As crises econômicas são inerentes ao desenvolvimento do modo de produção capitalista e se caracterizam por um duplo movimento: destruição de bens, ativos e forças produtivas por um lado, e do outro uma crescente concentração do capital e da riqueza. A crise financeira de 2008 expôs a enorme concentração da riqueza e a crescente desigualdade social nos países centrais, fomentando um incipiente debate intelectual e político sobre os mitos do capitalismo. De outro lado, esta crise global evidenciou a relação que existe entre a estrutura de poder mundial e a que predomina, por exemplo, na Argentina.

Contudo, a desinformação impregna nossa conjuntura política. Esta desinformação flui do relato dos meios de comunicação, um relato que oculta toda informação relativa às relações de poder e seu impacto sobre nossa realidade imediata. A ausência de um debate intelectual e político sobre o significado do momento atual também contribui para a desinformação. Sem informação e sem debate não há conhecimento profundo sobre a realidade. Ao desconhecermos as relações de forças e a importância relativa dos diversos conflitos e alianças possíveis, e se ignoramos de onde viemos e para onde vamos, as tentativas de transformar a realidade ficarão truncadas. A intenção deste artigo é contribuir para o debate sobre o momento no qual vivemos.

A necessidade de produzir constantemente o lucro e de obtê-lo no mercado deu lugar, nos países centrais, a uma acumulação altamente intensiva no capital, uma acumulação que substitui continuamente a força de trabalho por bens de capital, causando desemprego, estagnação e queda dos salários, rápida obsolescência tecnológica, acumulação de bens, queda de preços, e um grande aumento da capacidade ociosa existente em relação à capacidade potencial existente. Como consequência, os países centrais enfrentam hoje em dia as ameaças de recessão e deflação no contexto da crescente desigualdade social.

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD) estima que até 2030 as taxas de crescimento da produção, do emprego e dos investimentos em capital social destes países serão inferiores as conquistadas nas décadas de 1990 ou de 2000, e o crescimento de sua renda média anual será inferior à taxa média anual de crescimento da renda mundial.

Apesar deste estancamento produtivo, e muito além do papel da China na economia mundial que não podemos tratar agora, os países centrais – e, em particular, os Estados Unidos – controlam a produção a nível global. A acumulação altamente intensiva no capital deu lugar a uma expansão do capital para fora das fronteiras através de cadeias de valor.

Um grupo relativamente reduzido de corporações multinacionais domina ligações estratégicas nestas cadeias de valor, controlando assim um processo que desintegra a produção a nível local, ao mesmo tempo em que a integra em nível global. Desta maneira, o capital monopolista/oligopolista determina a maneira em que é produzido o excedente econômico a nível mundial. Mesmo assim tem um papel decisivo no comércio internacional.

Em resposta, mais de 80% deste último funciona hoje através de cadeias de valor e pelas redes de produção de empresas multinacionais (filiais, contratantes, fornecedores, licenciadas etc.). Isto restringe muito a possibilidade que os Estados têm em controlar o comércio exterior de seus respectivos países e facilita as atividades especulativas a nível comercial. Neste contexto, as rendas do monopólio adquirem uma importância crucial. São um mecanismo de sucção do excedente econômico e da riqueza acumulada, e impulsionam um processo de acumulação mundial baseada na pura e simples desapropriação de vastos setores sociais.

O movimento paradoxal de fragmentação e de concentração que caracteriza a produção capitalista a nível mundial é reproduzida nas finanças internacionais. A manipulação das taxas de juros e as operações especulativas de todo tipo constituem os mecanismos utilizados por diferentes atores em sua luta por apropriar-se de uma maior cota do excedente econômico e da riqueza acumulada.

Neste processo turbulento, as rendas financeiras impulsionam grandes transferências de rendas e a desapropriação de múltiplos e diversos setores sociais. Esta renda deu lugar a uma classe rentista que vive de comissões financeiras fixadas monopolicamente e transferidas aos preços. A intervenção do Estado no sistema financeiro dos países centrais tem um papel crucial nestes processos e tende a impulsionar a concentração do capital.

A especulação de hipotecas subprime, ou de alto risco, nos os EUA desencadeou a crise de 2008 e colocou o sistema financeiro deste país a beira da quebra . A solução encontrada pela Reserva Federal para evitar o colapso dos grandes bancos, e para outorgar crédito a economia “real”, recaiu em uma política de afrouxamento monetário ou quantitative easing (QE), que consiste, em sua primeira fase, na compra sistemática e massiva de hipotecas “podres” pelos bancos. Isto revalorizou estes ativos e aumentou as reservas líquidas dos bancos.

