“El puñal
entra en el corazón
como la reja del arado
en  el yermo”
(“Puñal” de Federico Garcia Lorca em 1921)


Uma mulher com a relha do arado abriu sulcos na terra para plantar o século XX. Esta é uma das mensagens da peça “Frida Kahlo – a Deusa Tehuana”, dirigida por Luiz Antônio Rocha.

Muito além da artista que na última década emergiu em livros, exposições e filmes como uma comunista convicta, feminista e artista, ela é apresentada como representante de uma geração que viveu intensamente “A Era dos Extremos” ou a “Era das Revoluções”. Denominações deste período dadas pelo historiador Eric Hobsbawm.

A figura pop de Frida, amplamente difundida pela mídia, cede para o lado sofredor, apaixonado e doentio.

A dramaturgia mescla escritos de Frida com reflexões dos autores do espetáculo, num diálogo vibrante. A dor da artista está condensada na dor: do acidente num bonde, quando seu corpo foi invadido por ferragens; pelas consequências de sua poliomielite; pelo amor por Diego Rivera. Neste cenário trágico é acrescentado à fragilidade frente aos vícios na bebida, nos cigarros, nas drogas. Diego sempre está em sua vida como um dilema, ele está fragmentado entre o amor e o ódio. A própria Frida dizia que havia tido dois acidentes em sua vida: aquele no bonde e Diego.

Este seu desespero é expresso no espetáculo através do corpo da atriz. Na nudez, no silêncio de seus lábios e nas mímicas faciais. “Pés, pra que os quero se tenho asas para voar?”, disse a própria Frida ao perder seus pés pela gangrena, cena vivida cruamente pela atriz Rose Germano.

As vestimentas, como ela mesma denominava suas roupas, era um modo se aprontar para entrar no paraíso, uma preparação para a morte. Sendo o figurino usado roupas idênticas às originais da Frida, os espectadores desfrutam uma oportunidade única, quase museológica. A de ver estas criações fora da vitrine. Sendo usadas como eram por sua criadora.  Tecidos e desenhos que caracterizam a cultura das índias Tehuanas do México. Para trazer este museu vivo o diretor foi a capital mexicana, onde teve acesso a um conteúdo étnico raro.

O cenário é bem seco e despoluído de qualquer detalhe desnecessário: uma mesa, algumas cadeiras e poucas telas ao fundo. Colabora com a mesancene circular e expressa a essência trágica de Frida. Nada tira o foco do corpo da atriz. Cigarros e uma garrafa de bebida alcoólica estão no palco porque fazem parte dos desabafos da personagem, assim como fizeram parte das fugas de Frida Kahlo em vida real.

No fundo as músicas mexicanas, instrumentais e, especialmente, no violão. Todas são interpretadas corporalmente no palco. A música “Noite do meu bem”, de Dolores Duran, é a única obra brasileira, apresentada numa versão mexicana. Momento simbólico, quando se cruzam dois destinos de mulheres – intensas e excitantes. Uma mexicana e a outra brasileira. Detalhe que revela mais ainda o conhecimento do diretor sobre o tema.

A atriz representa uma transmutação nua. Momento que vem com naturalidade, contrate com os frequentes clichês, quase pornográficos, dos filmes nacionais.

Em seu livro “Diego e Frida”, J. M. G. Le Clézio escreve sobre a necessidade que Frida tinha de Diego: Ela “vê através dos seus olhos, sente através dos seus sentidos, adivinha através do seu espírito, ela é Diego e Diego está nela como se o trouxesse no seu corpo.” Com as drogas ela acredita poder encontrar a sua centralidade.

Lemos em seu diário:
“Diego, começo
Diego, construtor
Diego, minha criança
Diego, minha noite
Diego, pintor
Diego, amante
Diego, meu marido
Diego, meu amigo
Diego, minha mãe
Diego, meu pai
Diego, meu filho
Diego, eu
Diego, universo
Diversidade na unidade
Mas por que é que eu digo Meu Diego?
Ele nunca será meu. Ele só pertence a si próprio.”

Por mais que se queira explicar os sentimentos de uma Deusa Tihuana, parece que nunca será possível. Sempre teremos especulações. O espetáculo sobre Frida afirma essa máxima.

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Os autores: Gabriele Jardim é poeta e estudante de história de Universidade do estado do Rio de Janeiro (UERJ); Luiz Carlos Prestes filho é formado em Direção e Roteiros de Filmes Documentários para Cinema e Televisão da União Soviética (VGIK)