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Para não mais esquecer: 40 anos da Chacina da Lapa

No Brasil de Geisel ainda se tortura e se mata 

"Comunico-lhe que o seu PCdoB acabou". Esta frase, dita por um policial-torturador ao dirigente comunista Haroldo Lima um dia após a sua prisão, mostra bem o nível de arrogância dos agentes da ditadura militar. Os fatos, porém, pareciam confirmar aquele trágico anúncio. Um jornal do dia 17 de dezembro, ecoando a opinião do regime discricionário, também estampava: "O PCdoB foi destruído". Esta não seria a primeira vez que frases como estas seriam pronunciadas e impressas com destaque na grande imprensa.

No dia anterior, 16 de dezembro, numa verdadeira operação de guerra, os órgãos de segurança haviam invadido uma casa modesta – localizada na Rua Pio XI, n. 767, no bairro da Lapa em São Paulo – e assassinado friamente dois dos mais importantes dirigentes comunistas brasileiros: Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. Poucas horas antes, outro dirigente, João Batista Drummond, havia sido morto durante uma sessão de torturas no DOI-CODI paulista. A versão mentirosa da ditadura foi que Ângelo e Pedro haviam resistido à prisão e que João Batista havia sido atropelado ao tentar fugir da polícia. Este foi o último massacre de militantes de organizações da esquerda que combatiam a ditadura.

Apesar de sua importância para a história brasileira, este acontecimento é ainda pouco conhecido. Tornou-se quase um senso comum a ideia de que o último assassinato político cometido pelo regime militar foi o que vitimou o jornalista Wladimir Herzog, em 23 de outubro de 1975, ou o que atingiu o operário Manoel Fiel Filho, morte ocorrida nas mesmas condições menos de três meses depois.

Os assassinatos destes dois militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ocorridos cerca de um ano antes do trágico acontecimento da Lapa, tiveram grande repercussão e desencadearam protestos de amplos setores da sociedade brasileira e no exterior. O escândalo levou à demissão do comandante do II Exército, general Ednardo Mello. Este representava o setor mais truculento do regime e se opunha à “abertura lenta, gradual e segura" apregoada pelo general-presidente Ernesto Geisel. Ednardo foi substituído pelo general Dilermando Monteiro, considerado um membro da ala liberal do regime. 

Para muitos, esta mudança de comando teria consolidado a transição para a democracia e posto um fim ao terrorismo de Estado, iniciado em abril de 1964 e radicalizado com a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968. No entanto, a Chacina da Lapa seria um duro desmentido dessa tese. No Brasil de Geisel e Dilermando, ainda se torturava e se matava aqueles que ousavam desafiar o poder militar. Foi durante este governo, por exemplo, que foram assassinados os últimos guerrilheiros do Araguaia e iniciou-se a operação de extermínio da direção do PCB.

Entre nós um traidor

A casa onde se reunia a direção nacional do Partido Comunista do Brasil somente pôde ser descoberta graças à colaboração de um traidor chamado Jover Telles. Este era membro do Comitê Central e havia sido preso pouco tempo antes, e concordou em colaborar com os órgãos de repressão na captura dos seus camaradas de partido.

Um agente da repressão confirmou que Jover foi preso no Rio de Janeiro três meses antes e havia decidido colaborar no desmonte da direção partidária “em troca de bom tratamento e emprego para ele e sua filha na fábrica de armas Amadeo Rossi, no Rio Grande do Sul”. Em 1996, Jover foi candidato a vereador pelo PPB de Paulo Maluf na pequena cidade que, ironicamente, chamava-se Arroyo dos Ratos.

Conforme foi revelado no livro Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha, de Taís Morais e Eumano Silva, no dia 8 de dezembro Jover Telles deu um depoimento cordial aos órgãos de repressão e no dia 11 se apresentou tranquilamente no ponto onde seria pego para ser transportado ao local no qual ocorreria a reunião da Comissão Executiva do PCdoB. Esta se realizou entre 12 e 13 de dezembro e no dia seguinte teve início a reunião do Comitê Central.

Mesmo sabendo que a casa estava cercada e que os membros da direção comunista poderiam ser presos e até mortos, ele calmamente participou de toda a reunião e durante os debates ainda se colocou entre aqueles que mais duramente criticaram a experiência armada ocorrida na região do Araguaia, considerando-a foquista.

Em 15 de dezembro, quando os participantes da reunião começaram a abandonar o local, sempre conduzidos pela dirigente Elza Monnerat e o motorista Joaquim Celso de Lima, o cerco policial se fechou e tiveram início as prisões, torturas e o frio extermínio dos líderes comunistas. Foram aprisionados, e depois barbaramente torturados, cinco membros do Comitê Central, Elza Monnerat, Aldo Arantes, Haroldo Lima, Wladimir Pomar, João Batista Drummond, além de dois militantes: Joaquim Celso de Lima e Maria Trindade. José Novaes, que teve a sorte de sair junto com Jover Telles, foi o único participante da reunião, além do traidor, que não foi preso. Se apenas Jover escapasse ileso atrairia a atenção sobre ele.

Na manhã do dia 16 de dezembro iniciou-se o derradeiro ataque contra a casa na qual ainda se encontravam dois membros do Comitê Central: Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. Segundo testemunhas, eles estavam desarmados e não lhes foi dada nenhuma chance de defesa. A repressão chegou atirando. O corpo de Pomar tinha cerca de 50 perfurações de bala.

