Milão, primavera de 1944. Costumeira reunião de amigos, artistas, colegas de meu pai, e pessoal do teatro lírico, cantores e músicos parceiros de minha mãe e mais alguns agregados, inclusive o nosso médico de família (naquele tempo ainda existia essa figura). Em pauta: a penicilina, o primeiro antibiótico, criado, produzido e já em uso nos Estados Unidos e que somente naquele momento de guerra tinha chegado a ser disponibilizado nos países da Europa, trazido pelas tropas americanas. Eu, o mais jovem, presente e comportado como vinha acontecendo desde a minha tenra idade, procurando assimilar a douta exposição do nosso amigo médico e a testemunhar,  uma vez mais, aquilo que costumava acontecer nessas reuniões. A uma certa altura, a conversa deslizou para uma análise de natureza estética, tendo como brilhante debatedor justamente o nosso querido médico. A ilação, no caso, foi a literatura científica, tema delicado e polêmico. O pessoal discutiu, durante um bom tempo, a qualidade da redação de textos científicos, isto é o como e o quanto influi a roupagem criativa (estilo, referências figuradas e até humor) para a aceitação e a compreensão do conteúdo de teses e teorias. Charles Darwin – nem precisaria dizer, pois é muito fácil adivinhar – foi o herói da história. Não bastasse a originalidade revolucionária da sua obra sobre a origem das espécies, a elegância literária da sua escrita seria suficiente para seduzir os leitores.

      Falar nisso, em 1946 – um ano após o fim da guerra – nos primeiros meses de redemocratização da Itália, Ferruccio Parri, a quem tinha conhecido na época da Resistência, estava governando a Itália no aguardo de realizar um referendum para transformar o país em uma república. Entre outras, ele emitiu uma ordem que proibia as escolas de ensinar a história bíblica da criação do mundo pari passu com a teoria darwiniana da origem das espécies. Sessenta anos depois, o presidente Bush conseguiu que a maioria dos estados americanos fizessem exatamente o contrário, acontecendo apenas que a narração bíblica ganhasse o nome de criacionismo, para ela assumir um status comparável ao de uma ciência. No comment.

      Mas, voltando ao assunto dos médicos e as artes (que está no título): ao longo da minha longa vida conheci muitos médicos pelos mais diferentes motivos.

      Freqüentemente, descobri neles em veio artístico, um pendor, mais ou menos explícito pela literatura, ou pela música, ou pelas artes plásticas… Simples admiradores ou praticantes discretos, testemunhei alguns casos de ruptura daquele fio tênue que separa o amadorismo do profissionalismo. E, obviamente, me perguntei muitas vezes qual a razão desta vocação íntima que não percebo em profissionais de outras atividades de cunho científico. Só encontro uma resposta que nada tem de científico (coisa de leigo). Acho que aquele pedacinho da nossa psique que nos concede uma dose variável de sensibilidade estética é sempre generoso com quem escolhe a medicina como profissão. Divina profissão, segundo o pensamento da Grécia Antiga. Divina, porque profundamente humana. Aliás, naquele tempo em que não se classificavam os pensadores pelas especialidades profissionais, alguém disse que Hipócrates era, antes de tudo, um poeta. Poeta porque ao preservar os nossos corpos, ele cantava o dom de viver.

      Vou encerrar essa crônica – que daria muito pano pra manga – homenageando minha médica neurologista que, com muita sensibilidade e carinho, está cuidando dos meus neurônios, esses bichinhos indóceis. Faço isso em lembrança de todos os médicos que conheci na vida e que, além de cuidar da minha saúde, enriqueceram a minha mente. 

      Um dia desses, descobri qual é o pendor artístico da amiga médica Sílvia Laurentino: ela está pintando.