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Um ano antes, em outubro, os povos da Rússia tinham exigido que se pusesse fim à guerra. Os gritos e os clamores de milhões de homens – abaixo a guerra, abaixo a burguesia que prolonga a guerra, abaixo a casta militar que faz a guerra, abaixo os grandes proprietários que alimentam a guerra – tinham-se fundido num tiro de canhão seco e peremptório disparado sobre a Palácio de inverno pelo encouraçado “Aurora”.
Quando o projétil, depois de ter furado o telhado do edifício execrado, ornado de estátuas de chumbo e de vasos negros, explodiu no dormitório imperial, quando ainda se achava quente o leito onde Kerenski passara noites de insônia histérica – ninguém podia prever que aquela voz da Revolução, a qual, semelhante a um acorde final, proclamava: “Guerra aos palácios, paz nas favelas!” Reboaria de um extremo a outro do imenso país; e que, repercutindo como um eco, aumentando, multiplicando-se, ganhando maior amplitude se transformaria num furacão.
Alguém poderia imaginar que aquele país, que acabava de depor as armas, iria retomá-las e que as classes se levantariam uma contra a outra: o pobre contra o rico? …Alguém poderia prever que do punhado de oficiais de Kornilov sairia o enorme exército de Denikine; que a rebelião dos comboios tcheco-eslovacos arrastaria à guerra a bacia do Volga, ao longo de um milhar de verstas e, alastrando-se até à Sibéria, daria origem à monarquia de Koltchak; que o bloqueio apertaria num torno o país dos sovietes; e que no mundo inteiro, nos novos mapas-mundi e cartas geográficas, a sexta  parte do globo figuraria como espaço vazio, não colorido, sem designações, cercada de uma linha grossa?…
Quem podia prever que a Grande Rússia, esfomeada, indigente, separada dos mares e das regiões ricas de trigo, carvão e petróleo, dizimada pelo tifo, recusaria submeter-se e que, de dentes cerrados, empenharia um número cada vez maior dos seus filhos nas terríveis batalhas em curso?
Um ano antes, o povo abandonara a frente; o país dir-se-ia transformado num pântano de anarquia. Mas era apenas a aparência. No seio do país, brotavam poderosas forças de coesão; daquela vida ainda embrionária brotava um sonho de justiça. Apareciam homens extraordinários, como ainda ninguém vira. Falava-se por toda parte, com receoso espanto, das suas proezas.
O interior do país soviético era abalado pelas rebeliões. Enquanto um levante irrompia em Iaroslav (estendendo-se a Murom, Arzamas, Rostov, Veliki e Ribinsk), revoltavam-se em Moscou os “socialistas-revolucionários de esquerda”. No dia 6 de julho, dois deles, munidos de papéis com uma falsa assinatura de Dzerjinski, apresentaram-se na residência do conde Mirbach, embaixador da Alemanha. Durante a entrevista que se seguiu, dispararam contra ele os revólveres e atiraram uma bomba. O embaixador foi morto pela última bala, que o atingiu na nuca no momento em que saía da sala correndo. Nessa mesma tarde, no bairro Tchistie Prudi e na área da avenida Iauzski, apareceram marinheiros armados e soldados vermelhos. Detinham os automóveis e os transeuntes, revistavam-nos, confiscavam as armas e o dinheiro e levavam os prisioneiros para a mansão de Morosov, na rua Treksviatitelski, onde se instalara o estado-maior dos rebeldes. Felix Dzerjinski*, que acorrera em pessoa ao palacete para procurar o assassino de Mirbach, já se achava ali detido. As prisões continuaram ao entardecer e durante uma parte da noite. Os rebeldes tinham-se apoderado da central telegráfica. Mas não ousavam ainda desencadear uma ação decisiva contra o Kremlin. Eram aproximadamente dois mil; a frente estendia-se da ribeira Iauza ao Tchistie Prudi.
Nessa noite, foram os telefones e as velhas muralhas que protegeram o Kremlin. As tropas estavam acantonadas no campo Khodinka; uma parte delas estava de licença, por ser véspera de São João. No Kremlin, havia um ambiente de nervosismo. Entretanto, pela manhã, foi possível reunir cerca de oitocentos soldados, três baterias e várias viaturas blindadas. Às sete horas da manhã, as tropas atacaram e demoliram a tiro de canhão o palacete Morozov, na rua Trekhsviatitelski. Muito barulho e poucas vítimas; pelas ruas transversais e pelos pátios traseiros, o “exército” dos socialistas-revolucionários de esquerda fugiu com destino desconhecido. Popov, o chefe, um jovem de lábios carnudos e olhos esgazeados, saiu de Moscou. Um ano depois, reapareceu junto de Makhno como chefe do serviço de contra- espionagem; ficou célebre pela sua crueldade refinada.
A rebelião foi esmagada em Moscou e no Volga. Mas permanecia latente por toda parte; havia revoltas contra os bolchevistas, contra os alemães, contra os brancos. As aldeias marchavam sobre as cidades e saqueavam-nas. As cidades derrubavam o poder dos sovietes. Estava-se na época das repúblicas independentes. Apareciam e desapareciam como cogumelos após a chuva. Havia algumas a que se podia dar a volta a galope do nascer ao pôr-do-sol.
O poder dos sovietes lançava mão de todas as suas forças para dominar a anarquia. Foi então que lhe assentaram um golpe terrível: no dia 30 de agosto, depois de um comício na fábrica Mikhelson, a “socialista-revolucionaria de direita”, Kaplan (da organização a que pertencia o homem do alfinete com a caveira) disparou sobre Lénine e feriu-o gravemente.
No dia 31 de agosto, um destacamento de homens vestidos de couro negro da cabeça aos pés, fez a sua aparição nas ruas de Moscou. Avançavam em coluna, pelo meio da rua, desfraldando entre dois mastros uma bandeira com uma única palavra: “Terror” … Dia e noite realizavam-se comícios nas fábricas de Moscou e Petrogrado. Os operários exigiam medidas excepcionais.
*Felix Edmundovitch Dzerjinski (1877-1926), uma das mais eminentes personalidades do partido bolchevista. Fiel companheiro de armas de Lénine. Chefe da Vetcheka (Comissão Extraordinária da Rússia). Notável organizador da construção do socialismo. (Nota da edição em francês)
Trecho do livro: O Caminho dos tormentos 2 – O Ano Dezoito
Alexei Tolstoi
Tradução de : Miguel Urbano Rodrigues