Estou escrevendo essas mal traçadas (que expressão mais kitsch, minha gente, apesar da boa intenção de brincar com um lugar comum!) porque tive o privilégio de receber em cima da hora um exemplar do último romance de Umberto Eco – lançado na Itália nesse mês de junho – graças ao empenho do amigo Mário Hélio que me recomendou não citar a cortesia. Minha mulher, Sonia, também me recomendou que falasse da obra, sim, mas que, para garantir a isenção, evitasse comentar meu envolvimento intelectual – e até um pouco pessoal – que tenho e cultivo com um dos pensadores mais originais e brilhantes do século 20.

      Traindo as recomendações dos dois, vou dar um mergulho rápido no “romance ilustrado”, como o autor o define, intitulado A misteriosa chama da rainha Loana (tradução provisória ao pé da letra).

       A mais recente obra de Umberto Eco, com suas quase 500 páginas, é a narrativa na primeira pessoa de um sessentão que, na década de 90, volta a si após coma profundo provocado por um grave acidente. Já no primeiro diálogo com o médico que o assiste fica evidente o que aconteceu com a sua memória. Ele esqueceu seu próprio nome, não lembra ser casado e com filhos e praticamente todos os fatos relativos à sua vida adulta e ao mundo que o circunda desapareceram na escuridão profunda de uma noite sem fim. Só reminiscências históricas e literárias vão aflorando e avolumando-se na sua mente, às vezes costuradas a um sufocante crescendo de lembranças exclusivamente do seu tempo de infância transcorrida em Milão durante a Segunda Guerra Mundial  e sob o jugo fascista. E é aí que a gente se encontra, muitas vezes conceitualmente, e quase sempre ideológica e emocionalmente, mas de forma nunca explícita. Eu sou um pouco mais velho que ele; isto quer dizer que ele viveu aquele período de guerra na condição de criança, enquanto eu estava atravessando meus anos de pré-adolescência. Ele é nascido perto de Turim (a pátria da democrática Fiat), capital do Piemonte, e eu em Milão (o berço da aristocrática Alfa Romeu), capital da Lombardia, duas províncias vizinhas do Norte da Itália, no sopé dos Alpes, que formam a região mais industrializada e mais rica econômica e culturalmente (no sentido sociológico) da península. Isto com a licença e com todo o respeito pela cidade de Bolonha, logo abaixo do curso do rio Pó, que é sede da universidade mais antiga da Europa, onde o nosso Umberto Eco está lecionando ultimamente. 

       Na minha interpretação, Eco tem uma virtude raríssima entre os grandes escritores. Ele sabe, e sempre soube nas suas obras de ficção, moldar com uma plasticidade descomunal sua eficiente fluência literária de acordo com as épocas, as circunstâncias e o clima dos assuntos abordados, sem perder seu inconfundível estilo de narrador apaixonado, mas sempre balizado pelas suas próprias teses semiológicas. Nesta sua mais recente obra, eu diria que ele adota uma bossa “coloquial chique” da década de 40 praticada na Milão daquele tempo pela classe média alta da cidade (eu sou uma testemunha disso).

       Entre várias coisas, há pelo menos dois aspectos que marcaram especialmente essa minha primeira, apressada e gulosa leitura. A primeira: a quantidade das referências ressuscitadas, muitas das quais, na minha cabeça de contemporâneo, já tinham sido despachadas para o arquivo morto. E tomem letras e ritmos banais de cançonetas estúpidas, mal plagiadas do jazz americano, e tomem histórias em quadrinhos “nacionalizando” personagens disneyanos e sagas de heróis aventureiros da conquista do Faroeste transformados em guerreiros, guardiões do Fascio Littorio, e tomem discursos trovejantes de Mussolini erguendo o queixo másculo e desafiador, e tomem palavras de ordem extraídas de pretensiosas tiradas pseudo-filosóficas, e tomem charges que agrediam o bom senso e o bom gosto de qualquer cidadão medianamente instruído, e tomem filmes de promoção ideológica simplesmente ridículos… Aliás, muitas e muitas manifestações altaneiras daquele infeliz período da Itália fascista resultaram em ridículas ofensas à tradição cultural do Bel Paese.

      A segunda constante do livro todo é a presença obsessiva da neblina. Da névoa que cobre como uma almofada de partículas impalpáveis toda a paisagem urbana, obscurecendo a visão e amortecendo os sons durante meses, salvo breves clareadas que suavizam o semblante dos cidadãos.

      Per finire. Os adjetivos que citei nas evocações das manifestações orais, ou escritas, ou traduzidas em ilustrações que se pretendiam edificantes ou engraçadas não são de Eco. São meus, que vivenciei aquela época e da qual guardo uma mágoa indelével. Mas o garoto Umberto se dá ao luxo de narrar coisas sem qualificar moralmente os fatos, deixando para a índole e a consciência do leitor julgar os significados. Até a onipresente neblina é apenas um véu sujo que envolve tudo, formas e sentimentos. Cabe ao leitor discernir e interpretar. Assim, mais uma vez, você acaba de sorver um livro de Umberto Eco, mas a sua leitura não termina na última página.