mudar esse cenário, segundo Singer, buscando uma aliança com a burguesia industrial. Esse setor produtivo, no entanto, se mostrou desinteressada de um projeto de soberania nacional que entrasse em confronto com outros projetos do capital internacional. “As forças populares terão que contar com elas mesmas”, sentenciou.

A esquerda precisa explicar a questão da corrupção para a opinião pública, de acordo com o sociólogo. “Não é possível se omitir sobre esse assunto para avançar num balanço”, insistiu ele, ressaltando esse ponto como primário para uma disputa institucional com a direita.

“Não acredito em caminho extra-institucional, ainda que um caminho exclusivamente institucional não vá funcionar para realizar transformações. Não devemos negar as instituições devido à participação que tiveram no golpe”, acredita ele. Ele acha que, embora estivessem alinhados em termos de prática de resistência, PT, PCdoB e PSol não se juntaram. “Tem que juntar esses e muito mais”.

Para ele, essa frente política tem que ser em torno da questão da democracia. “A questão da legalidade é da esquerda e precisa ganhar os setores de centros que aderiram à ilegalidade”.

A opção pelo conflito, não pela conciliação

Safatle caprichou ao preparar um texto que abre com uma reflexão poética sobre a psique brasileira nesse momento de colapso democrático. “O afeto que o poder produz é a melancolia. Só é possível comandar um povo melancolizado, que não acredita mais na sua força, na sua capacidade de ação, internaliza um luto infinito de promessas que não se realizaram e não podem ser realizadas”, recitou.

Continuando o fluxo psicanalítico, Safatle aponta para a necessidade de um balanço crítico doloroso: “Para impedir essa circulação da melancolia, nenhuma vitória real foi feita sem sentir o gosto amargo do sorriso do usurpador. Toda verdadeira vitória é fruto da meditação profunda sobre as nossas derrotas. Ela reverbera o desejo quase animal de nunca mais ser derrotado. Por isso, só vence quem caiu e quem clama com paciência e desespero por uma segunda chance. Ela vai vir com certeza, mais cedo do que a gente espera, vai vir se a derrota alimentar a clareza do nosso julgamento, a consciência implacável dos desvios, aos que choram e aos que sabem que a derrota é o fogo alto que foge ao aço da nossa vitória. Para vencer, é necessário ser seu mais cruel juiz. Importante fazer essa autocrítica agora, para não perpetuar todos os erros que foram cometidos. E não foram poucos”.

Dado o tom de sua abordagem, o filósofo começa um balanço histórico, de que a Nova República (iniciada após o fim da ditadura militar, nos anos 1980) foi um dos maiores momentos de covardia política da história brasileira. “O fim da ditadura não foi feito a partir de um acordo, mas de uma verdadeira capitulação das forças democráticas, diante de um modelo de conciliação política que serviu apenas para paralisar todo ímpeto de mudança mais profunda. Um modelo que serviu apenas para degradar todo ator político que aparecesse como gestor dos novos consórcios de poder. Por isso, é certo dizer que nossa derrota vem de longe. Vem de 1984”.

Para ele, a derrota das Diretas Já foi a confirmação do pacto entre PMDB e PFL, “selando a governabilidade entre nós”. “Uma conciliação contínua com setores dos trânsfugas da ditadura, na gestão de seus interesses oligárquicos locais, na conservação de seus direitos fisiológicos e no bloqueio de toda tentativa de julgar o que fizeram e tudo que continuarão a fazer”, disse ele, referindo-se à Lei da Anistia, imposta pelos militares, desqualificar qualquer revanche. “Deveríamos nos acostumar com a presença dos que geriram o país durante o governo militar”.

Continuando seu relato histórico a partir desta premissa de que toda e qualquer força política progressista e de esquerda foi domada por essa ordem conciliatória, Safatle faz referência ao PDT de Brizola. Ele lembra que, todo casuísmo foi utilizado para impedir a formação daquele partido, visto como a principal ameaça aos militares, já que seria uma conexão com o movimento trabalhista dos anos 60 e modelo de incorporação das massas ao poder. “O personalismo de Brizola evitou o avanço de seu partido”.

