Aqui está apresentada a idéia central do que passo a desenvolver a seguir e que quero chamar de uma crítica literária como escavação ou a leitura que tira entulhos. Uma leitura como escavação, da história das literaturas, então, talvez pudesse ser capaz de trazer à tona o essencial desse amontoado de literaturas a que chamamos neste artigo, simplesmente, de “literatura”. O conceito de “essência”, é preciso reforçar, para não causar malentendidos, não está sendo usado no sentido de Husserl. Neste texto, essência é precedida pela existência, ou seja, é essência feita no “vir-a-ser” ou no “que-fazer” e “vida como problema”, orteguianos. Não no sentido dos realistas, de uma estrutura universal anterior aplicada à existência. O conjunto dessas essências, portanto, seria a essência do que foi “feito”, não do que “é” antes de existir e se fazer.

      A escavação consiste em olhar para a literatura e, colocando em parênteses o mundo exterior, ficar apenas com o que é essencial nela: ou seja o fenômeno literário. Feita esta redução, podemos então proceder às demais reduções, até chegarmos a um suposto “núcleo”, ou essência. Essa seria, então, o que está soterrado sob toneladas de circunstâncias, tais como a história, as culturas etc.

      Recapitulando o método: 1. Separar o fenômeno literário do mundo exterior (colocá-lo temporariamente em parênteses, sem esquecê-lo para sempre). 2. Proceder às demais reduções, chamadas “reduções eidéticas”, em busca do “eidos”, a essência. Na obra literária, essa redução eidética seria a que se faz colocando entre parênteses, também, sua estrutura, o enredo, personagens, ambientação, quando esses elementos são externos e não contam para a essência, mas que, ao contrário, são uma grande casca escondendo o que está dentro.

      Poderíamos, assim, chegar a conclusões interessantes como a de que alguns textos são essenciais e de que outros não têm essência. São vazios forrados apenas por entulhos. Outros teriam essência como imitação da essência de outros textos, não conseguindo iluminar nem o tema nem o leitor (o que quer dizer, não são arte). Ao contrário deles, seriam textos superiores os que iluminam tanto o tema que tratam quanto os leitores. É o caso de Tchecov.

      A propósito, a diferença entre filosofia e literatura poderia, inclusive, ser pensada nestes termos: a filosofia ilumina o tema, a literatura ilumina o tema e o leitor. Há ainda uma distinção interessante, feita pelo filósofo gaúcho Ernani Maria Fiori, ao diferenciar o artista do artesão. Para ele, o artesão é o que repete a técnica, a criatividade, a expressão, sem se interessar expandir a arte para algum lugar. Quem se coloca esse objetivo é artista.

 
O fenômeno literário é um universal

      Essa escavação pretende então possibilitar enxergar também o fenômeno literário como universal, retirando os escombros culturais e temporais para focar com sua lanterna a arte literária dentro da casca do mundo. Algumas perguntas em relação ao fazer literário seriam o que é fazer literatura independente de onde se faça ou quando se faça?, o que é a especificidade do fazer literário?, e existe literatura universal?

      Para iluminar um pouco este tema, podemos partir de um modelo explicitado pelo colaborador da New Left Review, o professor Franco Moretti. A pergunta a que ele pretende responder é se existe ou não uma "literatura mundial". Contra a idéia de "literaturas comparadas", Moretti afirma que o que existe em termos de literatura não passam de ramos de uma matriz: a literatura européia. Demonstra, analisando romances, novelas e poemas das mais distantes partes do mundo que, em nada, ou muito pouco, eles se diferem de seus modelos europeus. América Latina, Mundo Árabe, África etc importaram, através dos tempos, a literatura para seus países, dando-lhes, como diferencial em relação ao que se fazia na capital intelectual, uma certa cor local para seus escritos – até mesmo esse elemento, aponta Moretti, é essencialmente europeu, pois os europeus sempre encheram de cor local os seus romances, contos, novelas, poemas etc. Quer dizer: segundo Moretti, nem mesmo quando acrescentou algo ao modelo europeu a literatura de nenhuma outra parte do mundo teria feito outra coisa que, realmente, não fosse a literatura feita na Europa.

      Foi quase em 1600 que o espanhol Miguel de Cervantes, ao escrever Don Quixote de La Mancha, criava um gênero literário chamado romance. Europeu, portanto, o gênero foi exportado aos mais distantes cantos do mundo e, conforme Moretti, mesmo quando chega ao Oriente Médio – uma cultura bastante diferente da Ocidental – cultivado lá, o romance não se modifica em nada em relação à matriz. O que dizer, então, da tardia literatura russa, feita não só na parte européia do país, mas também na asiática? É tão européia quanto a feita na França ou Inglaterra, e só acrescenta costumes e culturas dos eslavos ao gênero romance. Não podemos esquecer que Nicolai Gógol, Iván Turgueniev, León Tostói e Fiodor Dostoiévski são também sublimes romancistas, mestres nessa arte européia.

      Antes da Rússia do século 19, a literatura já havia sido plantada entre nós, na América Latina. Mas foi no século 20 que alguns latino-americanos começaram a ser reconhecidos no mundo como escritores de primeira grandeza, destacando-se além dos prêmios Nobel – os famosos representantes da literatura fantástica – os argentinos Borges e Cortázar, entre outros importantes escritores não-europeus do século. Todos esses acrescentam algo novo à literatura universal, visto que, não estanque geográfica ou culturalmente, os escritores passam a fazer em muitos outros lugares do mundo a mesma literatura feita no boom. É impossível uma literatura comparada, portanto, segundo Moretti, porque Literatura é, antes, um sistema, que se desenvolve no mundo todo, mas é uma só literatura em qualquer parte em que vá.

 
Onda e árvore: dois modelos

      Moretti diz haver duas imagens de concepções de cultura. Uma é a de onda, outra a de árvore. No modelo "onda", as culturas são próprias e movimentam-se a partir de um núcleo até suas fronteiras, onde inicia outra cultura, como verdadeiras ondas. A comparação entre elas se dá no nível do comparatismo cultural. É o oposto do modelo "árvore", em que há um tronco inicial da cultura e todas as outras são ramificações dela. Há diferentes culturas humanas, mas todas elas são a "cultura humana". Há diferentes civilizações, mas todas elas formam a humanidade. No modelo "árvore", os galhos das culturas estão presos a uma idéia inicial, a um sistema com início histórico e geográfico presumíveis. A literatura forma um sistema.

      Moretti coloca o mundo exterior entre parênteses ao expor uma literatura universal que se expande por todo o mundo, embora tenha raízes na Europa. Mas uma fenomenologia da literatura colocaria entre parênteses até mesmo esse mundo exterior inicial, a partir do qual Moretti argumenta. A Europa de onde ela brota não é dona da literatura, mas uma casca dispensável na hora que se quer os verdadeiros frutos, que brotam com freqüência no Brasil, Argentina, Canadá etc. Seu modelo de cultura se comportando como árvore interessa para pensar a literatura e principalmente para mostrar que, numa análise de literatura comparada, a partir do outro modelo, o de onda, promovem-se cisões na literatura que dificilmente se sustentem na realidade. Nem língua nem o território parecem delimitar a literatura, a não ser que o observador a reduza a aspectos circunstanciais como a língua em que foi escrita, o tempo, a cultura, as condições climáticas em que nasceu etc.