Desde o momento que recebi o livro emprestado por um amigo e dei uma primeira folheada, eu já sabia que não resistiria à tentação, que a coisa iria virar crônica.

      Mas vamos à obra, com pressinha, antes de perder o embalo.

      Je suis le cahier appartenant à Monsieur Picasso peintre (Eu sou o caderno que pertence ao Sr. Picasso pintor). Assim mesmo. Trata-se da reprodução da capa de um dos cadernos falando na primeira pessoa. Virando título de um livro contendo uma coleção de 175 cadernos, a frase ficou especialmente sugestiva devido à grande quantidade de referências que temos hoje a respeito da personalidade de Picasso.

      Os tais cadernos que Picasso começou a rabiscar aos 13 anos de idade constituem um emocionante documento da dimensão da sua genialidade e da coerência da sua linguagem plástica. São desenhos, aquarelas, creions coloridos… são centenas de imagens que ora são meros exercícios de sínteses ou de tradução informal de qualquer figura ou de qualquer detalhe (às vezes repetidos até a exaustão)… ora são ensaios e estudos de variantes de personagens e composições que encontraremos em obras suas um pouco mais tarde. Virando as páginas do livro e curtindo as reproduções uma por uma, o observador percebe algo que vai além da fruição estética. Ele fica impregnado por uma espécie de magia que vai além disso. Ele fica seduzido por uma linguagem plástica que é de Monsieur Picasso, só dele, inconfundível.

      Nada a estranhar, pois isso acontece com toda a arte de Picasso. Quem conhece um pouco as obras dele, ainda que através de reproduções, sabendo distinguir um quadro da fase azul de um quadro da fase rosa, reconhecendo um quadro cubista, e se já foi apresentado a “Les Demoiselles d’Avignon”, reconhece de longe uma obra de Picasso. Ainda que este gênio do Séc. 20 se tenha dado ao luxo de mudar muitas vezes as propostas e os conceitos. Um Picasso é sempre um Picasso.

      Inconfundivelmente um Picasso.

      Um dia desses vou ressuscitar, pela imaginação, o velho Picasso  e vou passar um dia com ele, assim como fiz há três ou quatro anos atrás com uma crônica sobre Frans Post. Espero apanhá-lo em um dia de bom humor para poder fuçar no seu ateliê. Vou levar o livro dos seus cahiers para ele me contar algumas histórias que certamente estão atrás de muitos dos seus desenhos. Depois a gente vai almoçar no bistrô de sua preferência. Provavelmente vamos comer lulas e camarões graúdos e tomar vinho de Málaga que ele importa da Espanha para não esquecer suas raízes. Em chegando a noitinha vou pedir licença para contar para ele de que forma interpretava a sua obra no tempo em que eu dava aulas de História da Arte. Espero que ele concorde, pelo menos por complacência, pois passamos um dia gostoso, como se fôssemos velhos amigos. Aliás, acho que somos um pouco isso, devido às muitas décadas que eu passei cultivando o conhecimento da sua obra.

      Claro que, voltando para o Brasil, não vou contar esta história para ninguém. Porque ninguém iria acreditar. Aliás, com toda razão.