Quando entrou na velha casa de madeira, talvez por volta de dez da noite, Maria não imaginava que, logo após aquela quina da parede, do lado direito da porta, separação entre a sala e o quarto, sob a penumbra produzida a fraca lâmpada da cozinha, à esquerda, estava o corpo do Armando.

      Morto?

      Ao contrário das histórias de horror, nós costumamos confirmar o óbito antes de expressar algo e, pensando nisso, Maria pegou no pulso do Armando, com via nas novelas e filmes, mesmo sem saber conferir uma pulsação, pois nunca havia isso feito, mas agiu automaticamente.

      Morto. Confirmou.

      Maria conheceu Armando há 35 anos, quando tinha apenas 14. Ele 34. Casaram-se dois meses depois e, um ano e meio, escolheram como Pedro o nome do primeiro dos cinco filhos. Todos doutores hoje.

      Desde sempre moraram naquela casa, dormiram naquele quarto à direita e assistiram televisão naquela sala. Desde sempre cozinhou para ele naquela cozinha. Rezou, pelos filhos, todas às noites, para os mais diversos santos, habitantes do altar ao final do corredor. Sua fé era grandiosa, mas foram precisos tantos anos para ver o seu pedido mais singelo, mais devoto, mais sincero, atendido. Aquele homem, ali duro, há horas morto, era o doce homem daquela manhã de sábado que a levou para longe dos pais e dos irmãos, ensinou-lhe o significado da palavra coito e a arremessou na vida adulta de forma precoce e repentina.

     Aquele homem a quem cuidou com zelo e atenção. Mesmo quando o via espancar os filhos e a ela mesma. Mesmo quando o via andar pelas ruas, pelas vielas, pelos bares e pelas casas de amores. Mesmo quando recusou a ela o pouco dinheiro que pedia, mesmo quando ele não abriu mão de tê-la, com aroma do álcool e prostitutas, mesmo contra as lágrimas silenciosas da esposa, sua propriedade.

      Continuava morto.

       Buscou rosas no altar dos santos e as colocou sobre ele. Trouxe o velho terço amarelado e ofereceu-lhe um jogo de dedos e palavras. Sentiu o ar da liberdade, um flavor novo para ela, esquecido no tempo, nas décadas.
 
      Caminhou até o lavabo e, numa precisa concha de mãos, trouxe ao rosto um punhado de água, com a qual lavou o pouco de alma ainda vivente em sua carcaça de quase cinquenta com aparência de horas eternas. Fitou os próprios olhos no espelho, ainda era os mesmos desde menina, os mesmos olhos, produzindo a mesma expressão, o mesmo olhar.

      Tentou então ensaiar um sorriso. Pensou se ainda sabia fazer aquilo, se sabia torcer os cantos da boca para cima e expressar algo em seu rosto. Sorriu. Sorriu uma, duas, três vezes. Sorria e recolhia o sorriso. Sorria. Sempre tentando se reencontrar no próprio olhar. E, entre um sorriso e outro, olhava para lá, pra ver se ele continuava ali: morto.

Luiz Henrique Dias é dramaturgo, ator e contista. @LuizHDias.