1

Debruço-me sobre o barco
e carrego a vida
que rola pela face da terra.

Sinto o remorso do que foi
a vida do homem,
a dor do mundo e o amor
então comigo, o rio sabe.

2

O Araguaia desde as mil léguas de seu silêncio.
Às suas margens, o homem.
A ruína do homem, às suas margens.
É um rio silencioso. Rio solidário.
Um rio que se embebeu dos anos da vida humana,
às suas margens.

Água grande
Água pequena
– Araguaia Mansidão.

3

Peixe namorando a manhã namorada.
Rio mansidão.
Rio que Cristo mais homem rio que Cristo mais negro
Rio que o prisioneiro mais meu irmão.
Me deito na canoinha
do velho meu me deito na canoinha pensando
na descida das águas lá do Coxim
pensando a vida do mundo
vida das mulheres e dos homens
na canoinha do velho meu, Cincinato,
pensando na humanidade.
Rio prisioneiro minha verde garrafa meu rio
prisioneiro meus irmãos nos segredos do rio presos
a morte na face das águas  do amigo.
Rio meu prisioneiro, os soldados embalados,
liberdade meus irmãos água de pura mãe fatigada,
no meu amigo, rio solidário.

4

Sinto o remorso da vida
que foi a vida do homem.
Escuta a fala. Foi em Siníra,
avisaram-me que iam matar
um homem. Eu vi.
Era suma tarde em Edéia,
Surravam a um menino.

Lá em Iporã
chicoteavam a um burro.
As prisões no tédio
da noite.
As manhãs com as bêbadas mulheres.

5

O rio à noite não existe.
Só ouve o rumor das gentes.
Há fala humana e fogo.
Pela madrugada o rio vai
sonâmbulo à procura da manhã.
O rio tem irmandade com a manhã.
No mapa o rio é artéria o sol se vai mostrando as águas
se engarupam
nas encostas da terra
e se entortam para a claridade
com os homens e os peixes
virando a alegria no copo.
Pela manhã é o mesmo rio, prossegue digno,
como o homem que não se degradou,
pela manhã é o rio igual à mãe
que aceitou o sêmen e leva no corpo a vida,
pela manhã é o mesmo rio
e pode-se lembrar das gentes
da noite que passou.
A moça e o negro rindo.
Os três meninos pescando.
O rio é sua exclusividade
dentro da vida geral
que o suga. A
monótona confiança
em ser, a sua fadiga,
a segurança de estar,
e a sua dor,
tudo, igual à sua alegria
que é a sua norma,
a natural alegria de um rio
como é feito de águas.
É um rio a nossa vida que se gasta de manhã à noite.
É um corpo que vai como lenda
e é um homem novo que atrai a mulher para amar
Mora infinidade de estrelas,
os animais às suas margens,
os peixes na sua carne.
Vem a noite e eu pego a mulher: o Araguaia
é um rio que ajuda o encontro
do corpo do homem com o da mulher.
E é um encontro violento
e belo

6

Estou aqui com o rio
e é como estivesse em toda parte,
na Ásia, África, América.
É como um abraço.
E um rio humano.
A terra vive e sinto a África.
A terra é boa e lembro a África.
O negro
toca
a sua canoa.

7

A irmandade do rio
como o céu e a terra
é a saga que conto.
Pois considero o rio
parte do céu e da terra,
como a terra e o céu,
partes do homem.
A terra: a própria vida do rio,
a casa e o patrimônio do rio.)

É o Araguaia igual a qualquer rio,
tendo de seu:
a mansidão, a fraqueza,
a barriga grandes, as dádivas,
as lagoas, p boto mulherengo,
a multidão de ilhas, lagos,
os grandes batelões, conduzindo madeira e gado,
os patos selvagens,
e a vida do homem.

 
8

Eu mastigo a vida e olho a madeira
da canoa,
olho a madeira da canoa,
a mulher com o menino,
a areia com a marca do pé.
Pego água deste rio
como se pegasse na encruzilhada
das coxas da mulher morena
que ficou na praia.
Ó rio cavalão, meu cavalão.
Mulher deitada. Eu a olho de um a outro lado.
Do sul, oeste, norte e leste.
Vôo por sobre ela como um pássaro de garras e alma doce.
É um vôo de rodopios, calma, um vôo de alma e corpo.
Ela é. Como os pequenos animais selvagens
e como os pequenos e grandes peixes distraídos.

Nua como uma pedra em carne na grande paz da chuva.
Nua como uma folha ao sol.
Ô rio cavalão, meu cavalão!

