Demorei, mas depois de quinze anos fazendo pesquisa nas periferias de São Paulo, compreendi que não temos apenas um sistema de justiça, nem apenas uma lei, operando em São Paulo. Que não temos uma democracia, nem uma ditadura, nem vivemos no totalitarismo neoliberal, mas que temos todos esses regimes coexistindo, a depender do recorte na população que se observe, e das diferentes situações que se apresentam a eles. O fato da lei do Estado ser formalmente democrática não impede que uma parcela da população viva em guerra, e creio que essa guerra tem se alastrado para camadas cada vez mais amplas da população.

Depois de estudar durante alguns anos o senso de justiça do Primeiro Comando da Capital (PCC) – nas favelas em que trabalhei, mas também nas universidades, e ainda escutando Racionais e Sabotage, ou lendo Luiz Antonio Machado da Silva – entendi, por exemplo, que a polícia de São Paulo não mata qualquer um, nem qualquer preto, exceto em tempos de guerra – como as que cobriram o território do estado em maio de 2006 ou meados de 2012, ou a que se instalou em Jandira em 28 de abril de 2015, e que boa parte da classe média sequer notou. Mas ainda que a polícia não mate qualquer um, nem qualquer preto, é verdade que ela mata muito, e cada vez mais pretos, pobres, periféricos, em São Paulo. Veja-se, por exemplo, as seguintes manchetes dos últimos dois anos:

Letalidade policial tem aumento de 206,9% na cidade de SP. “Em comparação ao primeiro trimestre de 2013, os três primeiros meses de 2014 apresentaram um aumento de 206,9% do número de pessoas mortas por policiais em serviço.” (Carta Capital)

PM de SP bate recorde de mortes e não reduz crimes. “Entre janeiro e novembro de 2014, 816 pessoas foram mortas por policiais militares no Estado de SP. Letalidade policial foi maior até do que em 2006 e 2012, anos de enfrentamento das forças de segurança contra a facção criminosa PCC.” (Ponte.org)

Número de mortos pela PM em SP no 1º trimestre [de 2015] é o maior em 12 anos. “O estado de São Paulo registrou, nos três primeiros meses deste ano, 185 mortos em confrontos com policiais militares em serviço, uma média de 2,05 pessoas mortas por dia, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública. É o maior número de mortos no 1º trimestre dos últimos 12 anos.” (G1)

Vejamos as tabelas abaixo, elas falam por si mesmas. Os primeiros dados se referem a mortes cometidas como política de Estado, usando farda. Essas, importante salientar, são mortes cometidas na década que registrou as menores taxas de homicídio no estado de São Paulo.

Agora vejamos, nesta segunda tabela, o demonstrativo de policiais mortos, com ou sem farda, no ano de 2012 – ano que registrou o maior índice de policiais mortos na história de São Paulo.

O par de tabelas traz dados absolutamente absurdos.

Outra coisa que aprendi, nos últimos anos, é que a guerra não apenas pode coexistir em tempos “democráticos”, mas pode mesmo virar rotina. E que a paz, para milhões de pessoas, pode vir não da democracia, mas justamente do “crime”: nas favelas de São Paulo, as taxas de homicídio mostram que em 2000, antes do PCC regular a justiça local, se matava nos territórios cerca de 10 vezes mais que em 2010, quando o Comando era amplamente hegemônico na regulação de mercados criminais, acertos com policiais e uso de armas. Na cidade de São Paulo como um todo, os homicídios caíram cerca de 70% durante os anos 2000. Aprendi, ainda, que “imprensa livre” é uma expressão, no mais das vezes, instrumentalizada por uma retórica conservadora: poucos grupos empresariais são donos dos órgãos de imprensa – como poderiam eles serem livres? Por que é que não somos informados disso que, em todas as favelas, é lugar comum? “Liberdade de expressão” tem se tornado outra expressão retórica: militantes de direitos humanos são ameaçados e mortos país afora, e também nas periferias de São Paulo, por dizerem o que realmente se passa nas periferias – Valdênia Paulino, com quem convivi bastante em trabalho de campo, teve que deixar o país diversas vezes na década passada, e nesta, por sofrer sistemáticas ameaças de morte.