Impeachment de Collor e ascensão da esquerda era inevitável, mas acabou sendo uma “vitória de Pirro”, conquistada a prejuízos irreparáveis. “FHC e sua esquizofrenia crônica deu continuidade ao modelo da governabilidade da Nova República. A era FHC já mostrava a miséria do nosso pacto de governabilidade. Uma verdadeira arapuca que empurrava todos ao imobilismo dos mares de lama periódicos, desigualdade persistente, crescimento pífio, quebra de força dos sindicatos”.

Eliminado Brizola e o tucanato, restava o PT. Uma análise mais honesta, em sua opinião, mostraria que a última coisa a fazer seria procurar reeditar mais uma rodada da política conciliatória da Nova República. “O final não seria diferente daquele que tragou o governo Fernando Henrique, só que muito mais brutal e dramático”, continua ele sua narrativa.

O caminho era, desde o início, modificar a estrutura política brasileira, combatendo as relações promíscuas entre capital, empresariado e política, assim como fortalecer mecanismos de democracia direta, reformando a função do Congresso como caixa de ressonância dos interesses oligárquicos. Este seria o receituário do governo de esquerda, segundo Safatle. “A primeira reforma apresentada era a reforma previdenciária. Um modo de mostrar ao mercado que o Brasil não seria uma Venezuela, que o PT estava lá para ser mais um ator na grande história da conciliação nacional”.

Mas, com o PT, foi diferente. Passados os anos, Safatle se sente a vontade para diagnosticar que sua rendição ao modelo e o pacto de corrupção foi uma armadilha para pegá-lo no primeiro escândalo. “Os estrategistas do PT acreditavam que o sistema de financiamentos de campanha a partir do sistema do PSDB era um esquema blindado a que todos os atores da Nova República estariam comprometidos”.

No entanto, diz o filósofo e colunista da Folha de S. Paulo, os setores hegemônicos da imprensa brasileira têm um dom de apagar informações e reconstruir narrativas que deixariam Orwell e seu 1984 mortos de inveja. “O maior escândalo do governo era um esquema de corrupção gestado pela própria oposição. Uma informação bombástica totalmente ignorada pela imprensa nacional. Por pouco, tudo não termina em 2005. Salvou o governo, o fato da direita temer naquele momento as mobilizações populares. Todas as manifestações de direita, como o Cansei, se mostravam ridiculamente pífias mesmo com o apoio maciço da imprensa”.

Com a reeleição de Lula e sua popularidade consistente, não foram poucos os que achavam que a lição tinha sido aprendida, que era hora de escapar do sistema de travas da conciliação da Nova República. “Nada mais falso. A convivência com os arcaísmos da política nacional trouxe uma regressão duradoura das práticas políticas de todos. De tanto conviver com eles, você acaba por se parecer com eles, por pensar como eles. Não haveria transformação política alguma”.

De acordo com Safatle, Lula compensava isso com a crença de que ele agora era a reencarnação de um novo Vargas, capaz de operar um modelo intenso de unificação de interesses. O trabalhismo morto com Brizola ressuscitava pelas mãos de uma esquerda que em seu nascedouro era não-trabalhista e era crítica do nacional-desenvolvimentismo. “Não eram apenas os sonhos do nacional desenvolvimentismo que se reencarnavam nas mãos sujas de petróleo de Lula, mas a crença de que a conciliação da Nova República expressa o lugar natural da política brasileira, desde sempre. Que a esquerda poderia no máximo levá-lo ao modelo varguista de grandes alianças”.

Safatle define o “populismo lulista” a partir da referência do teórico político Ernesto Laclau, como sendo um modelo de incorporação das massas excluídas do processo político e a criação de uma série de demandas populares e de oligarquias insatisfeitas que convergem num significante vazio, preenchido pela figura própria da liderança. “Lula realizou da forma mais bem acabada esse modelo. Seu governo expressou na estrutura do Estado a conciliação dos conflitos de classe. Foi assim com a dinâmica conflituosa entre Banco Central e Ministério do Planejamento, Ministério da Agricultura e Meio Ambiente, Ministério da Defesa e Secretaria de Direitos Humanos, mediados por Lula que esperava estourar o conflito para depois compensar simbolicamente com promessa futura ao perdedor”.

A vinda de Bush é a síntese desse modelo, de acordo com o filósofo, já que o estadunidense anuncia seu melhor aliado na região, enquanto é acompanhado de protestos pelo país comandados pelo PT. “Uma esquizofrenia vista como astúcia política”.

Para Safatle, esse modelo tinha prazo de validade. O crescimento causado pelo lulismo tinha “limites claros”. A desigualdade persistente, o Brasil como polo de rentabilização do sistema financeiro e o respeito sacrossanto ao patrimonialismo da elite ociosa, bloqueavam o desdobramento do crescimento. “O bloqueio das promessas não realizadas de uma sociedade de pleno emprego gerariam uma frustração relativa insuportável, que explodiu em 2013, nas mãos de uma das governantes mais inábeis da história brasileira, Dilma Rousseff”, declarou Safatle.

Em 2013, o pacto da Nova República se quebrou, em sua opinião. Não por desacordo sem volta da classe política, mas na forma de uma verdadeira revolta popular. Citando Maquiavel, “o povo quando fala, diz não”. “Essa potência negativa não soube ser encarnada por nenhum ator político à esquerda. Alguns preferiram desqualificar 2013, por não saber o que fazer diante de um povo que não aceitava mais ser representado e que se voltava contra o governo do povo. Um povo que se volta contra o governo do povo não deve ser povo. Para alguns, 2013 não foi uma revolta popular, mas o inicio do fascismo brasileiro”, disse o filósofo, sob protestos de Marilena Chauí, que afirmou reiteradamente essa análise em outras ocasiões.

Continuando seu raciocínio, outros setores da esquerda não teriam sabido perceber que suas organizações de esquerda pararam no tempo com suas estruturas dirigistas, hegemonistas, centralizadas, hierárquicas. Elas não estavam preparadas para lidar com um povo “indócil e difícil de governar”. “Com a incapacidade da esquerda ser a intérprete qualificada das novas demandas, a direita soube captar o momento absorvendo de vez o discurso anti-institucional. Pela primeira vez, desde 1984, voltava às ruas procurando mobilizar a força anti-institucional da política”.

A derrota eleitoral da direita se deu por margem estreita, lembra ele, mostrando a divisão exposta do Brasil, que não desapareceria facilmente e preparava um embate de proporções decisivas em pouco tempo. “Estava em jogo o parto de um novo ciclo na história. Momento de tensão máxima que revela a verdadeira estatura de quem nos governava”, diz ele em tom de suspense, para apontar o anticlímax de sua narrativa. “Reiterando um modelo de conciliação já sepultado, lá foi o governo tentar criar uma nova aliança com as piores setores do arcaísmo, impondo um conjunto de políticas que havia sido rechaçado nas urnas pela maioria da população. A única coisa que o governo conseguiu dessa forma foi dinamitar de uma vez por todas sua frágil base popular. A direita sentiu o momento, colocou o seu corpo na rua e impôs um ritmo de manifestações, que deu à casta política a senha para preparar o golpe. A derrota era inevitável e a lição a tirar disso não é difícil”, concluiu ele, sua dramaturgia sem happy end.

O rei está nu e vulnerável

Num confronto de ideias direto com Safatle, Chauí propôs distinções metalinguísticas, antes de expor suas posições sobre o assunto. Ela diferenciou o “discurso” que se fazia a partir da História em “seu tempo”, que na contemporaneidade se converteu em “narrativa” sobre a História, algo que, em outros tempos estava no campo da ficção e fazia muito sentido na teoria literária. Ela, no entanto, vê vantagens na nova nomenclatura, porque é possível criar paralelos entre narrativas, já que elas são feitas a partir de pontos de vista distintos. Com isso, Chauí disse que é capaz de construir uma narrativa completamente oposta à que Safatle propôs, a partir dos mesmos fatos.

