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Marly Vianna: A revolução estava nas ruas e foi verdadeiramente popular

Durante o evento, realizado em São Paulo, por Sesc e Boitempo Editorial, a professora ministrou a aula “A revolução é dada pelos desesperados”, no último dia 27. Na ocasião, avaliou que todos que se preocupam com política têm muito a aprender com a experiência de 1917.

Marly iniciou sua apresentação ressaltando a situação histórica em que se deu a Revolução Russa. “A história não é linear. Temos que discutir, enquanto historiadores, porque aquela opção foi escolhida e não outra. Não podemos lidar apenas como se a história fosse uma sucessão de causas e efeitos”, disse.  

1905

Marly falou sobre diferentes momentos da história do movimento revolucionário russo. Para isso, resgatou o período tsarista. “Era de uma autocracia e de uma violência absolutas. O tsar não admitia sequer falar em Constituição”, qualificou.

Segundo ela, grupos dentro da nobreza, que percebiam que era melhor “perder os anéis que os dedos”, tinham feito algumas propostas de liberalização do regime, mas o tsar não consentia.

Em janeiro de 1905 aconteceu então o Domingo Sangrento. Operários foram fazer uma petição ao tsar, mas a manifestação transformou-se em massacre, servindo de detonador para movimentos revolucionários contrários ao regime.

“A repressão era brutal. Houve, nessa época, presumidamente,  15 mil mortos, 45 mil deportados. Outra coisa comum no tsarismo era o antissemitismo. A matança de judeus foi impressionante”, citou Marly.

Ela resgatou que é neste momento que surge a primeira forma de organização dos trabalhadores, os sovietes – conselhos, em russo –, que viriam a ser depois fundamentais como organização política na Revolução Soviética. “Esse movimento revolucionário de 1905 vai abrir espaço político para os operários e para o campo”, disse.

A guerra

Marly ressaltou o papel da Primeira Guerra Mundial para os acontecimentos na Rússia, que entrou no conflito no fim de julho de 1914. “A guerra mexeu com a sociedade russa. Entre algumas vitórias, houve muitas derrotas. O Exército estava mal preparado, mal equipado, mal vestido. E  as deserções vão aumentando. Contam-se em milhões os mortos, feridos e desertores. Isso movimenta a situação  política, fazendo com que protestos operários nas cidades e  no campo sejam grandes”, apontou.

Fevereiro de 1917

O contexto desemboca então na Revolução de Fevereiro de 1917, que derrubou o tsar e estabeleceu um Governo Provisório. “É um movimento revolucionário muito importante, a primeira revolução russa, a revolução republicana burguesa e, especialmente, antitsarista. É interessantíssima porque não tem nenhum partido político, nenhum líder. Foi espontânea e popular, feita pelas mulheres”, descreveu a historiadora.

As mulheres vinham substituindo a mão de obra masculina nas fábricas, uma vez que os homens estavam morrendo nos campos de batalha. No dia 23 de fevereiro de 1917, um grupo de operárias de uma fábrica têxtil saiu às ruas, em greve, para protestar.

“Foi algo sem direção, mas que ganhou importância pela espontaneidade e pela insatisfação. Com este movimento revolucionário de fevereiro de 1917, o tsar é obrigado  a renunciar em nome do irmão, mas o irmão não aceita e é proclamada a república em fevereiro de 1917”, narrou Marly.

Sobre o contexto em que se desenrola o levante popular, ela detalha que, com o tsar assumindo o comando militar da guerra em 1916, o país passou a ser governado pela tsarina Alexandra. Eles tiveram cinco filhos, quatro meninas e um menino. Ocorre que o filho, que deveria suceder o tsar, era hemofílico, muito doente.

E foi justamente essa enfermidade que fez com que Alexandra tivesse se apegado ao que Marly chama de “um místico charlatão”, Grigori Rasputin. “Ele conseguia acalmar o tsarevich. Isso fez com que a tsarina tivesse verdadeira adoração por ele, que termina por ficar mandando na Rússia: fazia e desfazia ministro. Era uma charlatão. E a situação russa vai piorando, não só do ponto de vista da população, como também na própria nobreza. E Rasputin vai ser assassinado por nobres, porque a insatisfação era total”.  

