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Vital Nolasco lança memórias, desde AP ao PCdoB

PREFÁCIO  

Michel Marie Le Ven*      

Em um memorando “ultrasecreto” ao Presidente dos EUA a CIA narrava o episódio da prisão de três padres franceses e um diácono brasileiro, em BH, em 1968, como uma paronóia dos militares:

“Para a CIA, paranóia excessiva de militares resultou no AI-V... O episódio da prisão dos padres franceses despertou uma análise cáustica da CIA sobre a ditadura aliada de Washington:.. sob a acusação de ligações com a JUVENTUDE OPERÁRIA CATÓLICA: Michel Le Ven, François Xavier Berthou, Hervé Groguennec e José Geraldo da Cruz, ficaram presos 72 dias. Enquanto o caso dos três padres tem algum mérito, é excessiva a preocupação dos militares com a subversão, real ou imaginária, que pode se tornar mais perigosa”.(FSP, 14/01/16)

De fato não foi somente um regime mais autoritário, mas uma ditadura cruel e prolongada!

Foi nesse quadro que Eustáquio Vital Nolasco e eu, como assistente da JOC, nos encontramos em 1968. Fazíamos parte da equipe regional da JOC mineira, junto com Florípes, Márcia, Luizinho e outros jovens... Participamos da organização de um Congresso Latino-Americano da JOC, que se realizou em junho de 68, em Olinda. Nós brasileiros encontramos lá outros irmãos e militantes operários do Paraguai, Uruguai, Argentina. Foi um intenso trabalho de duas semanas ininterruptas para os jovens jocistas e de quase dois meses com os assistentes religiosos. Acredito que nós todos fomos profundamente marcados pelo espírito de identidade latino-americana e optamos por uma compreensão mais militante da JOC, que modificou a nossa atuação e aproximação com as classes operárias, em Minas Gerais. No nosso retorno a Belo Horizonte encontramos algo de inédito para aqueles momentos de repressão: os metalúrgicos estavam em greve com ampla mobilização de suas bases. Isso exigiu de nós uma participação política decisiva e de resistência à ditadura, que envolvia denúncias de prisões e torturas de companheiros e apoio solidário aos operários e suas famílias em Belo Horizonte e Contagem.

A ação operária e sindical da JOC foi-se transformando na busca de sermos fiéis às decisões do Congresso de Olinda e expandimos a organização e a abrangência da JOC, como movimento de “ação católica”. Eustáquio Vital se destacava na dimensão política e agora sabemos de sua inserção na Ação Popular – AP, que aos poucos foi se juntando, em parte, ao Partido Comunista do Brasil, PC do B, como ele nos revelou aqui. E a nossa casa, dos Agostinianos da Assunção, no bairro Horto, em Belo Horizonte estava sempre aberta a todos. Lembro especialmente da Gilse e Abel, figuras históricas do PC do B...

Mas um dia de dezembro de 1968 irrompeu um ato, intitulado AI-V, que se apoderou do Brasil e durou mais de 20 anos. Nossos sonhos tiveram que tomar novos rumos e novas feições. Foi o tempo de nossa prisão e de tantos outros e pelas quais a CIA se interessou tanto. Além dos padres, toda a equipe nacional e os assistentes da JOC foram presos no Rio de Janeiro. Nesse tempo o nosso companheiro Eustáquio Vital desapareceu para nós... Nas décadas seguintes não tivemos notícias de Eustáquio, mas sempre lembrado com a certeza do seu envolvimento nas lutas da classe trabalhadora. E não estávamos errado, como nos conta aqui, com riqueza de detalhes. Em São Paulo, ele continuou se fazendo e fazendo a luta da classe trabalhadora no Brasil. Seu relato merece ser lido e disseminado para alimentar a memória de classe e da organização sindical e política dos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil.

Somente em 2014 consegui voltar a falar com ele, em São Paulo, onde se fez um grande militante do PC do B.  Através de uma de suas irmãs, Fátima, cheguei a ele. Fiquei sabendo da morte precoce de outra irmã, Djanira, grande companheira nossa, da JOC de Belo Horizonte, que tinha falecido em Recife. Mas a família continuava ligada aos bairros Jardim América, Nova Granada em Belo Horizonte, assim como, ao Padre José Miranda, uma referência importante na sua militância, como ele relata aqui. O leitor poderá encontrar toda uma riqueza de detalhes dessa história nesse livro, que agora tenho o prazer de prefaciar.