Para Chauí, o ponto de vista de um partido de esquerda que participa de uma luta interna chamada de autonomistas contra aqueles que estão no papel administrativo-burocrático e vanguardista, faz da Nova República e do Partido dos Trabalhadores uma outra narrativa. Ela considera que não seja o caso de narrar em contraponto, mas gostaria de pontuar essa diferença interpretativa.

Ela avalia também, que, num balanço, é importante considerar o conjunto de falhas políticas e ausências que seriam importantes, dentre as reformas não feitas. Chauí se recusa a usar o termo autocrítica para se referir aos erros do governo, por sua origem nos tribunais estalinistas para condenar membros do partido que divergiam.

Em sua opinião, o lulismo realiza um padrão de política cujo modelo não é a conciliação pelo alto da Nova República, ao contrário do que narrou Safatle. Ela considera precisa a análise de Chico de Oliveira sobre o que ele chama de “modelo sindical” de governança. “É o modelo da negociação, que quando é interrompida, parte para o confronto para, então, retornar à mesa de negociação. Foi assim que Lula aprendeu a fazer política e foi isso que ele praticou”.

Parafraseando, Chauí repetiu chavões da esquerda crítica, de que os governos petistas paralisaram a sociedade, engessaram os movimentos sindicais e não deram participação aos movimentos sociais. “Não é interessante que, tendo feito isso, a recepção a Bush seja acompanhada de uma mobilização nas ruas contra ela. Não houve o fechamento da contradição em instante nenhum. Em vez da aparência de esquizofrenia, significa que, pela primeira vez, o estado brasileiro teve que conviver na sua institucionalidade com a contradição”.

Chauí aponta que a marca da sociedade autoritária brasileira é a recusa da convivência e operação com as contradições. Conflitos são identificados como crise, desordem e precisam ser reprimidos. “Foi a primeira vez que nós vimos operar as contradições do capitalismo. E por que elas operaram? Porque não era uma revolução, mas um governo eleito no mundo capitalista. Algo que se passava no interior do modo de produção capitalista, numa sociedade capitalista oligopólica, autoritária e vertical, com o estado constituído burocraticamente e juridicamente de tal maneira que ele impede qualquer política democrática de direitos. Este estado estruturado pelas classes dominantes, com ela e para ela, bloqueia tudo. A primeira coisa que os assessores jurídicos dizem a um secretário de governo que quer implementar um programa é ‘não pode, a lei não permite’”, afirmou ela, lembrando uma experiência pessoal como secretária de Cultura da Prefeitura de São Paulo.

Essa estrutura do estado brasileiro está com sua nudez inteiramente exposta, em sua opinião. “E não foi a Nova República que o desnudou, mas o golpe”. O golpe mostrou o que é o Congresso Nacional e o que é o Poder Judiciário, portanto o que é a institucionalidade brasileira. “Com isso, deu um programa para a união das esquerdas, que é a criação de uma nova institucionalidade política que seja democrática e republicana”, sugere ela.

A tarefa está dada e é muito complicada, em sua opinião, porque o que caracteriza a esquerda é a autofagia, desde o século XVIII. “Não é por má vontade, por estupidez, nem ignorância. A cruz e a caldeirinha para nós é que a esquerda está sempre convencida de que ela tem um horizonte, uma análise objetiva das condições históricas da exploração e da dominação, e o que fazer contra isso. Ou seja, a esquerda é inseparável de uma teoria social. A pluralidade dessas teorias, temos que defender a todo custo, pois isso é precioso em sua multiplicidade e antagonismos. Não pode haver uma dessas esquerdas no poder e as demais como apêndices daquela”.

O golpe mostra que não existe a República, continua Chauí, pois o pilar deste regime é a independência dos três poderes. Ela opinia que o grau de desinstitucionalização é muito favorável, porque o desrespeito entre os poderes que garantiu o golpe é o que o fragiliza. “Cabe à esquerda analisar essa percepção teórica e prática que permita mostrar por onde podemos passar e agir”.