Manter a revolução burguesa ou avançar?

A historiadora avalia que o período que vai da Revolução de Fevereiro até a tomada do Palácio de Inverno, em outubro, é de uma riqueza política imensa. “A revolução tinha derrubado o tsar. Era antitsarista e antiguerra. E uma república liberal burguesa era muito mais avançada que um governo czarista. Então a grande discussão no país e dentro do partido bolchevique era sobre o que fazer: manter a revolução democrático-burguesa ou avançar?”.

A esmagadora maioria - mesmo entre os bolcheviques - avaliava que era melhor consolidar a revolução democrático-burguesa. Ponderava que seria impossível avançar, porque a Rússia não estaria preparada para um governo socialista.

De acordo com Marly, em 1917, houve o que muitos chamam de dualidade de poder. “Na correlação de forças, você tinha um grupo de extrema-direita, o grupo que toma o poder e tinha o povo em geral. No poder, estava a república chefiada pelo príncipe Lvov e Kerenski [ministro do Interior que depois viria a ser ministro da Guerra]. Mas você tem os sovietes de Petrogrado, que se negavam a aceitar as diretivas do governo. E, durante todo esse tempo, os camponeses também estavam tomando as terras, e os operários tentando assumir o comando das fábricas. Institucionalmente tinha dois poderes, mas, na prática, havia vários outros poderes”, detalhou.

A partir de meados de 1917, líderes revolucionários que estavam presos ou exilados começam a voltar à cena. “Quando Lênin, que estava exilado na Suíça, retorna, já tinha escrito as “Cartas de Longe” e já falava da necessidade de avançar, assumindo o governo com caráter socialista. Quando chega em abril à Estação Finlândia, vai ter as famosas “Teses de Abril”, que, para mim, são a certidão de nascimento da Revolução Russa”, disse a professora.

Ela sublinhou a capacidade política de Lênin, devido a um profundo conhecimento do marxismo e da realidade russa. “Ele percebe imediatamente a situação criada e lança, praticamente, um governo socialista. Ele fala: ‘nenhum apoio ao governo provisório’. Diz que será um grande retrocesso, depois da organização dos sovietes e do papel político que eles têm, retroceder para apoiar uma república burguesa”.

Para a historiadora, o líder revolucionário não ficou preso ao marxismo, “como se fosse uma religião”. A expectativa de Marx era de que a revolução se daria nos países capitalistas avançados. “Mas Lênin entendeu que ali se tratava de um momento revolucionário. Ele também esperava que a revolução se desse em outros países, principalmente na Alemanha, onde o proletariado era muito forte. Mas você tem esse período de discussões intensas e importantes”, afirmou.

Em julho de 1917 há uma tentativa de golpe de Estado pelo general Kornilov. Kerenski queria continuar a guerra, embora o fracasso e a insatisfação fossem muito grandes. Generais de extrema-direita avaliam então que o governo liberal não daria conta do recado, abrindo espaço para o movimento revolucionário. Nesse sentido, acham que é preciso tirá-lo do poder.

“Eles se unem aos monarquistas e tentam o golpe. Com isso, para se manter no poder, Kerenski, que já estava desarmando os operários, colocando o partido bolchevique na clandestinidade, precisa permitir que os proletários atuassem. E não só isso. Os marinheiros de Cronstadt desceram e derrotaram o golpe.

E, de julho a outubro, vai num crescendo a conquista dos bolcheviques pelo poder”, contou.

Segundo a professora, as palavras de ordem dos bolcheviques eram: pela paz, pela tomada das fábricas, pela entrega das terras aos camponeses e a questão das nacionalidades.