Como contrapartida regularizou-se as atividades destes últimos, a fim de evitar sua contaminação com investimentos especulativos. Assim foram salvos da quebra os grandes bancos, contudo não conseguiu-se o objetivo explícito de reavivar a economia. O resultado imediato foi o aumento das reservas dos grandes bancos e o crescimento do crédito de curto prazo ortogado pelo “banco nas sombras” (shadow bank). Constituída pelos hedge funds, fundos de pensão, fundos soberanos, companhias de seguros etc., o sistema bancário paralelo não foi regulado e operou com taxas de juros maiores que as dos bancos.

Por isso os grandes e rápidos lucros especulativos deste setor através de um complicado encadeamento de operações com “derivados” financeiros (instrumentos financeiros de diferentes tipos cujo valor deriva do valor de outro ativo subjacente: ações, opções, bônus corporativos, bônus soberanos, swaps de taxas de juros, credito default etc.).

O sistema financeiro paralelo financiou grande parte de suas atividades com o uso e reuso (acordos de recompra) dos depósitos e garantias colaterais dos grandes bancos. Deste modo, o sistema bancário formal e o paralelo ficaram cada vez mais interconectados. A magnitude destas operações a curto prazo, sua opacidade ao não figurar na contabilidade dos bancos ou das entidades financeiras e a contaminação dos depósitos dos bancos com investimentos de alto risco fazem das finanças um mundo selvagem, extremamente turbulento e frágil.

Neste cassino de múltiplas apostas abertas, a cláusula do safe harbor em transições com derivados parece potenciar tanto a possibilidade de concentração do capital como o risco de implosão financeira. Introduzida na reforma financeira de 2005, esta cláusula isenta os traders de derivativos nesse ínterim (stay) que bloqueia os esforços do credor por cobrar a dívida, concedendo-os assim direitos especiais e prioridade na cobrança da dívida.

Isto facilitaria a concentração do capital ao permitir que os credores – e, especialmente os grandes bancos com grandes tendências de derivados – exijam o pagamento imediato da dívida e se apropriem dos ativos dos devedores. Os colapsos Bear Stearn, Lehman Brothers, AIG e, mais recentemente, o colapso do MF Global, em 2011, haveriam sido detonados pela súbita paralisação das transações com derivados por parte de seus respectivos sócios e o consequente saque destas entidades, aplicando a cláusula do safe harbor.

A possibilidade de uma debandada para liquidar a garantia por parte das instituições financeiras que têm acordos de recompra e derivados com cláusula de safe harbor ameaçaria assim a estabilidade do sistema financeiro norte-americano.

O descalabro financeiro das economias mais frágeis da Comunidade Europeia mostra como as turbulências financeiras dos Estados Unidos se reproduzem nas finanças internacionais. Nestas turbulências se encontra atrelada a dívida soberana de muitos países.

Neste contexto selvagem, os fundos abutres que ameaçam a reestruturação da dívida argentina não são uma anomalia. São uma expressão a mais da luta amarga pela apropriação do excedente econômico, da renda e da riqueza acumulada. Encarnam em nossa realidade as turbulências das finanças internacionais. Nossa vulnerabilidade frente a esta ofensiva não surge simplesmente do peso de nossa dívida externa. O principal obstáculo para enfrentar os fundos abutres é o nó górdio que nos oprime e que temos analisado anteriormente neste jornal (13/11/2011, 20/1/2014 e 14/3/2014).

A acumulação do capital em condições de dependência tecnológica deu lugar ao controle monopolista/oligopolista de setores chave de nossa economia.

Os laços deste nó górdio: a restrição externa, a corrida do câmbio e a inflação, semeiam o canibalismo social, fomentam a instabilidade política e nos condenam a estagnação econômica. Estes laços do nó górdio são o principal obstáculo à gestão soberana da dívida externa e expõe a relação existente entre a estrutura de poder global e a que existe em nosso país. Neste contexto, a formação monopólica dos preços e sua dolarização adquirem uma dimensão nova. Estes processos indicam o campo onde se encarnam e fundem, imediatamente, os principais conflitos sociais.

Daí a importância e a urgência de criar espaços institucionais que permitam uma mobilização organizada da cidadania com o fim de controlar a formação de preços ao longo das cadeias de valor, desde a produção até o consumo. Isto irá lançar luz sobre o voo rasante dos abutres internos que, favorecidos pelas limitações para obter divisas com consequências da restrição externa, utilizam as taxas de câmbios e a dolarização de preços para restringir a política oficial e perpetuar em nosso país a estrutura de poder global.

Estes espaços permitirão, além disso, dar eficiência e legitimidade a política de Preços Cuidadosos. Mais importante ainda, esta experiência de participação coletiva na luta contra um mal que aflige a todos, permitirá articular alianças entre setores com interesses diferentes e irá contribuir para limitar o canibalismo social, abrindo o caminho para a inclusão social e integridade nacional.
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Mônica Peralta Ramos é socióloga, autora de “La economía política argentina. Poder y clases sociales”.

Tradução: Cepat para Carta Maior