Nesses anos de pesquisa nas periferias, convivi de perto com muita gente que morreu assassinada – sempre jovens, sempre negros, alguns deles mortos pela polícia. Em maio de 2006, a reação de policiais militares aos “Ataques do PCC” gerou, em São Paulo, 493 execuções sumárias de meninos das periferias em uma semana, segundo artigo do Núcleo de Estudos da Violência, baseado em pesquisa nos 23 Institutos Médico-Legais do Estado. Nas três semanas seguintes, as polícias paulistas mataram outras 500 pessoas. Essas mortes sumárias não foram consideradas um descalabro em tempos democráticos. Tampouco mostra do autoritarismo assassino de nosso regime político. Essas mortes foram, muito ao contrário, recebidas publicamente como a “retomada da ordem” e do “Estado democrático de direito”, que se sentia ameaçado pelo “crime organizado”. Tanto assim que exatamente um ano depois, em maio de 2007, o governador realizou uma cerimônia de homenagem às ações da Polícia Militar em maio de 2006 (e empunhou um fuzil, apontando para os fotógrafos, originando uma fotografia muito popular).

Pois bem. Policiais e irmãos do PCC vivem em guerra cotidiana há 20 anos, na São Paulo democrática, ciclística, cosmopolita. Quero argumentar que esta constatação certamente não haveria de ser tão “estraga prazeres”, se o crime e o policiamento não se expandissem tanto, junto com a vigilância privada, como mercados cada vez mais lucrativos. Se um milhão de homens pobres das periferias de São Paulo não tivessem passado pelas prisões paulistas nesses últimos 20 anos – com suas famílias imediatas (pais, filhos, esposas) esse milhão de ex-presidiários pretos e pardos compõem hoje, só no estado de São Paulo, 10% da população. E, por fim, se percebêssemos que foi desde que se instalou a política de encarceramento massivo em São Paulo (em 1995, tínhamos 45 mil presos; hoje, em 2015, a cifra excede os 210 mil) que o conflito entre as partes não tivesse se tornado tão forte.

Não por acaso, foram justamente esses anos os anos em que o PCC emergiu dentro das cadeias, e de lá passou a regular condutas e mercados ilegais em todo o estado. Nos últimos anos, aliás, temos relatos de pesquisa de integrantes do PCC atuando também em mais 20 estados da federação, nos principais portos e nas fronteiras com o Paraguai, a Bolívia e a Colômbia. Recentemente, um pesquisador francês que estuda o tráfico internacional de drogas relatou-me ter feito pesquisa de campo na Nigéria, e que lá há integrantes do PCC atuando no mercado de cocaína. Aumenta o encarceramento, aumenta a coletivização do crime e suas capacidades mercantis, como os trabalhos de Benjamin Lessing, professor da Universidade de Chicago, vêm argumentando.

Há muito tempo, portanto, prender um jovem ladrão não o tira do crime, nem o “ressocializa” (palavra que atualiza a crença preconceituosa de que a vida dos pobres estaria fora do mundo social), mas o inscreve em redes cada vez mais profissionalizadas de criminalidade. Ladrões de São Paulo, por isso, costumam chamar as mais de 100 cadeias do estado de ‘faculdades’. Eles sabem o que é a guerra em suas rotinas, o que é criar um filho tendo a consciência de que “morrer é um fator/ mas conforme for/ tem no bolso, na agulha/ e mais cinco no tambor”, como diz o rap [“Fórmula mágica da paz”, Racionais MCs]. Os milhões de adolescentes e jovens pretos do estado de São Paulo, que inscrevem o símbolo do PCC nas carteiras e cadernos de escolas públicas, pontos e vidros de ônibus, muros e tatuagens em seus corpos sabem, igualmente, de que lado estão na guerra que se apresenta a eles como horizonte na vida.

Os mais de 130 mil policiais militares de São Paulo também sabem o que é a guerra. E também têm famílias, filhos, esposas, maridos. Sabem que o sistema é perverso e que não adianta prender um pequeno traficante, porque no dia seguinte tem outro trabalhando no lugar dele. Sabem que “crime é negócio, não é pecado”, como disse um delegado da Polícia Civil ao meu amigo Alexandre Werneck, professor da UFRJ. Policiais Militares e Civis de São Paulo estão há vinte anos prendendo “traficantes”, na verdade os operadores mais baixos do mercado transnacional da droga, e eles só se multiplicam nas quebradas de São Paulo, porque seus postos de trabalho seguem operativos e dão lucro. O número de policiais, como de encarcerados, não para de crescer, porque seus circuitos profissionais também estão sendo transformados em mercados lucrativos. Todos os índices de criminalidade violenta crescem e a guerra interna, que parecia ser o oposto da democracia, deixa de ser metafórica.

