A mesa “Aspectos Jurídicos da Luta em Defesa da Vida, da Democracia e da Constituição”, do Seminário Nacional da ADJC (Associação dos Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania), com coordenação da presidenta da Comissão de Direito Sindical da OAB-CE, Jane Calixto, o debate reuniu os constitucionalistas Lênio Streck, Martônio Mont’Alverne Barreto, Marcelo Cattoni, Marcelise Azevedo e Pietro Alarcon.

Foi durante a mesa “Aspectos Jurídicos da Luta em Defesa da Vida, da Democracia e da Constituição”, do Seminário Nacional da ADJC (Associação dos Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania).

Com coordenação da presidenta da Comissão de Direito Sindical da OAB-CE, Jane Calixto, o debate reuniu os constitucionalistas Lênio Streck, Martônio Mont’Alverne Barreto, Marcelo Cattoni, Marcelise Azevedo e Pietro Alarcon.

Lenio Streck criticou a discricionariedade que impede que processos de crime de responsabilidade sejam pautados no parlamento e no judiciário, tornando-os processos estritamente políticos e não jurídicos.

Martonio discorda que o impeachment seja um processo eminentemente político, pois estaria sujeito a determinações jurídicas. Mas devido à discricionariedade envolvida, demanda mobilização social para pressionar a tramitação do processo.

Cattoni destaca a participação e apoio de Bolsonaro nas manifestações contra a democracia como o principal crime cometido. Para ele, nesse crime de responsabilidade Bolsonaro é contra o livre exercício do poder legislativo e judiciário, se volta contra as unidades da federação para além da simples discordância política em relação a atuação de governadores e prefeitos e passa sistematicamente a sabotar medidas que visam o combate a pandemia.

Marcelize ressaltou a gravidade do descaso do presidente no combate à pandemia, que atinge de forma cruel as populações negras e pobres. Para ela, a omissão do presidente é tomada consciente de seu impacto racista.

Alarcon, por sua vez, pontuou os vários e principais crimes caracterizados. Ele mencionou os ataques “sistemáticos, multifocais e progressivos” à Constituição brasileira. Esses ataques se dão no âmbito eleitoral, das instituições democráticas, assim como na gestão da crise sanitária, em que ele qualifica Bolsonaro de genocida.

Lênio Streck afirma que os crimes do presidente Bolsonaro abrangem “quase todo o código penal”. É difícil saber qual é o mais importante, em sua opinião. Ele mencionou como Bolsonaro fere o decoro do impeachment, vai contra os protocolos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), faz propaganda de remédio inútil, sai sem máscara para manifestações públicas, deve ter contaminado pessoas. “Sou um dos subscritores do impeachment e os ilícitos são em torno de 15 a 18”, menciona. 

O fato de Bolsonaro ter ido a atos antidemocráticos, para ele é uma “contradição performático-jurídico-política”, pois usando do cargo e da democracia da qual desfruta queria e quer extingui-la. Assim sua participação, sem condenar atos antidemocráticos seria uma contradição performática. 

No plano jurídico, conforme Streck explica, existe um problema muito grande que é o poder discricionário do presidente da Câmara dos Deputados, que coloca o projeto em votação no momento que achar apropriado. O presidente do Supremo Tribunal também tem esse poder discricionário.

“Fui subscritor de uma ação patrocinada por partidos que foi extinta, sequer foi apreciada. Fazendo uma arguição do descumprimento de preceitos fundamentais, queríamos que o próprio Supremo dissesse que o seu presidente não tem poder discricionário para pautar quando quiser, por exemplo, uma ação declaratória de constitucionalidade de presunção de inocência”, diz ele, sobre o modo como o STF não pautava à época o habeas corpus do ex-presidente Lula.

Esse poder discricionário do relator, na opinião do jurista, é antirrepublicano e antidemocrático. No plano jurídico, ele considera importante que se fizesse o constrangimento também a esse poder discricionário do presidente do parlamento, embora já saiba que o Supremo vai dizer que este é um poder discricionário. “Aliás, esta é uma república discricionária, nosso passado escolhe e segrega”, conclui. 