Chauí também criticou setores da esquerda que sugerem que o lulismo não fez nada de diferente de tudo que sempre houve. “Não dá pra dizer que é tudo igual, porque não é. Posso aceitar que seja parecido, que tem pouca diferença, mas não é tudo igual. Se fosse tudo igual, não precisaria 55 projetos de lei para destruir tudo que foi conquistado nesses 15 anos. Não precisaria. É tudo igual. Está todo mundo em casa”, enfatizou.

“Gostaria de me dirigir aos mais jovens, que conheceram apenas o PT nessa face desgraçada do governo. Que não conheceram a história do surgimento, pela primeira vez, de um partido que não surgiu de uma vanguarda intelectual, estudantil e militar socialista. Essa é a forma dos partidos de esquerda no Brasil, a partir de uma classe média progressista em defesa do socialismo. Foi a primeira vez que a classe operária criou seu próprio partido, conforme sugeria Marx”, disse ela, em tom abertamente apologético ao Partido dos Trabalhadores.

Ela também dialogou com a juventude inserida em movimentos de ocupação de todo tipo, que pensam que é a primeira vez que dizem que não se sentem representados por partidos. “Não quero desapontá-los, mas esse foi o brado da juventude em 1968 no mundo todo, pelos mais diversos motivos. Estavam distantes da tradição da velha esquerda, porque diziam não ao poder, sem qualquer demanda ao estado”. Mas, volta ela, eram muito diferentes dos movimentos atuais, porque não se consideram representados, mas dirigem demandas ao estado como interlocutor. “Não romperam com a institucionalidade, portanto trata-se de discutir que nova institucionalidade queremos para impedir que se destruam todos os direitos”, sinaliza ela, alertando, no entanto para o regime policial que se consolida com o golpe contra a resistência social.

A distopia dirigida por Temer

Arantes mencionou a charge que compara o governo Temer a uma distopia cinematográfica ao estilo do dinamarquês Lars Von Trier. Segundo ele, nos anos 1960, a politização da juventude era mobilizadora, pois havia o sentimento de que a história se movia em alguma direção e que a contrarrevolução vinha para nos esmagar.

Também citando Chico de Oliveira, ele diz que a violência de 1964 gerada por aquele golpe, só se explica porque havia  a possibilidade de uma bifurcação naquele momento. A alternativa precisava ser erradicada de forma traumática para nunca mais se apagar da memória das pessoas que poderiam ser mobilizadas pela consciência do desastre do país. “52 anos depois, o dispositivo que o ativou não foi completamente desativado. O objetivo estratégico do golpe foi alcançado, pois o estado maior e sua tropa pode se recolher aos quartéis e deixar o barco correr”.

Somando-se ao raciocínio de Safatle, Arantes também vê no pós-ditadura cláusulas pétreas inegociáveis patentes na Constituição Cidadã de 1988, “atuando para impedir quem botar as manguinhas de fora para fazer as reformas de base de João Goulart”. Dessa forma, em sua opinião, o golpe é constitucional.

Outra cláusula seria a Lei de Anistia, em aberto, “agora que temos uma lei antiterrorismo”. Com a floresta legislativa que já existia, ironiza ele, a lei antiterrorismo é até supérflua. “Nada foi desfeito, pensando bem. Não fizemos a regulamentação da mídia para acumular forças. Até hoje… Todas as instituições da ditadura, desde Getúlio, estão atuando.”

O golpe passa a ser uma espécie de tábua de salvação legitimadora e nobilitadora, de acordo com ele. “Quem é vitima de um golpe tem todas as razões do mundo”, definiu ele.

“A invenção do Partido dos Trabalhadores é extraordinária, mas acabou. Quem dera não terminasse de forma ignominiosa, desmoralizada. A ditadura aplastou o Partido Comunista e derrotou seus intentos de acumulação de forças, mas este não saiu desmoralizado e desacreditado, com esse prontuário lhe pesando sobre as costas. Não cometeu os crimes burgueses clássicos”, disse ele, também fazendo a “autocrítica” do PT.