Não só de troca de tiros e corpos ensanguentados se faz essa guerra, portanto. Há muito dinheiro que circula pelas suas trincheiras e media o conflito entre polícias e ladrões. Policiais e irmãos do PCC disputam a regulação mercados, parte deles transnacional, como o de armas e drogas, ou altamente lucrativos como o de carros roubados (em 2014, foram roubados mais de 500 mil veículos automotores no Brasil). Levados para desmanches, para fronteiras, para serem revendidos depois de legalização, entre outros destinos. Somados ao valor do segmento de seguros para automóveis, estimamos que o roubo de carros injete na economia nacional quase 25 bilhões de reais por ano. Bilhões de reais, milhares de postos de trabalho, legais e ilegais, milhões de pessoas diretamente implicadas nessa guerra.

O crime compensa para os mercados. Bancos, financeiras, seguradoras, donos de postos de gasolina, caminhões e empresas de logística, sem falar das empresas de segurança privada… para todos eles o mercado de carros roubados é lucrativo. Não se deve acabar com ele, mas se deve prender – e, no limite, matar – os adolescentes pobres que roubam carros de luxo e os entregam a receptadores por R$300, R$500. Muitos pais de família participam desses mercados, comprando suas autopeças no “paralelo”. Muitos policiais participam desses mercados, facilitando a elaboração de documentação, relaxando flagrantes, recebendo propinas para permitir que eles operem, enfim, regulando as mercadorias políticas que circulam nas fronteiras dos mercados legais e ilegais, estudados tão bem pelo professor Michel Misse, do Rio de Janeiro, mas também por Daniel Hirata e Vera Telles, na Universidade de São Paulo.

“A observação da situação em Cornerville indica que a principal função do departamento de polícia não é fazer cumprir a lei, mas regular as atividades ilegais. O policial está sujeito a pressões sociais altamente conflitivas. De um lado estão as “pessoas de bem” de Eastern City, que inscreveram seus julgamentos morais nas leis e exigem, por meio de seus jornais, que a lei seja cumprida. Do outro estão as pessoas de Cornerville, que têm padrões diferentes e construíram uma organização cuja perpetuação depende da liberdade de violar a lei. Socialmente o policial do lugar tem mais em comum com o povo de Cornerville que com os que demandam a aplicação da lei, e os incentivos financeiros oferecidos pelos gângsteres têm um peso cuja importância é óbvia. O cumprimento da lei tem um efeito direto sobre as pessoas de Cornerville, enquanto afeta apenas indiretamente as “pessoas de bem” da cidade. Nessas circunstâncias, o caminho mais fácil para o policial é agir de acordo com a organização social com a qual está em contato direto e, ao mesmo tempo, tentar dar ao mundo exterior a impressão de que faz cumprir a lei. Ele tem que desempenhar um elaborado papel de faz-de-conta, e, ao fazê-lo, funciona como um amortecedor entre organizações sociais divergentes, com seus padrões de conduta conflituosos.”
(William Foote Whyte. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor: 2005 [1943]; p. 154)

Tenho aprendido, nesses anos de pesquisa, que a situação é muito importante, que as coisas mudam e que devemos aprender com as mudanças. O Brasil teve mercados muito aquecidos recentemente, e embarca numa crise nos próximos anos. O dinheiro que circulava livremente, e mediava conflitos entre polícia e ladrão, agora vai se tornar mais escasso. E quando o dinheiro se torna escasso, as saídas violentas nesse conflito se tornam mais corriqueiras. Se nos anos 2000 estava “tudo suave” nas quebradas, bandeira branca hasteada, e os policiais apareciam às sextas-feiras só para pegar o dinheiro do acerto, a tensão tem aumentado recentemente. Traficantes e ladrões sabem, mais do que muitos cientistas sociais, que a polícia é heterogênea, como qualquer outra instituição – policiais de muitas corporações, civis e militares, de muitas tendências, lugares hierárquicos e funções, que têm diferentes modos de negociar com o crime, diferentes disposições para ganhar dinheiro fácil. Mas eles têm certeza de que, se não tiver dinheiro, os tiroteios se tornam muito mais frequentes, as execuções corriqueiras.

Aprendi, nos últimos anos de debate sobre esses temas, com muitos dos meus colegas e parceiros, que quando um favelado morre assassinado, não há investigação alguma por parte do Estado. “Sambista de rua morre sem glória”, já dizia Geraldo Filme há décadas. Milhares de assassinatos cometidos por policiais em serviço viram “autos de resistência”, “confronto seguido de morte” e sequer são apresentados judicialmente como denúncia de homicídio. A pena de morte está instituída.