A polícia política remontou a cena do massacre, colocando armas ao lado dos corpos inermes, e divulgou a falsa versão de que eles haviam sido mortos durante um intenso tiroteio. Já em plena abertura política, a maioria dos órgãos da grande imprensa vendeu a versão oficial, sem grande contestação.

Cerco e aniquilamento

Nesta operação policial-militar, a repressão também pretendia assassinar João Amazonas, como se depreende da entrevista de Dilermando Monteiro, publicada em 13 de dezembro de 1978 na revista ISTO É. Nela, o general afirma: "Nós descobrimos que naquele dia iria haver uma reunião em tal lugar, com a presença de tais e tais elementos, e aí fomos um pouco embromados, porque constava para nós que o João Amazonas estaria presente e o mesmo estava na Albânia, mas para nós ele estaria presente naquela reunião".

Pedro Pomar deveria ser o membro da direção que viajaria para China e Albânia para informar da derrota da guerrilha e participar do congresso do PTA. Mas a doença de sua esposa o fez trocar de lugar com João Amazonas. A viagem não planejada, e nem desejada, salvou Amazonas de uma morte certa. Estes dois dirigentes comunistas iniciaram sua amizade e militância em Belém do Pará, ainda na década de 1930. Foram deputados federais e responsáveis pela reorganização do Partido no final do Estado Novo e no início da década de 1960, quando houve a grande cisão do movimento comunista brasileiro. 

Em 1976 o PCdoB era a única organização revolucionária clandestina que ainda se mantinha minimamente organizada, com uma direção nacional que conseguia se reunir periodicamente e um jornal, A Classe Operária, que circulava com certa regularidade. Para os generais, era preciso primeiro limpar o terreno político da presença indesejável das organizações de esquerda, especialmente comunistas, para depois implantar o seu modelo de democracia, restrita e elitista.

A repressão, depois de destroçar as organizações que promoveram a guerrilha urbana, partia para desmantelar o Partido que realizara o principal movimento guerrilheiro contra a ditadura militar: a Guerrilha do Araguaia. Entre dezembro de 1972 e março de 1973, foram assassinados os dirigentes comunistas Carlos Danielli, Lincoln Cordeiro Oest, Luiz Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque. Nos anos seguintes, entre 1974 e 1975, tombaram Ruy Frazão e Armando Frutuoso. Todos morreram na tortura.

O ódio dos generais reacionários contra o Partido que havia dirigido a experiência guerrilheira no Araguaia era enorme. Destruir o PCdoB era o sonho obstinado desses senhores, um sonho que parecia ter sido realizado naquela manhã de 16 de dezembro de 1976.

A notícia do crime correu o mundo e ocorreram várias manifestações de protestos em vários países. Destacam-se as moções do PC da China e do Partido do Trabalho da Albânia. Em Portugal ocorreu um grande ato que reuniu milhares de pessoas em repúdio ao massacre da Lapa e exigindo a liberdade dos presos políticos. Um manifesto com 40 mil assinaturas também foi entregue ao embaixador brasileiro em Lisboa. A mais bela homenagem foi a música Sangue em Flor, composta em homenagem aos mártires da Lapa. Na sua última estrofe dizia: “Onze vidas na prisão/Com planos de justiça e pão/ Nas mãos sangrentas da tortura/ Não há sol na ditadura/ Nem sangue que vença a razão”.

Tal qual a Fênix

Passados 40 anos, o sonho das elites conservadoras não se realizou. O Partido Comunista do Brasil não só sobreviveu como se fortaleceu. Menos de dois anos depois do massacre, em 1978, o Partido já estava reorganizado e realizava a sua VII Conferência Nacional. Ela armaria, teórica e politicamente, o PCdoB para participar e influir nas grandes lutas populares e democráticas que eclodiriam no país nos últimos anos da década de 1970 e início da década de 1980. O Partido teve participação destacada na luta contra a ditadura militar, pela Anistia, contra a carestia, em defesa dos direitos sociais dos trabalhadores, pelas Diretas já! e pela vitória do candidato único da oposição no Colégio Eleitoral. Em 1985, com o fim da ditadura militar, conquistou sua legalidade. Milhares e milhares de trabalhadores e estudantes viriam engrossar as fileiras do Partido dos mártires do Araguaia e da Lapa.

Atualmente, o PCdoB vive, floresce e se capacita cada dia mais para ser uma força importante no processo de transformação social do qual o Brasil tanto necessita. Por outro lado, os homens e mulheres que pertenceram a esta organização e morreram defendendo a democracia, a soberania nacional, os direitos sociais dos trabalhadores e o socialismo continuam vivos no coração de cada militante da causa social e são motivos de orgulho do nosso povo. Quanto àqueles que os prenderam, os torturaram e os assassinaram estão “mais mortos que os próprios mortos” e são obrigados a viver nas sombras. Seus nomes não podem nem mesmo ser pronunciados. Pelo contrário, ao chamado de cada nome dos heróis da Lapa e do Araguaia, responderemos sempre e em uma só voz: Presente!

* Este texto é uma versão modificada de artigo integrante do livreto publicado pelo então Instituto Maurício Grabois (IMG) quando dos 30 anos da Chacina da Lapa, em 2006.

** Augusto Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonase Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução.