Dois intelectuais de projeção internacional publicaram, nas últimas semanas, textos provocadores sobre a Rússia e seu presidente, Vladimir Putin. O escritor e cineasta britânico John Pilger, sempre elogiado por Noam Chomsky, destacou que os grandes jornais do Ocidente conduzem, contra Moscou, uma campanha de mentiras semelhante à dirigida contra o Iraque, às vésperas da invasão norte-americana. Pilger está convencido de que o noticiário internacional no Ocidente deixou-se enquadrar, como na Guerra Fria, pela posição do governo norte-americano. Esta atitude servil ampliaria os riscos de que se concretizem as previsões mais sombrias de George Orwell e submeteria, inclusive, publicações antes respeitáveis e charmosas, como The Guardian. Já o sociólogo Boaventura Sousa Santos advertiu: “Tudo leva a crer que está em preparação a terceira guerra mundial. É uma guerra provocada unilateralmente pelos EUA com a cumplicidade ativa da UE. O seu alvo principal é a Rússia e, indiretamente, a China”.

Como cotejar estes alertas com os textos, abundantes também no Brasil, segundo os quais a Rússia atual seria, em essência, um túmulo das liberdades – um Estado autoritário e conservador? E para os quais seu presidente é um populista disposto a provocar conflitos externos apenas para ampliar, por meio deles, suas chances de sobrevivência? Talvez dois textos publicados hoje por Outras Palavras ajudem a construir uma equação mais nuançada acerca do tema.

A primeira matéria é uma reportagem da jornalista Amelia Gentleman, do próprio The Guardian, sobre a situação atual da banda punk Pussy Riot – em especial Nadya Toloknnikova, talvez sua principal referência. Ela está em liberdade desde dezembro de 2013, quando foi anistiada por decreto presidencial. Porém, passou 18 meses encarcerada, apenas por praticar uma performance antigoverno na Catedral de Moscou. Parte da pena foi cumprida num campo de trabalhos forçados. Nadya, que se corresponde regularmente com o filósofo Slavoj Zizek (parte da correspondência foi editada em livro, Comradely Greetings), acredita que sua atividade na internet é vigiada e de que, devido a sua presença frequente num café de Moscou, aparelhos de escuta foram instalados no local.

Não é um relato isolado. País com escassa história democrática, a Rússia continua distante do respeito amplo às liberdades e direitos humanos. Há eleições regulares para Executivo e Legislativo, porém com constantes denúncias de pouca transparência, especialmente nos pleitos parlamentares (a eleição de Vladimir Putin à Presidência, em 2012, parece ter se dado em condições nitidamente melhores). Embora inexista censura prévia à imprensa, 47 jornalistas foram mortos desde 1992 (trinta deles, no governo pró-ocidental de Boris Yeltsin), sem que os casos tenham sido suficientemente investigados. A liberdade de manifestação é muitas vezes anulada por repressão policial (em especial em regiões distantes de Moscou). Condenações judiciais draconianas são usadas, em alguns casos (como o das Pussy Riots) como forma encoberta de perseguição política. Há denúncias de tortura e abusos nos cárceres e quartéis.

Mas este déficit democrático interno deveria desencadear uma demonização da Rússia e de seu presidente, conforme pretendem a Casa Branca e celebridades como o multibilionário George Soros? Num outro texto, o analista político Selmas Milne argumenta que não. Washington não hostiliza Putin por desejar uma Rússia e um mundo melhor, sugere ele. Age para isolá-lo porque Moscou converteu-se, ao contrário, num grande obstáculo aos planos de construir uma ordem internacional baseada em guerra, vigilância permanente e poder imperial.

Que autoridade têm os EUA para falar de democracia? – pergunta Milne. Não são eles que apoiam ditaduras, sempre que estas atendem a seus interesses estratégicos? Não sustentaram regimes despóticos e fundamentalistas, como o da Arábia Saudita, berço do Emirado Islâmico? Não ajudaram a esmagar a Primavera Árabe, exatamente no momento em que ela estimulava movimentos rebeldes na Europa (Indignados) e na própria América do Norte (Occupy)?

Putin, frisa ainda Milne, não é um democrata, mas um “nacionalista oligárquico”. Mas esta condição, paradoxalmente, leva-o a enxergar a ameaça que Washington representa para a Rússia e para o mundo. E ele tem poder e vontade política suficientes para se contrapor. Graças a tal atitude, Edward Snowden não está preso numa masmorra militar nos EUA, mas refugiou-se em Moscou, onde vive em liberdade. Haveria inteligência em desconhecer este paradoxo? Ou, dito de outra forma: isolar e neutralizar o Estado nacional que resiste mais intensamente aos EUA serviria a quem?

Dois fatos emblemáticos podem ajudar a encontrar a resposta. Na manhã de segunda-feira (2/3), Barack Obama condenou, em entrevista à imprensa, o assassinato do ex-banqueiro e ex-ministro russo Boris Nemtsov, ocorrido na véspera (não há, até o momento, nenhum indício de que Moscou tenha algum envolvimento no crime). O presidente dos EUA considerou que o clima político vivido pela Rússia não é compatível com os direitos humanos.

Hoje pela manhã, o mesmo Barack Obama reuniu-se na Casa Branca com um grupo de assessores seletos, para uma tarefa que se transformou em rotina às terças-feiras. A partir de uma lista de suspeitos (denominada kill list) organizada pela CIA, o presidente decidiu quais inimigos políticos dos EUA serão executados, nos próximos dias, por tiros disparados de drones.

As vítimas não têm o mínimo direito de defesa ou processo judicial. Até agora, entre 2769 e 4494 pessoas foram liquidadas assim, no Paquistão, Yêmen e Somália – três delas no último domingo.

Em nome da democracia e dos direitos humanos, isolemos a Rússia e Vladimir Putin!

Publicado em Outras Palavras