“A paz era o ponto mais sentido. A guerra estava destruindo a Rússia. E vai ficando claro que o único grupo que quer a paz são os bolcheviques – para não ser injusta, há também uma ala dos menchevique e os anarquistas. Os únicos que defendiam a tomada de terras e a ocupação das fábricas eram os bolcheviques.  Eles vão ganhando força, até que no dia 25 de outubro, Lênin dá a palavra de ordem: ‘todo poder aos sovietes’”, descreveu.

De forma pacífica e sem derramamento de sangue, o Palácio de Inverno foi tomado e caiu o governo provisório.

Revolução popular     

 Marly Vianna disse então que muitos detratores do movimento revolucionário acusam aquele momento de ter sido um golpe, uma vez que Lênin não esperou a realização do II Congresso dos Sovietes, que estava marcado para o mesmo dia 25 de outubro, tomando o Palácio de madrugada.

“Uns não queriam a tomada do Palácio e outros queriam que ela tivesse sido aprovada no Congresso. Mas por que não foi um golpe, a meu ver? Na mais absoluta formalidade, eles não esperaram o consentimento dos sovietes. Mas a revolução estava nas ruas: as fábricas tomadas, as terras tomadas”, defendeu.

Quando veio a notícia da queda do governo provisório, a maioria dos mencheviques e dos social-revolucionários deixam a sala do Congresso, e os bolcheviques vão ficando isolados dos grupos políticos, mas não da população, afirmou a professora. No fim, o Congresso aprovou a tomada do poder e votou seus primeiros decretos – paz, pão e terra.

Tratado de Brest-Litovsk e as invasões estrangeiras

A historiador ressaltou que havia um plano para o desenrolar dos acontecimentos, mas nem tudo correu como se esperava. Lênin falava em uma paz justa e sem anexações, algo que foi impossível, apontou.

“E era impossível manter a revolução e continuar na guerra. O mais importante era impedir a volta do tsarismo e do próprio capitalismo.” Lênin é então obrigado a assinar, em 3 de março de 1918, um tratado de paz com a Alemanha, completamente desfavorável, perdendo boa parte de seu território – em especial a Ucrânia. Era o tratado de Brest-Litovsk.

Muitos bolcheviques, inclusive, ficaram contra o tratado, que terminou sendo revisto depois. Mas, em seguida, veio a Guerra Civil, momento crucial para os rumos da revolução.

“Primeiro, o Exército Branco se constitui contra os bolcheviques lutando contra a república dos sovietes desde o início. Então você tem, dentro da Rússia, eles lutando contra os bolcheviques. E, logo que acaba a guerra, tem as invasões estrangeiras”, relatou a professora.

Em  maio de 1918, começou a Guerra Civil, com o levante da Legião Tcheca. A ela se juntaram centenas de voluntários contrarrevolucionários.

“Os aliados iniciaram a intervenção: tropas anglo-francesas desembarcaram em Murmans e depois em Arkangel. Guerrilheiros ucranianos combatiam os alemães na Ucrânia quando os aliados desembarcavam 100 mil homens em Vladvostok. No sul, o general monarquista Denikin mobilizou um exército de voluntários e, em novembro, o almirante Kolchak assumiu o comando contrarrevolucionário. Tropas francesas desembarcaram em Odessa e ocuparam o Sul da Ucrânia e a Criméia. Os ingleses, por sua vez, o Cáucaso, Kuban e o leste de Don. No início de 1919, os soviéticos estavam cercados“, narrou.

Era essa a situação colocada para a construção do jovem Estado soviético. Os exércitos internos combatendo, as invasões estrangeiras e o abandono de vários grupos políticos, resumiu.

“Essa guerra civil lembra um pouco o Vietnã. Como um país minúsculo conseguiu vencer os Estados Unidos? Foi a força moral e a população apoiando firmemente, porque sabia que, da vitória dos soviéticos e bolcheviques, dependia a luta pela paz,  pelo pão, a tomada das fábricas, o fim da exploração. Foi uma revolução verdadeiramente popular”, opinou.

