Corria ano da graça de 1983. A dita cuja não estava branda – ao contrário, trotava muito dura. O tempo estava sujeito a chuvas e bordoadas da polícia política – embora fosse tempo de ditadura, governos investiam em cultura. Já no “salve-se quem puder!” da gestão não sei se do Paulo Marins, ou do Paulo Maluf, o governo promoveu um encontro nacional de cultura. A delegação de Goiás, dividida entre o alto e o baixo clero do poetariado, tinha a patota dos incluídos e o exército intelectual de reserva dos eternos excluídos. O alto clero dos intelectuais de gabinete, os dignatários do alto clero da oficialidade cultural tiveram direito a passagem aérea e hospedagem em hotéis cinco estrelas. Os do baixo clero, atirados em um campo de concentração (o Pacaembu) – ainda assim pegando o boi, uma vez que, sendo poetas, poderiam ser acampados em cima do Viaduto do Chá – podendo assim conversar com as estrelas da nossa galáxia, no estilo bilaquiano de ser.

      Já o lumpen-poetariado foi de ônibus fretado, tendo o Tagore Biram como chefe e responsável pelos destinos dos bardos que iam bêbados a bordo de trepidante mastodonte. No meio do caminho tinha a pedra da intuição, e a poetisa Yêda Schmaltz, antevendo as vis acomodações que o cardinalato literário reservara ao baixo clero, pressagiou a mala sorte que a rondaria, pelo crime inafiançável de estar ao lado de um bando de bardos bêbados a bordo de uma canoa furada e, aproveitando a parada técnica da nave, pegou sua mala e voltou a seus pagos na boa terrinha boiana. Sorte teve a poetisa. Salva pela intuição feminina, e desgostosa por viajar de terceira classe, não conheceu o que seria o inferno de Dante.

      A nomeação de Tagore no encargo de comandante da delegação do lumpen-poetariado foi, por motivos óbvios, motivo de risos no momento mesmo em que era decretada.É que o bardo desfrutava da merecida fama de anarco-comunista, rebelde e amotinado. No tradicional “jantar do escritor”, extinto porque os escribas já não podem dar-se ao luxo de esbanjar, em ajantarados, deu-se um início de pânico no recinto quando o vate levantou-se para ir ao banheiro, “tirar a água do joelho”. O temor coletivo é que ele pedisse a palavra para discursar. Na Paulicéia Desvairada o poetariado goiano foi deixado em um “campo de concentração”. No caso, o Estádio do Pacaembu. Embora distantes da barbárie nazista a hospedagem reservada ao exército dos excluídos era um pouco pior do que a destinada por Videla e Pinochet a seus presos políticos. Salas sinistras, repletas de beliches, apelidadas de alojamento, receberam o poetariado de todos os Estados. Havia gente da literatura, da música, da dança, do folclore e do teatro.

      A torre de Babel perdia para as confusões físicas e de línguas que ali se travavam. Já no primeiro dia da estadia a vizinhança chamou a polícia e reclamou da zoada. Gente chegava de madrugada, aos gritos, depois de executar suas funções circenses, artísticas e culturais. Um dos hóspedes do campo de concentração dos poetas lunáticos era pra lá de especial. O quadro nem era dantesco – estava mais para o “Jardim das delícias” de Yerononimus Bosch Hospício algum aceitaria um cliente que, a gritar histericamente, virasse as noites a bater a cabeça na parede: “Eeeeeee! Bum!”. Primeiro os gritos desesperados, depois o estrondo do crânio contra os tijolos. Sem poder dormir –quem dormiria alguém ali, com um barulho daqueles, – a sorte é que já chegávamos de madrugada, bastante obnubilados pelos vapores do álcool? O que seria aquela gritaria, seguida de um estrondo absurdo nos estertores do mundo? Coquetel de drogas? Loucura em estado de liberdade? 

      Todas as manhãs uma funcionária do governo chegava ao “semi-árido” do lumpen-poetariado, trazendo os tíquetes-alimentação. Tudo para manter viva, e funcionando a contento, aquela tripulação de vadios de luxo, desempregados crônicos, mambembes circenses dispensados de função. “Chegou o tique nervoso!”, gritávamos, eufóricos e ressaqueados. No rastro do “anjo alimentício”, logo chegava, a brigar pelo tique nervoso dos ricos, uma emissária, filha de um dos incluídos. A confraria de felizardos “mais iguais do que os outros”, hospedada em hotel estrelado, com direito a copa livre e outras mil mordomias, não abria mão da maré mansa dos tíquetes. Mal embolsávamos a nossa conta e já partíamos para os bares da vida. Não para almoçar propriamente, que os poetas em geral estão mais para a liquidez, poupando ao estômago a trabalheira de digerir massa de sustança. Um dono de restaurante arrepiou: “É tíquete-alimentação, não vale para bebida”. Tagore, do alto de sua autoridade de chefe da delegação, argumentou: “Neófito taverneiro, muito admiro que o senhor não saiba: alimentação de poeta é cerveja gelada”. E assim, de bar em bar, íamos dando gelada “liquidez” ao que era para ser bóia popular.

      Vencido pela dialética poética e etílica do bardo-chefe da anarquia poética, o estalajadeiro ordenou: “Desce cerveja a rodo para essa poetada!”. Como paga a seu gesto diplomático e civilizado fizemos um sarau poético no sagrado recinto de sua casa de pasto. Foi assim durante toda a temporada do Encontro Cultural – que a imprensa sabotava, pois que há muito não via a cor da grana estadual. Toda manhã, tique nervoso para o poetariado, gastava com esmerada e imediata liquidez.

