A Netflix possui atualmente 17 lobistas em ação nos EUA representando seus interesses no Congresso e Governo Federal. Ao mesmo tempo produz uma série chamada “House of Cards”, que descreve as relações anti-éticas entre lobistas, políticos do Congresso e imprensa. Narra a trajetória do líder dos Democratas no Congresso, um príncipe maquiavélico que articula, ardil, traição e mentiras para chegar ao suposto centro do Poder, o Salão Oval da presidência. Qualquer análise sobre essa série que tornou-se o hit da Netflix deve partir dessa aparente contradição – na verdade, a série reforça velhos mitos da Política: o Mito do “Mr. President”, o Mito do “Príncipe Maquiavélico” e o mito do “L’État, c’est moi”. Assim a Netflix esconde a verdadeira natureza do Poder do qual usufrui, e ao mesmo tempo mercadologicamente surfa na atual onda neoconservadora dos EUA e do Brasil: lá, a alienação em relação à política, num país onde o voto não é obrigatório; e aqui, uma trilha ficcional para aqueles que estão seduzidos pela aventura do impeachment.

Primeira série originalmente produzida para a web pela plataforma de streaming Netflix, House of Cards mostra através do seu protagonista, Frank Underwood (Kevin Spacey), os bastidores do Congresso dos EUA e suas relações promíscuas entre lobistas, imprensa e congressistas.

Frank é uma espécie de Maquiavel com o charme sulista de um político da Carolina do Sul e pitadas da frieza de um assassino, responsável em exercer o papel de Chief Whip do partido (o “chefe do chicote”, o líder que faz tudo para que políticos democratas votem de acordo com os interesses do partido) – mas ele quer mais: pouco importa o dinheiro que jorra dos lobistas corporativos que alimentam o jogo político de Washington. Frank quer o verdadeiro poder – ficar cada vez mais próximo da presidência dos EUA, até conquistá-la por meio de trapaça, ardil e traições.

Frank conta com o apoio incondicional da fria e ambiciosa esposa Claire (Robin Wright), que comanda uma ONG que se beneficia da proximidade com lobistas que atuam nos bastidores do Congresso, para os quais Frank abre as portas.

Muitos veem a série House of Cards como um retrato didático da verdadeira natureza da política como um autêntico ninho de víboras. Como fala Frank em uma das suas frases lapidares, “os homens fazem o mal, a menos que a necessidade os obrigue a fazer o bem”.

Mas a série tem que ser analisada a partir de uma contradição que envolve a própria empresa distribuidora: como uma corporação como a Netflix, que exibe uma série tão polêmica na qual denuncia as mazelas do lobismo na política pode, ao mesmo tempo, na vida real colocar como alvo dos seus esforços lobistas (1,2 milhões de dólares em 2013, o dobro do esforço do ano anterior) a Casa Branca e o Congresso, para pressionar a aprovação da legislação da “neutralidade da Internet” – princípio de que os fornecedores de serviços da Internet não devem penalizar os provedores de conteúdo que ocupam grande espaço na banda larga com taxas extras ou conexões mais lentas? (sobre isso leia “Netflix stacking deck in Capitol Hill” In: The Center of Public Integrity).

A Netflix possui atualmente 17 lobistas representado seus interesses no Congresso e Governo Federal. E, ao mesmo tempo, tem como o seu principal sucesso uma série que supostamente denuncia a ação do lobismo nos bastidores da política. Curioso?

Claro, essa contradição está presente em toda indústria do entretenimento capaz de, por exemplo, produzir filmes antissistema, como Matrix, e ao mesmo tempo legitimar a inteligência militar norte-americana em filmes como Argo.

Mas no caso de House of Cards, talvez nessa contradição se encontre o principal motivo da série reduzir a política ao mero jogo de ambição pessoal pelo poder: em todos os episódios da série, acompanhamos o protagonista Frank Underwood armando suas estratégias, dirigido unicamente pela auto-satisfação e ressentimento contra seu pai – após tornar-se presidente, por exemplo, Frank urina na lápide paterna.

House of Cards surfa na atual onda neoconservadora que reduz a política ao olhar moralizante do sexo, corrupção e scripts de telenovela – os jogos palacianos de poder se estenderiam às relações promíscuas com lobistas e imprensa. E essa promiscuidade chegaria a tal ponto que transformaria a cama como uma espécie de extensão das intrigas do Congresso.

Netflix faz o jogo da personalização e moralização da política para certamente esconder o fato de que grandes corporações têm interesses muito amplos e globais para serem obrigadas a dependerem dos caprichos ou ambições pessoais de políticos. O verdadeiro poder está em outra cena.

As Temporadas

Na primeira temporada começa com o líder dos democratas Frank Underwood vendo sua aguardada promoção a Secretário de Estado pelo presidente não acontecendo. Sentindo-se traído, Frank decide a vingança (agora quer a própria presidência) e começa ardilosamente a manipular as peças do tabuleiro do Congresso e da mídia. Suas peças mais importantes são a ambiciosa jornalista Zoe Barnes e o congressista Peter Russo – cujo ponto fraco são bebidas e prostitutas, habilmente manipulado por Frank.

Além de manipular as fraquezas de Peter, Frank manipula as ambições de Zoe, dando a ela dicas em primeira mão das informações do Congresso e levando-a para cama: “Tudo no fim das contas tem a ver com sexo. Exceto o sexo. Sexo tem a ver com poder”, pontua o Maquiavel sulista em suas constantes reflexões metalinguísticas que faz para o espectador olhando para a câmera. Zoe é peça importante para plantar na imprensa notícias que produzam crises políticas que o conduzam à vice-presidência, seu primeiro passo.

Na segunda temporada, já empossado como vice-presidente, vemos Frank como um assassino que apaga mais um arquivo vivo, além de manipular as relações comerciais e políticas com a China para provocar uma crise diplomática e de popularidade do presidente. Seu estratégia é unificar democratas e republicanos para um objetivo: o impeachment presidencial.  

Chegando ao topo como presidente, na terceira temporada vemos Frank e Claire mais impulsivos e descuidados na sua batalha para permanecer no poder. Pouco a pouco tornam-se descuidados e vão destruindo todas as pontes construídas até então. Frank esquece que sua insaciável sede no poder, agora no Salão Oval, torna-se mais visível e não passa mais desapercebida pelo Congresso e o mundo. Frank vai acumulando mais inimigos do que amizades na Casa Branca.

Enquanto crítica e público elogiam a série, todos parecem ignorar que House of Cards parte de alguns mitos sobre a política e o poder que se tornaram clichês da indústria do entretenimento. Esses mitos continuam alimentando o niilismo em relação à política e afastando os cidadãos da militância pública. E nos EUA, onde o voto não é obrigatório, é conveniente para as elites incutir o desprezo pela política, para que cada vez menos cidadãos apareçam nas cabines de votação.

Os principais mitos seriam: O Mito do “Mr. President”, o Mito do Príncipe Maquiavélico, o Mito do “L’État, c’est moi” e a tradicional representação cinemática de sindicatos e jornalistas como patifes sem esperança.

1. O Mito do “Mr. President”

House of Cards constrói uma visão, por assim dizer, “espacial” do poder: quanto mais próximo estiver do Salão Oval, mais poderoso você é. Todos sabemos que os EUA se ressentem de não terem a tradição da realeza. assim como os seus colonizadores, os ingleses. Por isso, cercaram a família presidencial de uma liturgia que assemelha-se à de uma família real. O sangue azul seria transferido pelo voto.

A série mostra que a última decisão é sempre a do “Mr. President”, fechado em seus botões na Casa Branca ou em Camp David, meditando diante da lareira. A certa altura, o presidente Walker e Frank sentam em uma sala da Casa Branca onde supostamente o presidente Truman teria decidido jogar a bomba atômica no Japão na II Guerra Mundial. Walker senta em uma cadeira e tenta sentir as “vibrações” para iluminá-lo em uma delicada decisão política.

O Mito de que todo o poder emana do “Mr. President” e do Salão Oval esconde que o poder tornou-se global e capilarizado, onde gigantescas corporações transnacionais possuem interesses complexos demais para deixar o futuro ser decidido nas mãos de um único homem.

2. O Mito do Príncipe Maquiavélico

O que motiva a sede de poder de Frank Underwood? Auto-satisfação, ressentimento contra seu pai, vingança… As motivações de Frank são tão pessoais e narcísicas (o Poder pelo Poder) que ao chegarmos na terceira temporada nos perguntamos: Frank chegou ao topo da cadeia alimentar da política mundial. O que mais pode acontecer?

Na verdade a série sustenta outra contradição: de um lado a de que Washington seria um joguete nas mãos de lobistas que financiam campanhas eleitorais cuja função é representar interesses de corporações mais poderosas que os EUA; e do outro o Poder representado como um espaço ocupado por um príncipe maquiavélico de onde emanaria o verdadeiro Poder. E toda a liturgia que cerca o Presidente e o Vice-Presidente (seguranças, portas fechadas, coletivas para a imprensa etc.) sustentam o mito de que o Poder basta a si mesmo.

3. O Mito do “L’État, c’est moi”

“O Estado sou eu”, teria dito certa vez o rei da França Luís XIV. Pois House of Cards parece partilhar dessa visão absolutista do poder, um verdadeiro paraíso para os republicanos e o chamado “Tea Party” – a Direita norte-americana: no universo ficcional da série não há grupos ativistas ou qualquer pessoa remotamente progressista. O Partido Democrata do vice-presidente Frank dá aos Republicanos a prorrogação da idade de aposentadoria como moeda de troca política.

Não há ideologias e todo o resto do mundo (o quase conflito militar com a China, imagens de ataques no Oriente Médio assistido em telão pelo presidente) nada mais é do que joguete ou pretexto para as intrigas palacianas na Casa Branca. Os EUA são o centro do mundo e o seu destino político (e de resto todo o planeta) está nas mãos dos caprichos de príncipes maquiavélicos que buscam auto-satisfação.

4. Patifes sem esperanças

Esses são os jornalistas e sindicalistas, aqueles que minimamente poderiam fazer algum tipo de oposição. Após a primeira temporada batendo no sindicato dos professores em uma Reforma reacionária que beneficiará Frank (o ponto alto é quando professores ativistas largam o protesto em troca de comida trazida por Frank e seus amigos em uma festa), tudo fica ainda mais reacionário quando Frank rifa a política social do partido em troca de apoio.

A série é implacável com jornalistas e a mídia: Zoe Barnes é vulnerável na sua ambição e ingenuidade: vai para a cama com a sua fonte privilegiada de informações da Casa Branca (Frank, o príncipe maquiavélico), repetindo o clichê das mulheres jornalistas seduzidas por poderosos – da Kim Basinger, fotografa seduzida por Bruce Wayne em Batman (1989) a personagem Anastasia Steele, misto de estudante de literatura e jornalista, seduzida por um homem poderoso em 50 Tons de Cinza (2015).

Enquanto isso, os repórteres que realmente acreditam na busca da verdade são retratados na série como patifes sem esperança.

Concluindo, em épocas onde a atmosfera neoconservadora torna-se cada vez mais pesada, House of Cards surfa em ondas tranquilas e seguras que a faz se tornar em um hit da Internet: nos EUA, reforçando os mitos que fazem os cidadãos darem as costas para a Política e eleições.

E no Brasil, alimentando o clima golpista de aversão ao voto, democracia e o frisson pelo impeachment – esse ardil de Frank é bastante sedutor: afinal, ninguém presta e todos são corruptos.

Porém, essas opiniões esquecem da principal lição que Frank Underwood dá na série: corrupção tem a ver apenas com dinheiro. É desperdício de tempo… Já o Poder é sólido como uma rocha como sugere a abertura dos créditos iniciais da série em time lapse: prédios e monumentos de Washington estão imóveis e sólidos enquanto carros e nuvens passam rápidos.

Impeachments, traições e ardis passam, mas o verdadeiro Poder continua por trás de tudo, em outra cena. E certamente não está nem na Casa Branca e muito menos no Palácio do Planalto.