Martonio Montalverne relata que há uma grande corrente jurídica que defende que o impeachment é um processo iminentemente político, que tudo pode acontecer, e que os atores envolvidos podem se comportarem como querem, por conta da natureza essencialmente política do impeachment. “Existe essa natureza política, mas ela é regulamentada pelo direito”, salienta ele. 

Ele conta que quando os americanos transferiram o impeachment da Suprema Corte para o Legislativo, o motivo foi a suposta pressão que alguns poucos juízes podiam sofrer, enquanto no Senado eram mais de 70 agentes do processo. “Admitia-se que o processo podia sofrer pressão política”, diz. 

Se houve essa preocupação na fundação do instituto do impeachment, Montalverne acredita que não se pode permitir que tudo funcione de acordo com o humor de determinadas autoridades com poder de decisão sobre momentos políticos constitucionais determinantes. 

“Estamos diante de um processo que tem sua conotação política, mas tem jurídica também”. Ele mostra que, no parlamentarismo, por sua natureza de governo, não há satisfação a dar para ninguém. O parlamento pode trocar o primeiro ministro conforme sua conveniência. Já no presidencialismo, isso não pode ocorrer. “O crime não é o que eu acho que é, mas tem que estar na perspectiva legal e constitucional; não porque o presidente não goza de apoio popular, por exemplo”, analisa.

No pedido de impeachment que assinou, o mais grave dos crimes cometidos, em sua opinião, são as manifestações antidemocráticas atentatórias à Constituição e à Republica. “Um dos crimes que atentam contra o artigo 85 da Constituição é sobre o livre exercício dos poderes. Isto também está no artigo sexto da lei 1079, do impeachment, de 10 de abril de 1950. O que falta mais?”, indagou.

Está lá a violação objetiva, acrescenta Montalverne, e não a vontade de um presidente da Câmara ou de um partido politico. Ele critica que ali não é o espaço dessa discricionariedade. “O que temos lá, objetivamente, é a ocorrência de crime. Senhor presidente da câmara, processe a admissibilidade desta denúncia. A isto se dá o nome de estado democrático de direito”, define.

Concluindo, o jurista afirma que, diante dessa discricionariedade dos atores políticos, é preciso haver pressão política dos atores sociais, como a ADJC.

Marcelo Cattoni define a participação de Bolsonaro em manifestações antidemocráticas como a grande síntese dos crimes que imputaria ao presidente. Ele diz que isto caracteriza crime de responsabilidade contra o livre exercício do poder legislativo e judiciário, se volta contra as unidades da federação para além da simples discordância política em relação a atuação de governadores e prefeitos e passa sistematicamente a sabotar medidas que visam o combate a pandemia.

Para ele, essa sabotagem é uma violação dos direitos sociais e individuais, do direito à saúde, que se resumem no conjunto de atos atentatórios à Constituição e à democracia. 

Mesmo no direito americano, Cattoni explica que todos os crimes são de competência do poder judiciário, em especial do tribunal do júri. O presidente da Suprema Corte preside o Senado em caso de impeachment, tornando a Casa o tribunal do júri. Portanto, o impeachment respeita uma série de pressupostos jurídicos.

“Impeachment não é moção de censura. Para que o presidente seja afastado e impedido definitivamente, é preciso que uma série de condutas sejam caracterizadas”, afirma. Esse é o caso em relação a Bolsonaro.

Cattoni diz que é apenas uma questão de seguir o artigo 85 da Constituição e a lei do impeachment 1079 de 1950, onde estão caracterizados os crimes contra a existência da união, contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário, dos poderes constitucionais das unidades da federação, o exercício dos direitos políticos, sociais e individuais, risco de segurança interna do país, a probidade da administração, propaganda de medicamentos sem fundamento científico com gastos em torno desses medicamentos. Ele lembrou que o STF disse que o presidente não se exime de dar contas à ciência. 