A Guerra trouxe a fome, a cólera, o tifo e a gripe espanhola. De acordo com Marly, houve casos de canibalismo e há correspondências de Moscou dizendo que fábricas fecharam porque operários não tinham condições de trabalhar por causa da fome. “Foi uma luta terrível, que devastou a Rússia. Além disso, o inverno foi fortíssimo e, no verão, houve uma seca extraordinária. Os exércitos estrangeiros não demoraram muito lá, mas ficaram apoiando esses exércitos de dentro da Rússia”, disse.

Dificuldades e dilemas

Nessa situação, foi criado o comunismo de guerra, que significou a requisição no campo de todo o excedente, que era a única maneira de sustentar o Exército Vermelho, indicou.

“O exércitos estrangeiros apoiavam qualquer coisa, contanto que atacassem os bolcheviques. A grande questão não era invadir a União Soviética, não queriam que fosse colônia deles. Mas era preciso esmagar a ideia do comunismo, a ideia de que o capitalismo não é eterno, de que operários podem chegar ao poder”, afirmou.

Quando terminou a Guerra Civil, em 1921, o país estava devastado. Milhares de pessoas haviam morrido e os níveis econômicos chegavam a padrões anteriores a 1907, algo que só iria se recuperar em 1930.  A tragédia dos conflitos acarretaram enorme descontentamento no campo e nas cidades. Começam a haver greves e manifestações.

Vários episódios exemplificam as dificuldades por que passava a República dos Sovietes. Um destaque é a Revolta dos Marinheiros de Crontadt, outrora garantidores da revolução.

“Os anarquistas vão entrar com uma palavra de ordem: ‘sovietes sem bolcheviques’. Pediam eleições livres. E essa palavra de ordem foi comprada pelos marinheiros. O trágico é que as reivindicações econômicas eram justas. Eles tinham fome e frio e atribuíam isso ao governo dos bolcheviques. E começaram com uma série de exigências, entre elas a de afastar bolcheviques”, analisou a historiadora.

A situação levou a um dilema. “O que fazer? Logo ali naquela fronteira você vai abrir? Imediatamente, a reação veio de Leningrado. Tentaram conversar, mas foi impossível. Os marinheiros não aceitam: ou os bolcheviques estão fora ou não aceitariam acordo. O outro lado também não cedia. Os marinheiros foram atacados e derrotados. É nessa ocasião que Lênin  diz a célebre frase: ‘foi necessário, mas fomos longe de mais”’.

Em 1921, Lênin criou então a Nova Política Econômica (NEP).  “Era impossível criar o socialismo naquelas condições. Então ele abre a economia, amplia liberdades do setor”, explicou a professora.  As terras continuam com os camponeses, as fábricas com os operários. Mas passa-se a permitir comércio interno, pequenas propriedades privadas no campo e nas indústrias. “E isso possibilitou uma retomada da economia”.

No ano seguinte, Lênin sofreu o primeiro derrame. Morreu em janeiro de 1924. O poder passou então às mãos de Joseph Stálin. “Eu considero que Stálin já não tem nada a ver com o período revolucionário leninista, foi uma contrarrevolução”, opinou  Marly. Para ela, os dois grandes dirigentes revolucionários foram Lênin e Trotski.

Lições da revolução

Ao encerrar sua apresentação, Marly chamou a atenção para alguns aspectos que tornam importante discutir a Revolução Russa, mesmo depois de cem anos.

“A primeira questão é a base popular. Ninguém vai fazer revolução sozinho. Nem um grupo, nem um partido. Tem que ter o povo a seu lado. Se você não tem a classe operária, os camponeses, os funcionários mobilizados, você pode fazer propaganda – deve fazer –, mas não vai fazer revolução”, vaticinou.

Outro aspecto que ela apontou é a necessidade do partido. “Se é um partido do tipo leninista, se é  de massas,  isso depende da circunstância. Mas um partido político é fundamental para organizar a revolução”, enfatizou.

E, por fim, ela citou a importância de ter propostas. “Qual é seu programa, baseado em que teoria, que conhecimento você tem da realidade? E nisso, nós aqui no Brasil ainda estamos muito fracos”, lamentou.