Também analisando as manifestações polêmicas de 2013, Arantes diz que a mobilização dos autonomistas vigorou por algumas semanas, mas revelou muito sobre nossa vida política, “como a Comuna de Paris iluminou dois séculos, mesmo derrotada”. A estratégia era derrotar na rua a maior concentração de poder, e derrotaram, em sua opinião. De acordo com ele, a esquerda colocou, pela primeira vez, pessoas não militantes nas ruas, que não estavam em nenhum partido ou organização. A massa apareceu como conservadora e a esquerda não soube lidar com isso. “Abriu-se a cortina e criou-se uma nova direita mobilizada nas ruas. Agora, estão quietos nos sofás, porque ganharam.”

Entre outras coisas, analisa ele, o fascismo é o sinal da derrota da esquerda de não captar, direcionar e esclarecer essa massa política insurgente. Quando se taxa aquele movimento de fascista, diz Arantes, comete-se um acerto involuntário de definição pela esquerda. “Foi assim que a direita mobilizou pelo fascismo a classe operária desmoralizada por aderir a uma guerra imperialista na década de 1930”.

“Estamos recheados de tantas expressões históricas desativadas e bolorentas que não conseguimos nos descrever para nos mesmos”. O Brasil realmente mudou de patamar, sexta ou sétima econômica do mundo, com multinacionais espalhadas pelo mundo, explorando mais valia. Isso é imperialismo, sentencia ele. “Se me dissessem isso nos anos 1960, eu riria”.

“É um golpe? Pra mim é coisa pior, que nós não sabemos. É apenas um sintoma de uma grande aceleração rumo a desintegração social. Se tem uma quadrilha reunida no Congresso com adjacências no Suprema Corte, golpe é uma palavra otimista e progressista, porque você supõem que vem um passo adiante depois de um golpe. O passo adiante é um filme distópico a maneira de Lars von Trier. Dogville é estupro e linchamento. Em 1964, não foi um bando de homofóbicos estupradores que entraram, foi outra coisa. Isso não nasceu em um mês. O aparato está aí ligado na tomada para efeitos de controle”. Arantes mencionou o fato do Gabinete de Segurança Institucional estar nas mãos da família Etchegoyen, três gerações de “generais gorilas”, em que o tio deles era um dos coordenadores da Casa da Morte em Terezópolis.

Para ele este golpe é dado numa segunda guerra fria. Um golpe na guerra fria pressupõe dois campos em disputa. Agora, o campo é um só, “chamado capitalismo globalizado”.

Em sua percepção, a destruição da Síria é a maior hecatombe dos últimos tempos, equivalente à guerra civil espanhola. São 16 intervenções de brigadas internacionais (jihadistas, Irã, Hezbola, Rússia, China, EUA, acólitos da União Europeia) nessa segunda guerra fria. “Nesse campo de disputas, de que lado estamos, do Putin? As opções são horríveis dos dois lados”.

Dialogando com a avaliação apologética de Chauí, ele diz que “aquele partido que era uma enormidade histórica no Brasil”, é o que estava consumando esse projeto de Brasil potência que foi gerado por duas ditaduras. Nos 50 anos, que perdurou o desenvolvimentismo brasileiro, era uma forma de acumulação de poder e dinheiro e de organização social com capacidade de projeção que tinha uma relação isomórfica com guerra e guerra fria. O desenvolvimentismo é um fenômeno econômico da guerra fria, diz ele, apresentado para as periferias para se encaixarem numa guerra fria. Nessa segunda guerra fria aparece um segundo projeto neodesenvolvimentista, apoiado em multinacionais, em megaprojetos amazônicos, gerindo populações no sentido de sua prosperidade material e da sua segurança para que formem um colchão de coesão social mínima para enfrentar esse projeto de poder. “É um projeto de poder nessas circunstancias que está sendo golpeado”, conclui.