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O claro e o obscuro da busca da verdade e da justiça no Cone Sul

Ainda que apresentando um modus operandi similar, as ditaduras militares da América do Sul, baseadas na doutrina de segurança nacional imposta durante as décadas de 70 e 80, elaboraram estratégicas de consolidação de formas particulares.

De maneira análoga, os processos judiciais implementados em cada país após os governos ditatoriais, voltados à busca da memória, da verdade e da justiça em função das graves violações de direitos humanos cometidas, também têm as suas características próprias.

Esse foi um dos temas debatidos na Jornada sobre Perspectivas Comparadas dos Processos de Memória, Verdade e Justiça no Cone Sul, realizada terça-feira no Centro Cultural da Memória Haroldo Conti, localizado nos prédios do ex-centro de detenção e tortura da Escola de Mecânica da Armada (ESMA), em Buenos Aires.

A atividade convocada pelo Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH) e pela Associação Civil de Correspondentes Estrangeiros na Argentina, com apoio do programa do governo argentino “Memoria em Moviendo”, reuniu especialistas de direitos humanos do Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai e Argentina, com o objetivo de comparar as realidades nacionais em matéria de direitos humanos e contribuir para a promoção de uma identidade regional sobre o tema.

Com o fim das ditaduras militares, os processos judiciais em cada país despertaram complexos debates. Temas como a imprescritibilidade e não anistia dos crimes contra a humanidade, a intervenção de tribunais militares, as garantias dos acusados, as dificuldades probatórias e processuais para casos com múltiplas vítimas e acusados e ocorridos há muitos anos, a cumplicidade de operadores jurídicos, a cooperação ou concordância das forças armadas e de segurança com as investigações e os mecanismos para proteger de modo integral vítimas, testemunhas e funcionários, foram alguns dos problemas enfrentados pelo conjunto dessas sociedades para dar conta desse obscuro passado.

Se é verdade que os processos nacionais são distintos, em muitos casos especialmente quanto aos tempos de surgimento dos debates, aos temas em discussão, às políticas adotadas, ao interesse públicos e os atores sociais e políticos envolvidos, é certo também que existem vários elementos comuns e uma forte vinculação entre as experiências locais.

Além disso, há traços compartilhados que distinguem o conjunto de países da região de outras experiências em matéria de verdade, justiça e memória relativas aos direitos humanos no resto do mundo.

Neste sentido, os processos de justiça têm se caracterizado por serem impulsionados mediante políticas públicas desenhadas e implementadas em nível doméstico, não utilizando leis ou tribunais especiais, mas sim apelando às legislações nacionais e aos juízes regulares.

Esses processos também contaram com um forte envolvimento das vítimas, familiares e organizações sociais, respeitando ao mesmo tempo os compromissos internacionais e instrumentos de direitos humanos mais relevantes na área.

Falando sobre o processo brasileiro, Marcelo D. Torelly, coordenador geral de Memória Histórica e Secretário-Executivo Adjunto da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça do Brasil, destacou positivamente a recente criação da Comissão nacional da Verdade para estabelecer as violações de direitos humanos cometidas entre 1964 e 1988 pela ditadura militar.

Torelly assinalou que esse é um passo importantíssimo para uma sociedade que, até aqui, permaneceu alheia às verdadeiras implicações da ditadura no país, onde, por exemplo, “não só se desconhece a articulação envolvida na Operação Condor, mas também sua própria existência”.

Ele destacou também que, se por um lado, a lei de anistia adotada pela ditadura em 1978 impediu a possibilidade de julgar as violações de direitos humanos, os debates sobre sua validade constitucional foram reativados à luz da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund.

No Chile, apesar da lei de anistia promulgada por Augusto Pinochet, desde o ano 2000 ganhou força a possibilidade de julgar acusados de crimes contra a humanidade. A detenção e Pinochet em Londres, no final de 1998 e sua renúncia ao posto de senador vitalício assinalaram um ponto de inflexão para o início da obtenção de justiça.

Segundo a jornalista Mônica González, hoje, 773 ex-agentes de serviços de segurança foram processados e/ou condenados por crimes associados a violações de direitos humanos. Um total de 245 receberam sentenças condenatórias definitivas confirmadas pela Corte Suprema, entre eles, sete altos oficiais responsáveis pelos aparatos de segurança da ditadura.

O caso paraguaio é o que apresenta menos avanços. Yudith Rolón, diretora da Direção geral de Verdade, Justiça e Reparação da Defensoria Pública, observou que após mais de 30 anos de ditadura e 10 anos de transição democrática, só em 2003 se criou a Comissão Nacional de Verdade e Justiça, cujo relatório final desenvolveu exaustivamente as características do regime do ditador Alfredo Stroessner, descrevendo os principais crimes de seu governo cometidos de maneira massiva e sistemática.

Não obstante a crueza deste informe, o Poder Judiciário paraguaio não levou adiante causas penais. Cabe destacar que não foi aprovada nenhuma lei da anistia no Paraguai. Somente nos últimos anos foram realizadas algumas investigações e abertos alguns processos judiciais, como a busca de 100 pessoas desaparecidas em prédios da Polícia Nacional paraguaia.

O processo uruguaio teve avanços e retrocessos nos últimos 25 anos. Apesar da vigência da lei de caducidade, sancionada pelo parlamento em 1986, sobre a pretensão punitiva do Estado a respeito dos delitos cometidos durante a ditadura (1973-1985), e aprovada por dois referendos (1989 e 2009), a demanda dos familiares e organismos de direitos humanos por verdade e justiça nunca foi abandonada. Em 2005, o governo uruguaio modificou sua interpretação da citada norma, o que possibilitou a abertura de novas ações, hoje em curso.

Outro avanço foi a decisão da Corte Suprema de Justiça do Uruguai que, em 2009, declarou inconstitucional a lei de Caducidade e incompatível com os padrões internacionais de direitos humanos.

O processo de justiça no Uruguai recebeu um forte impulso da Corte Interamericana de Direitos Humanos quando, em uma sentença promulgada em fevereiro deste ano, estabeleceu que o Estado uruguaio deve conduzir e realizar em prazo razoável a investigação sobre as vítimas do caso Gelman, desaparecidos na Argentina, a fim de esclarecer os fatos, determinando as correspondentes responsabilidades e aplicar as sanções cabíveis.

No momento, as ações judiciais no Uruguai tiveram como resultado um total de 18 pessoas processadas, entre elas, o ditador Juan María Bondaberry e seu chanceler, Juan Carlos Blanco.
 

Fonte: Carta Maior