Aprendi ainda que quando policiais matam encapuzados, à paisana, esses homicídios jamais serão computados nos índices de “letalidade policial”. Tenho visto, entretanto, que esses casos têm sido objeto de preocupação de outro sistema de justiça, nada afeito à legalidade, que o Primeiro Comando da Capital disseminou por São Paulo na década 2000. A cada morte na favela, é o PCC que, em tese, vai se responsabilizar por debater, investigar, chamar e ouvir os envolvidos para, quando for justo, permitir a punição dos culpados.

Uma rede de pesquisadores jovens de São Paulo têm estudado esses sistema detalhadamente, demonstrando sua inequívoca participação na redução dos homicídios de favelados. Quando morre uma senhora num assalto na Avenida Rebouças, entretanto, o Primeiro Comando da Capital não vai investigar o homicídio – esse será um assunto da Polícia Civil, do sistema de justiça estatal. Porque essa senhora não pertence à irmandade política que o PCC representa, da mesma forma como o jovem favelado não pertence à comunidade política representada pelo Estado brasileiro. Jovens pretos e favelados, produzidos como bandidos pela incriminação seletiva do sistema de justiça, se tornam, progressivamente, os inimigos da guerra às drogas, da segurança pública, da pacificação alardeada por governos e redes globos. Classes médias e elites se tornam, progressivamente, playboys e “brancos safados”, inimigos cada vez mais públicos dos jovens socializados nas favelas de São Paulo, com quem venho conversando. Inimigos, guerreiros de fé, léxico de guerra.

Para meus amigos que vivem em favelas, em suma, a lei dos homens sempre oprime, e a lei do crime, que procura a Paz, a Justiça, a Liberdade e a Igualdade, no limite está “pelo certo”. Para eles, a lei de Deus está acima de todas as outras, os pentecostais têm seu espaço, e sabe-se que a “vida é loka”, e que você vale o que tem. Para meus amigos que vivem em condomínios fechados, a “violência urbana” assusta, a única lei que existe é a do Estado, que se tenta burlar a cada novo negócio, a cada nova declaração de Imposto de Renda. O que se quer é ser rico. Para eles, a lei de Deus também está acima de todas as outras, e há que se defender desses pobres que, atualmente, têm colocado as asas de fora. Machado da Silva já falou, com Antonio Gramsci, que: ‘se houvesse tanto consenso social em torno da ordem que hoje se procura fazer hegemônica – a ordem do mercado – as elites não precisariam de tanta coerção para implementá-la’.

Se a coerção cresce, demonstrada pelo aumento galopante dos índices de letalidade policial, é sintoma de que o conflito social, em São Paulo, não está sendo mediado pelas políticas sociais e nem, como previsto, pela monetarização das relações sociais, que se tentou figurar como desenvolvimento. Se não há consenso social em torno da ordem a seguir, e se começa a faltar dinheiro para mediar o conflito entre os regimes normativos que hoje estão instituídos na cidade, a lógica guerreira tende a se expandir. A guerra cotidiana, como os números de mortos demonstram, está francamente desequilibrada a favor do Estado – os 160 mil policiais do estado, sendo 130 mil militares, possuem força armada desproporcional aos poucos milhares de irmãos armados do PCC.

Não se verá uma guerra civil declarada. Mas a certeza de que a “opressão” vem dos ricos e brancos é cada vez mais veiculada nas periferias, muito mais do que há vinte anos atrás, enquanto o fascismo das elites se torna cada vez mais explícito. A dimensão letal das atividades policiais, que só faz aumentar em São Paulo, como em outras partes do país, parece ser só a ponta do iceberg de um conflito social muito mais intenso. As coisas mudam, São Paulo tem mudado muito. Como comunidade política, entretanto, temos aprendido muito pouco com tanta mudança.

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Gabriel de Santis Feltran é Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisador do CEM e do CEBRAP. Coordenador do projeto do CEM “As margens da cidade” e do do NaMargem – Núcleo de Pesquisas Urbanas, é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com doutorado-sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Assina o artigo “Conflito urbano e gramáticas de mediação” no dossiê “Cidades em conflito, conflitos nas cidades” da Revista Margem Esquerda #24.

Colaboração para o Blog da Boitempo especialmente para o dossiê “Violência policial: uso e abuso“.