Aprendemos com sua história que o período da ditadura e o ano de 1968 foram um tempo de homens e mulheres, que o viveram de seu lugar, homens e mulheres do povo, trabalhadores, sindicalistas e até deputados “caçados e cassados” em 1964 por terem lutado e sonhado e que o viveram com sua história de “silêncios”, de falas e ações. Escrevi, com uns colegas, um texto intitulado “silêncios que falam” que foi apresentado na Conferência Internacional de História Oral no Rio de Janeiro em junho de 1998, quando foram apresentadas mais de 300 intervenções vindas de múltiplas regiões do mundo (México, Argentina, Brasil, mas também Alemanha, França, Rússia,Turquia,Espanha, África do Sul...) Todas as falas recolhidas dizem dos sentimentos, das emoções de pessoas que viveram essas ultimas décadas de guerras,  ditaduras, sonhos, atos, fatos e palavras. Estamos, hoje,  no momento de escutar essas vozes, muitas e variadas. Não só para que a historia possa ser escrita “as avessas”,   mas para que as pessoas vivas sejam mais felizes, mais donas de sua própria fala. Essa é a forma, atual, de nosso combate para ”resistir a crueldade do mundo”. E também o nosso prazer de contar a historia, a história de nossos feitos e de nossos não-feitos. Podendo também, criar cultura, formando tradição, armazenando bens imateriais e espirituais, confortando a nossa memória. A memória de um povo que no dizer “interessado” das elites, “não tem memória”. Então somos hoje feitos de 1964, 1968, 1978, 1989, anos onde aprendemos a dizer não e ensinamos novas lições, numa resistência e numa aprendizagem que se transformou em poder e saber.

Vamos agora às qualidades do livro de Vital Eustáquio Nolasco. Trata-se de entender como o autor chegou a compor esse livro a respeito de toda sua trajetória de vida e militância, Ele é de uma riqueza histórica e pessoal extraordinário! O autor mesmo nos diz que pesquisou quando necessário e quando a memória pessoal exigia. Ele mesmo nos diz que é uma História de Vida e em termos de metodologia científica podemos dizer que é uma autobiografia. Quer dizer, ele tem a coragem de falar de si, e ao mesmo tempo, de contar a história social e política do Brasil. Fazendo uma História que recolhe fatos e experiências e nos dá uma compreensão da militância sindical e partidária da cidade de São Paulo, vista e vivida por um comunista, com origem cristã e hoje no Partido Comunista do Brasil. O que enriquece e democratiza a história partidária e sindical relatadas, em outras obras, pelo Partido dos Trabalhadores, do ABC paulista. O que revela uma capacidade extraordinária de um engajamento político-partidário do militante Vital. Engajamento aqui no sentido dado pela JOC, significa uma entrega ao compromisso social, como uma missão efetiva e afetiva. Porque é preciso amar muito ao próximo e à causa para se doar inteiro como fizeram Vital, sua esposa e outros.   Pessoalmente acho que o Vital faz parte daqueles  “heróis populares” da JOC, que gostaria de citar. Alguns já falecidos como Dazinho, operário-deputado, “caçado e cassado”, Maria do Carmo, mineira, paulista e exilada, recentemente falecida na Bélgica, e muitos outros religiosos e leigos que buscaram construir uma Igreja digna e fértil. Falo brincando que convivi com dois santos: Dazinho e Floripes, Flor, como a chamávamos. São Paulo também tem os seus “Santo Dias” e outros homens e mulheres fiéis aos compromissos com os direitos humanos fundamentais. De onde vem essa capacidade criativa e de resistência de tantos atos, não de caridade, mas de justiça? São legados deixados que aparecem sempre novos, em direitos conquistados, em alguns programas sociais marcados pela solidariedade e a noção profunda de cidadania ou em articulações fecundas, como os Fóruns Sociais Mundiais, realizados no Brasil e em outras partes do mundo, contra um capitalismo desumano e destrutivo.

E agora Vital? A sua (a nossa) tarefa não terminou. Você fez História e agora é preciso contá-la, e mais que isso, publicá-la para politizá-la. As ciências sociais moderna não têm apreciado muito o falar de si, como método de científico, mas muitos autores, no qual me incluo, têm lutado para afirmar a liberdade de pensar e pesquisar... Mas falar em História de Vida, como metodologia científica alternativa significa, de um lado, falar de história e de outro de  oralidade – alguém que fala e outro que escuta, palavra e escuta, interlocução e conversa, e possivelmente, escrita e publicação. Essa e outras metodologias de pesquisa e trabalho popular inventadas nesse período, em plena ditadura, por caminhos complexos, confirmam que pesquisar nas ciências do homem, é promover participantes, torná-los de objeto a sujeitos, que falam, que sofrem, que sonham. Enfim precisamos, hoje, de cultura de formação e não só de informação. De religar passado-presente-futuro.

Participei, em 2013, do esforço feito no 3º  Seminário Internacional “o mundo dos trabalhadores e seus arquivos”, organizado pela CUT/Nacional e o Arquivo Nacional e apresentei um trabalho dizendo que é preciso tornar os arquivos sindicais e da classe trabalhadora atuantes, vivos. Nesse sentido gosto de citar uma pequena história do Michelet, historiador do tempo da revolução francesa, que para não ser fuzilado deveria percorrer a França para recolher histórias e documentos produzidos pelos camponeses.  Ao retornar a Paris, com o material recolhido após longa viagem, diante de montes de papéis e documentos exclamou: “eu vou fazer falar vocês”! Então, o que está escrito, fala! Para legado e felicidade das futuras gerações desejamos que apareçam muitos e muitas contadoras de histórias, sujeitos falantes da história recente do Brasil.  Essa obra é um convite precioso para que os leitores, se tornem, ele mesmos,  falantes, escritores de sua e da história brasileira, ou como nos diz o pesquisador e educador, Alex Lainé: para que façamos “de sua (nossa) vida, uma história”.

Ribeirão das Neves, janeiro de 2016.

*Professor-doutor, aposentado da UFMG.