9

Minervino, ó são Minervino, João Severo,
Manoelzinho da Criôla,
Mansuelda,
Mariazinha, Quitéria, Mercedes,
a roupa lavada das mulheres no varal
Lá em Aragarças…
Ó João da Uva! A largura do rio é de?
Qual a largura o rio, velho Salu?
Qual dia que você mais viu
a saudade de Deus mais teimar em
levar você pra ira de santa Isabel?
Ó Bilo, canoeiro, canoa, anzol
de linha, arpão, sal e farinha,
mulherzinha Mansuelda em sua pele,
Bilo de dente cerrado, sol na carne
qual mês do ano que o peixe boto
mais acalenta sua fêmea? qual a lua
mais benfazeja pra você?
Severo, qual é o tempo mais de peixe?
qual o tempo mais próprio para o amor
do homem com o rio.
Qual o tempo mais feliz?
Que sabe o rio do homem?
Sabe a vida de Justino, o Manso?
Do negro Celso, bonito, lá de Arapoema?
Sabe da morte de Mariazinha?
Esqueceu a dor de Manoel Serralho
que a polícia matou seus três filhos?
Sabe onde anda o Negro da Flor?
Onde a Nininha? o Ferreira? Aristarco?
a Joza, Manoel do Vento,
o Pedro Chuva?

10

Que minha estrada me acolhe
para viver minha fé pagã.
Virgens imaculadas e súcias de carnes
que a vida traz sob os céus.
O meu rio é um sonso sábio.

Mansidão que é de abraços,
aqui onde até Deus descansa.
Os que moram no mundo
não sabem do rio; esta, a malsinada
vida do mundo: viver ausente
de si mesmo, nos longes…
Sabem os que moram em seus seios,
sabem os que sonham, Araguaia,
sabem suas mulheres, suas vagas,
sabem os abismos, antigas mágoas.
Araguaia morrendo, renascendo.
Aqui no rio mais doce do mundo
vivemos a mulher no seu corpo
e sua história, vivemos a lenda,
a verdade, a lealdade e a degradada pesca.
Os peixes ensinam ao vivente a paixão do rio.
Eles segredam ao rio a sábia lição do mundo.
O rio se insinua, é um místico
com os dias e o ano na solidão das vagas,
ele é a artéria que nos ilude
como se abrindo, como se inundando
matas de um sangue
que vai desfibrar a terra
com seu acalanto de morte ,
que é bem um pranto de vida.
A bê-a-ba-ca da terra se abre, mansa, no cio.
Os peixes mortos ficaram na memória
de um dia que esteve no espanto
e as aves comeram toda a vertigem
que segura o céu. Na mão desse dia,
o peixe mais vida ficou peixe
mais morte. Nada há que mais vida,
enquanto a morte não chega
e fica sendo olhos grandes
fora das órbitas. Nada há
que mais morte. Nada há que mais
água nos olhos de peixe.
Nada há que mais espanto.
No céu a imagem do rio, ave indo
pela manhã no seu caminho
quando de tarde volta, cumprindo
o seu destino de pássaro.
Não se sabe se é rio, ave ou céu.
O Araguaia vai no seu manso caminho.
Cumprindo o seu destino de rio.
Suas nascentes morrem, e a morte vai
dessas margens vulvas aos lagos.

11

Araguaia mansidão, lembra sangue derramado.
Araguaia sozinho com morcegos e punhais
Laranjas resumidas na pluma dos pássaros
Lagarto irmão, tesão, lagarto verde
O vermelho coral das tuas estrelas vivas
A mística ferrugem de tua terra sangrada
O sonso delírio de teu ar, anêmona seca
As viagens de teus pássaros. O céu. O lodo.
Minha irmã tartaruga minha camarada!
As vaginas que em ti segredam o mel do mundo.
As doces carnes noturnas, embarcadiças
As tantas emoções que vieram sem máscara
Nossas revoluções, locomotivas aladas
Miniaturas verdes, os polens loucos.
Os malditos caraíbas assassinos
Os lagos saciados, as ruínas do mundo
Araguaia turvo, vermelha carne apaziguada
Costuram a morte desde as nascentes
Ninguém te salvará, meu camarada!
A não ser a fala de tua poesia.
A inquietude de um sonho, as vaginas, ninhos
Araguaia, Araguaia mansidão.
A fria ternura do sol, o escuro verde,
As lesmas, os pés, o bucho dos insetos
O ser mortal, a matança fria
O velho e sua cuia de farinha, ternura viva.
Fogo nas águas, rubra índia morta.
Aço polido, afago, doce carne do crepúsculo
O céu, abraços, vermelha arribação
Araguaia mansidão

 

 

José Godoy Garcia Poesia
50 anos de poesia
Editora Thesaurus, 1999