Como seriam os desfiles da Marquês de Sapucaí, caso existissem, e fossem autorizados pela ditadura militar? Será que a Globo estaria exibindo o carro alegórico em homenagem à Marcha da Família com Deus pela Liberdade? O carro abre-alas seria uma exaltação ao “milagre brasileiro” com a construção da ponte Rio-Niterói e da rodovia Transamazônica? Nunca saberemos, mas sempre desconfiaremos… Ao menos depois dos desfiles levados à Praça da Apoteose em 2016.

Afinal, em 2015, em meio à mais turbulenta crise política que o Brasil já viveu desde a redemocratização, pelo menos duas escolas escolheram um lado da luta política, para dedicar seus recursos financeiros, humanos e criativos. O enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel teve como tema: “O Brasil de La Mancha: Sou Miguel, Padre Miguel, Sou Cervantes, Sou Quixote Cavaleiro, Pixote Brasileiro”. Na evolução do enredo, o herói ingênuo espanhol vem ao Brasil lutar contra a corrupção e os moinhos gigantes da Petrobras. Já a São Clemente utilizou-se da imagem poética, cômica e ingênua do palhaço para associá-la ao cidadão impotente diante da corrupção, com o enredo “Mais de mil palhaços no salão”, uma referência à belíssima e melancólica marchinha “Máscara Negra”, de Zé Keti.

O carnaval sempre foi o avesso das estruturas sociais. Sempre foi uma gargalhada contra o senso comum, o bom gosto instituído, contra a ordem mecânica da vida. Ao vestir a fantasia e ir para a rua expor as vergonhas que escondemos no resto do ano, o folião sempre faz uma crítica social. Não à toa, o mercado popular sempre atualiza a máscara de alguma autoridade pública que será homenageada ou ridicularizada nos blocos de rua.

Evidente que o tema da corrupção não poderia ser ignorado pelos carnavalescos, ao assombrar os brasileiros de forma tão intensa no telejornal, nas redes sociais, nas grandes avenidas e janelas de condomínio. No entanto, a elegância e genialidade de Miguel de Cervantes ao escrever seu Dom Quixote de La Mancha, 400 anos atrás, se reduziu a um desfile de platitudes típicas dos revoltados online, em vez de propor um debate rico de nuances e poética na avenida.

Alegoria da Mocidade representa a corrupção, com ratos entre cofres públicos (foto da Agência Brasil). 

Enquanto o jogo duro da mídia e de setores do judiciário tenta incriminar Dilma e Lula, sem conseguir, os carnavalescos Alexandre Louzada e Edson Pereira fizeram a comissão de frente com o cavaleiro andante lutando contra moinhos de vento que se transformam em plataformas de petróleo aos seus olhos, enquanto políticos sem cabeça fazem uma dança macabra vestidos com um tailleur vermelho ou uma luva de quatro dedos. O carro alegórico Lava-Jato da Felicidade apresenta a operação da Polícia Federal como a panaceia da salvação do país. Até a ideia do palhaço que protesta, presente no desfile da São Clemente, aparece nesta outra escola.

A luta social em torno das tentativas de golpe contra o Governo Dilma é ignorada nessa encenação sem dialética ou abertura poética dos desfiles. O simpático palhaço da São Clemente bate suas panelas na Sapucaí contra a corrupção, enquanto a maioria negra e pobre que faz o carnaval o ano inteiro, sabe bem quem é essa gente que sai nas varandas da zona sul e dos condomínios luxuosos do “asfalto” para impedir a presidenta de falar. Poderiam ter representado os paneleiros com sua verdadeira cara de madames e doutores e incluir um pouquinho de contradição na semiose deste signo, mas a intelligentsia da primeira escola representativa da Zona Sul, em Botafogo, preferiu fingir que nada sabe sobre a disputa encarniçada que ocorre na sociedade contra e a favor de um governo popular.

Como toda manifestação contra a corrupção, as contradições não demoram a emergir enlameadas e fétidas dos excrementos que tenta esconder. Quantos manifestantes de camiseta da CBF não foram pegos com a boca na botija, logo depois de gritarem sua indignação na avenida? No carnaval carioca, não é preciso muita investigação e apuração jornalística para afirmar que a crítica aos corruptos vem de bicheiros e contraventores famosos que sustentam suas escolas com recursos não declarados, advindos de atividades ilícitas cercadas de efeitos colaterais sinistros, como todo submundo do crime. Leia aqui o perfil do “chefão” da Mocidade, que custeou o desfile cínico desta segunda-feira (9 de fevereiro) de carnaval. O carnaval exuberante que vemos hoje no Rio, só foi possível graças ao dinheiro dessas organizações criminosas, já que o estado pouco teve interesse em estruturar e construir a força que as escolas de samba exibem para o mundo. Mas, daí, a vir, agora, ditar que modelo de civilização querem para seus condôminos com vista para o mar, às custas do sacrifício de um governo popular de esquerda, já é demais!

O carnaval de 2016 foi recheado destes “incidentes” planejados, que revelam a dimensão da disputa pelo poder depois de treze anos de PT no Governo Federal. A passista que tentou ficar nua em protesto contra Dilma, em pleno desfile da Unidos do Peruche, no sambódromo de São Paulo, foi a ponta do iceberg. Esse tipo de protesto, mesmo quando não dá certo, dá certo. Toda a mídia incensou a peladona ao pedestal que ela queria, ao noticiar sua expulsão. Já o desfile da Vila Isabel, em homenagem a Miguel Arraes, com referências subliminares a Lula, sequer foi transmitido pela emissora oficial dos desfiles, restringindo a exibição a um compacto mutilado. O absurdo só veio à tona, porque algum indignado com acesso ao material da emissora vazou o áudio de bastidor. In off, o constrangimento dos apresentadores diante da censura da Rede Globo aos 20 minutos de desfile que mostrariam a força da esquerda no Nordeste, desde Arraes. Ouça o áudio vazado aqui

Encerrada a apuração, a “politização” contra a corrupção não sensibilizou os juízes e, Mocidade e São Clemente ficaram entre as últimas pontuações do ranking. Parece que os jurados sentem cheiro de cinismo e oportunismo de suas cabines de julgamento e percebem quando a bateria está fora do ritmo…