Nasci em 1964 e acompanhei a cobertura da dramática Guerra do Vietnam pela televisão. As imagens chocantes daquele conflito, muitas das quais feitas por norte-americanos que não apoiavam o insano esforço do seu país no sudoeste asiático, preencheram minha infância. Ficava grudado na TV durante os noticiários, mas não entendia exatamente o que estava ocorrendo. Só adulto comecei a compreender lentamente como e porque o imperialismo dos EUA teve que ser derrotado em duas frentes, na selva e nas ruas norte-americanas.

A derrota no Vietnam produziu um imenso estrago na auto-estima imperial dos EUA. Foi doloroso e duradouro o drama dos ex-soldados derrotados, detestados pelos conterrâneos que se opuseram àquela guerra e desprezados pelos que apoiaram a mesma. A vitória do Vietnam, país pobre que causou milhares de baixas aos EUA construindo armadilhas de espetos de bambu lambuzados de excrementos, manteve aquele país longe de conflitos armados até a invasão de Granada. Porém, foi somente com a I Guerra do Iraque que os norte-americanos recuperaram seu gosto pelo militarismo.

Entre o fim da Guerra do Vietnam e o início da I Guerra do Iraque o cinema provocou uma mudança profunda no imaginário dos norte-americanos. A geração que fez oposição à guerra envelheceu. As novas gerações de norte-americanos cresceram vendo filmes que glorificavam o esforço de guerra dos EUA no sudoeste asiático. Heróis cinematográficos como Rambo e Braddock venceram nas telas grandes a guerra que os soldados norte-americanos perderam na selva. O cinema teve um papel importante na recuperação da auto-estima imperial dos EUA.

Isto explica, de certa maneira, como e porque a II Guerra do Iraque e a Guerra do Afeganistão receberam intenso apoio dos norte-americanos. Ao contrário da Guerra do Vietnam, estes conflitos recentes foram cobertos por jornalistas engajados nas tropas e controlados por militares. Tudo foi feito sob medida para esconder os equívocos (fogo amigo), as batalhas perdidas e as vitórias inglórias. O advento da internet e a criação do Wikileaks garantiram a liberação dos registros de batalha feitos pelos próprios soldados, algo que deixou as autoridades norte-americanas horrorizadas, acarretou o martírio de Bradley Manning e a perseguição feroz a Julian Assange.    

E já que estamos falando de internet, faço aqui um pequeno parenteses para relatar uma experiência pessoal. Há alguns anos conheci, através do Multiply, um norte-americano que foi soldado no Vietnam. Mantive contato com ele por vários anos, inclusive através do Facebook depois que o Multiply encerrou suas atividades em 2013. Por fim ele acabou me bloqueando por causa do meu anti-americanismo. A tarefa dele no Vietnam, segundo o que ele me disse, era socorrer os soldados feridos e garantir o transporte dos mesmos para hospitais de campanha. Ele sempre me dizia a mesma coisa: “Nunca participei pessoalmente da matança.” Esta distinção que ele faz entre a sua conduta e a dos demais soldados é interessante, pois sem enfermeiros e médicos a matança certamente não poderia continuar ocorrendo.

Outra coisa que me foi dita por aquele veterano dos EUA foi a seguinte: “Nós nunca perdemos uma batalha contra os vietnamitas.” Quando eu citava a Ofensiva do Tet e dizia a ele que os vietnamitas ainda estavam no Vietnam e que os EUA saíram de lá correndo, ele ficava acabrunhado. E então passava a acusar os políticos norte-americanos e os conterrâneos dele de não terem dado o necessário apoio aos soldados. Esta é uma típica versão americanista da “punhalada nas costas” inventada por Adolf Hitler para adocicar os ouvidos dos alemães enquanto tentava chegar ao poder. A cortesia me impediu de dizer ao tal que ele estava usando um discurso de matriz nazista.

Devemos comemorar a vitória do Vietnam? Sim, sem dúvida. Mas não necessariamente por razões ideológicas ou militares. A maior vitória que merece ser comemorada é justamente aquela “punhalada nas costas” detestada pelo meu ex-colega de Multiply e Facebook. O militarismo só é um fenômeno realmente nocivo quando apoiado pela sociedade e estimulado pelo jornalismo. Portanto, é perfeitamente possível dizer que os norte-americanos ganharam uma guerra quando os EUA foi derrotado militarmente no Vietnam. Esta vitória escorreu entre os dedos dos norte-americanos à medida que os EUA recuperaram seu impeto imperial e militarista com apoio da imprensa das novas gerações às guerras no Iraque e no Afeganistão.

Nos últimos anos há uma outra guerra em curso. Ela ocorre no cinema. Há filmes que tem sido feitos para glorificar as campanhas dos EUA no Iraque e no Afeganistão. E há aqueles que procuram desmistificar os dois conflitos, expondo o horror insano da guerra externa e o drama dos soldados que voltam para casa física ou psicologicamente mutilados. Ainda é cedo para dizer qual destas duas tendencias conseguirá se impor às novas gerações de norte-americanos. Uma coisa é certa. Até o presente momento Hollywood não foi capaz de criar nenhum personagem guerreiro do deserto com a mesma força simbólica que um Rambo ou um Braddock.