Na obra do compositor, a densidade poética e o destino da literatura brasileira

      No início dos anos 60, não parecia haver mais cacife em nossa vida literária para gerar um autor que evidenciasse o nervo da nação, na delícia e na desgraça. Aquele a quem chamamos Chico, com a peculiar intimidade brasileira, foi capaz de dar ao país (e não apenas ao Brasil proprietário) uma voz que lhe traduzisse e questionasse em grande estilo. Por isso, criou clássicos na era da descartabilidade de mercado.

      Chico é o grande artista lírico brasileiro da segunda metade do século 20. O alcance de sua obra só se consegue dimensionar observando a forma específica daquilo que ele produziu como ninguém: a canção popular. Entretanto, dentro dessa forma específica, há uma profunda recuperação do melhor de nossa tradição poética. Sem ser poeta, mas valendo-se de longo aprendizado literário, o compositor manejou, como poucos, diversos “recursos literários” que remontam à tradição modernista de evidenciar o país não oficial aos brasileiros.

      Um desses recursos está na criação, em poucas linhas, de imagens fortíssimas, fincadas no país real. Lembremos acerca disso os doces e duros cortes de verso em “Estação Derradeira”: “Rio de ladeiras/ civilização/ encruzilhada/ cada ribanceira é uma nação”. Ou mesmo a delicadeza de “As vitrines”, uma busca da poesia em meio ao mundo escurecido pela lógica da mercadoria: “… abrindo um salão/ passas em exposição/ passas sem ver teu vigia/ catando a poesia/ que entornas no chão”.

      A urbanidade como espaço do possível aparece, às vezes, sob o signo da festa; noutras, como lócus de perigosa barbárie ou revolução. No primeiro caso, lembremos a inescapável alegria de “Vai passar” em que “cada paralelepípedo da velha cidade/ esta noite vai se arrepiar”. No segundo, a tenebrosa e algo irônica canção “Não sonho mais”: “Vinha nego humilhado/ vinha morto vivo / vinha flagelado/ vinha um bom motivo pra te esfolar”. Tudo isso é dito em palavras que conhecemos bem, que vivem, dia a dia, nos nossos ditos de injúria e amor.

     É essa dicção do brasileiro médio que dá forma, nas letras de Chico, a um modo de ver e sentir que nos é muito próprio. Nelas encontramos familiaridade e pensamos: “eu poderia ter dito isso, e nem precisava ser numa canção”. Essa familiaridade está no recurso ao ditado popular: “com açúcar com afeto/ fiz seu doce predileto/ pra você parar em casa”. E também na utilização daqueles termos doce-ferinos de que lançaríamos mão apenas sob nosso próprio teto: “a mesa posta de peixe/ deixa o cheirinho da sua filha”. Palavras comuns que Chico, no melhor estilo de Drummond ou Bandeira, trespassa com o sentimento do mundo real, fazendo o cotidiano significar muito mais do que rotina: “Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar/ e essas coisas que diz toda mulher”.

      Assim também ocorre com os temas, que não se esgotam em si mesmos. Seu alcance é sempre maior do que está evidente, graças ao trabalho fino com a metáfora, a alegoria e a substância concreta da palavra. Uma canção como “Pedaço de mim” revela não apenas a dor pelo filho que se perdeu, mas o peso de tudo que se foi e não passou. Dor histórica em última análise: “e assim como uma fisgada/ no membro que já perdi”. A concretude da palavra se exibe, mas nunca puramente, pois está sempre eivada de vida, como no refrão de “Roda viva”, que é uma espécie de “concretismo que deu certo”.

      Nos últimos tempos, Chico tem falado sobre a “morte da canção”. Seu último CD, Carioca, é uma forma de anunciar isso, pelo sintoma. Salvo engano, em Carioca, o Brasil é, propositadamente, quase só paisagem. Parte dos questionamentos que Chico fizera outrora nas canções parece ter migrado para sua obra narrativa, onde é possível ao “eu” que narra se auto-questionar, como dificilmente ocorrera nas suas letras. “Pode ser a gota d’água” da canção?

      Numa matéria em que a evolução depende mais da acumulação histórica do que do talento individual, é importante perceber o tamanho da “operação Chico Buarque” para a vida literária do país. De um lado, deu continuidade às lições da nossa lírica modernista; de outro, mais recentemente, suas letras foram a primeira forma de lírica por meio da qual jovens escritores tomaram contato com alguma cultura séria. Por isso, será difícil falar da nova poesia brasileira sem falar de Chico: um que não foi poeta, mas que manteve viva a poesia. Sua importância para a história das letras do Brasil é maior do que se pode imaginar.