Ele considera plausível uma ADPF (arguição por descumprimento de preceito fundamental) pela omissão do presidente da Câmara de não despachar pedidos do impeachment. No entanto, ele admite que é fundamental a mobilização política e social. “O estado de direito seria um esqueleto sem carne se não houver cultura política da sociedade para realização daqueles princípios e procedimentos previstos na Constituição”, afirmou.

Marcelize Azevedo destacou a atitude irresponsável do presidente diante de uma pandemia que atinge com maior virulência a população negra. O racismo estrutural que dificulta o acesso desta população aos serviços de saúde torna isto ainda mais criminoso por atacar o direito à vida de populações muito vulneráveis.

Para ela, estes fatores devem ser suficientes para que a sociedade se mobilize para retirá-lo do poder. “A omissão do governo federal tornando a população alijada do direito à sobrevivência é uma motivação forte para que os movimentos sociais reajam”, acredita ela. Ela defende que caracterizações criminais como essa devem ser ressaltadas para que se obtenha o apoio político e social para o projeto do impeachment.

Da mesma forma que os ataques à democracia podem ser caracterizados na denúncia, o racismo é apontado por manifesto da Coalizão Negra pelos Direitos como um fator que enfraquece a democracia em seus princípios. “Assim, a pandemia e o caráter contraproducente do presidente frente ao combate à pandemia reforçam a vulnerabilidade social de populações negras, explicitando o racismo”, diz ela.

Pietro Alarcon destaca que há uma agressão “sistemática, multifocal e progressiva” – pois vem em ascenso -, à Constituição de 1988. Segundo ele, as bases do constitucionalismo de 1988 passaram a ser duramente afetadas no que tange à dignidade humana como princípio na relação entre as pessoas e o estado. “É impressionante como o presidente atenta contra as balizas consumadas nas cláusulas pétreas contra a separação de funções, direitos e garantias fundamentais, contra o federalismo brasileiro, a organização político administrativo e os valores republicanos expostos na ideia de voto e respaldo popular a sua eleição e legitimidade no exercício no cargo”, pontuou. 

Ele também acredita que sua maneira tardia e inepta em lidar com a maior crise sanitária que o país enfrenta afeta o direito à vida. Ele mostrou a contradição que há na participação do presidente em manifestações e atos contra a democracia, sem dizer que o exercício de seu mandato reside nos valores conquistados após a ditadura militar e num modelo de estado que é atacado pelos manifestantes. “Bolsonaro se utiliza de uma imunidade oferecida pela democracia, desde seu mandato parlamentar, para defender valores anteriores à Constituição e restaurar um estado ditatorial”, declarou. 

Ele defendeu que há que ser preciso na caracterização do crime de responsabilidade cometido pela utilização do cargo para obtenção de interesses de natureza pessoal e benefícios em favor de sua família. Ele diz que é preciso discutir a qualidade jurídica da decisão do ministro Alexandre de Moraes no mandado de segurança que impediu que Alexandre Ramagem seja nomeado para a direção da Polícia Federal. Para ele, isso também caracteriza crime de responsabilidade pelo constrangimento do STF.

Por último, o menosprezo pela pandemia o coloca internacionalmente na estatura de um “autêntico genocida”. “Não tenho medo dessa expressão. Um país que conta essa quantidade de mortos com essa naturalidade espantosa não pode chamar de maneira diferente aquele que se omite em estabelecer políticas públicas para a saúde que evitem as mortes. Temos que chamar as coisas pelo seu nome”, diz Alarcon.

Ele também admite que “é bem verdade” que existe uma natureza híbrida política e jurídica na natureza do impeachment. “Motivos há mais que suficiente para que esse poder discricionário antirrepublicano entenda que o meio é o impeachment e a finalidade é a preservação da democracia e da Constituição”. 

Entre essa razoabilidade interna e o confronto com a situação de pandemia, a verdade, na opinião do jurista, é que a solução, inclusive da crise sanitária, pode estar ligada precisamente ao fato de que se dê um passo para o retiro do presidente da cadeira que nesse momento ostenta.