Não emana das palavras nela contidas essa comoção que me toma? Vem antes daquela que me escreve? Fosse, então, uma desconhecida, não me tocaria sequer as fímbrias dos sentimentos?

      Por vezes, me pergunto se você não seria obra de uma ficção que vou construindo a partir de sua imagem; com base nesse seu riso que movimenta toda terra e todo o caos que carrego comigo, lá no fundo de um lugar de mim tão escondido quanto evidente.
 
      Reflito. Não: meus olhos não inventam manhãs ou trevas. Seu riso existe, você existe, e me penetra a retina, e se instala lá no ponto do cérebro onde habitam os afetos, e permanece. Você é. E meu amor daí nasce.
 
      Carrego esse e outros amores no que faço aqui. E, então, pergunto: são eles que compõem esse amor geral por todos e dão a ele materialidade? E o adoçam? Porque, no que faço, há que ser duro, Afrodite. Há que ser por vezes cruel, impiedoso.

      Estou construindo coisas belas aqui. (A beleza é a mais importante função das coisas?). Construo coisas belas a partir de uma cidade bela, nascida da beleza maturada na cabeça de deuses. E para que essa beleza emirja do mar lodoso da teocracia, abato, com meu martelo, vários leões por dia. Todo o dia é lutar, portanto? E é lutar uma boa luta? Há beleza nisso? Nisso e no que isso resulta? Eu gosto muito de coisas bonitas. Gosto de apreciá-las, fruí-las e construí-las – em tamanho e profusão. Encantam-me o monumental e o intenso. Os raios de meu pai, por exemplo.

      Mas há os que se encantam com o mínimo. E nele teimam em se perder. Clio lhes acena e eles desdenham. Acho isso, no mínimo, curioso. Há muitas pessoas assim. E elas são importantíssimas para a humanidade. O que seria dela se não houvesse alguém especializado em formigas do deserto da África? O que seria da língua se não existisse alguém preocupado com a função e o valor dos artigos definidos? A tecnologia jamais avançaria se um maluco não fosse obcecado pelo pósitron, ínfima partícula do já tão ínfimo átomo. E as divindades? Onde estaríamos se não existisse quem nos desfiasse as teogonias?
 
      Salvadores de baleia, distribuidores de sopa para indigentes, senhoras dedicadas a crianças com câncer ou aids – todos esses vivem um mundo particular, micro, focado. A maioria morre e não deixa rastros. Síndicos, gestores do efêmero, do particular, do irredutível, estão alheios aos chamados das grandes causas. Afinal, alguém precisa cuidar de cada uma das folhas das árvores.
 
      Todavia, quero ainda perguntar, querida Afrodite: há já gente suficiente cuidando de suas raízes?