      Fizemos da praça paulistana um grande recital. Não houve praça, buteco popular ou de luxo, em que não tenhamos declamado a nossa prosopoéia poética. “Los hombres passam por los hombres como se los hombres fossem apenas hombres”, declamava, andando de um lado para o outro, com sua cara de Poe dos trópicos, o poeta Delermando Vieira.Tagore, com a veia lírica a toda brida, atacava com sua poesia romântica, dessas que são feitas para cantar e papar mulher: … Valdivino Braz ia de cavalo xucro, atacando a paulicéia desvairada (e a ditadura, que já amolecia, distendida pelo bruxo Golbery do Couto e Silva: “Não monte esse cavalo moço/ que a coisa fica feia/ele empina e escoiceia/corrupia e corcoveia/se o montas, vira o Diabo,/dá pinote/e logo te faz beijar/a poeira do chão./Seu nome é Liberdade, moço!”.

      Quanto a mim, no matadouro do tempo, convidava: “Avisem os tristes da cidade/ darei de beber/ de meu sangue violado/ a quem ficar a meu lado/. Darei de comer/ de meu corpo violado/ a quem ficar ao meu lado/. Vamos todos, mutilados, ao matadouro do dia!”. 

      O restaurante era de meio luxo, desses até bonitinhos, onde se regalam, aos domingos, e nas datas especiais (dia das mães, das sobras e etc), os que não foram excluídos ainda: a sobrevivente classe média média, que luta com unhas e dentes para não cair de vez na vala comum da miséria coletiva. Estávamos até agradando, e éramos vivamente aplaudidos enquanto as poesias tinham colorido romântico – e nisso o Tagore ganhava, disparado, de todo o poetariado ali reunido. A certa altura do recital, porém, como o arsenal de lirismo vagabundo estava já no fundo do tacho, o Valdivino Braz concitou o chefe da expedição (e da tertúlia poética) a fazer uma massagem no Eu romântico das mulheres presentes. O poeta Tagore Biram vacilou, deu-lhe um branco, e não encontrou argumento válido. Se quisesse, poderia apelar (como sempre apelam os poetas) para o soneto da fidelidade, do poetinha Vinícius, mas temeu pelo ato falho que o levaria a, na coroa do soneto celebérrimo, a cometer a sandice de querer que o amor só seja eterno enquanto duro.

      No vácuo pensante que instalou-se em seu cérebro aturdido pela maratona etílica, só conseguiu dizer, em altos brados, um verso ginecológico: “Gosto de uva, como de chupar viúva”.

      Um clima de gelado e geral constrangimento instalou-se no recinto. Ninguém aplaudiu – nem o restante do poetariado, por solidariedade de classe. Quem o fizesse seria expulso a pontapés, do gélido e marmóreo recinto. O recital – ninguém precisou decretar – era melancólica e ginecologicamente findo. Ninguém precisou pedir para parar – nem um versinho de pé quebrado foi gungunado, para quebrar o desastre produzido pelo palpite infeliz do poeta enluarado. Depois de pagar a conta com o “tique-nervoso do Maluf”, pedimos licença para tirar a água do joelho e fomos saindo de fininho, Tínhamos todos a cor de burro fugido. No pálido semblante de cada um dos poetas declamantes, a sem-graceza do bêbado ou do cachorro que peidou na igreja – e dali fomos baixar em outra freguesia, com nossa verve incontida.

      Todas as mulheres passantes, umas bonitas, e outras nem tanto, passaram a ser nossas musas. Em guardanapos e toalhas de papel deitávamos oceanos de versos. À certa altura do ágape e da versalhada que não parava de desaguar, feito a Niágara, o o patrão-mór da “carniceria” reclamou, em altos brados, depois de se recusar a trocar, pela décima vez, a toalha de mesa: “Chega de poetar! Assim vocês me quebram!”. Tudo em homenagem à Cecília, a namoradinha do Tagore, a única donzela à mesa. Duas dúzias de poetas, sem ter Betriz ou Laura ao alcance da mão, ou da caneta Bic, que pudessem imortalizar, à moda de Dante ou Petrarca, tiveram que se contentar em cantar a “beleza imortal” da doce Cecília, musa do poetinha que elegemos como musa coletiva; Cecília dali levando um quilo e meio de poesias em sua homenagem. É bem possível que nossa ingrata Dulcinéia coletiva tenha atirado calhamaço na primeira lata de lixo que encontrou na esquina. 

      O poetariado brasileiro tomou de assalto o Ibirapuera. Versejadores lunáticos, passadistas e futuristas, ufólogos, ateus, místicos, decadentistas e nefelibatas disputavam os parlatórios declamatórios e a chance augusta de dar o seu recado versífico. O poetariado boianiquim não se fazia de rogado e a todo instante quebrava o protocolo. Um mestre de cerimônia, quebrando a munheca e jogando água fora da bacia anunciou, em voz afeminada, que todos teriam o sumo privilégio de ouvir a voz inspirada e nitente da magistral poetisa Renata Pallotini, herdeira dileta – e em primeiro grau – de Cecília Meirelles, etc. e tal. Dionísio Pereira atropelou o protocolista de plantão e sapecou, no melhor estilo de quem sabe, nas feridas da carne, que tudo é sertão, e o sertão é tudo: “Que pelotinha que nada. Quem vai falar agora é a goianada…”. É soturno, mas digo: a goianada falou. E falou tanto, e de forma tão inspirada (ou destemperada), que no dia seguinte a Folha de São Paulo noticiou, em texto de quase ¼ de página: “goianos quebram o marasmo do encontro”.

 Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.