Um novo tipo de estranhamento ronda as grandes cidades do Brasil. As reações às recentes incursões das juventudes das periferias em lugares tradicionalmente ocupados pelas classes médias urbanas – sejam os shoppings paulistas ou certos pontos das praias do Rio de Janeiro – traduzem um pouco do que vivemos no Brasil real do início do século XXI. São dois “Brasis”, historicamente separados por um imenso fosso cultural, econômico e social, que agora se tangenciam com uma intensidade e complexidade impensáveis anos atrás. Efeito direto das profundas mutações observadas em nosso tecido social na última década.

Inicio minha argumentação esclarecendo que não pretendo analisar esses fenômenos a partir da temática da violência. Tampouco buscarei debater a validade ou a improcedência da repressão policial nesses casos. Apenas pretendo esboçar uma análise sobre este fenômeno sociológico, que considero fundamental para compreender o Brasil pós-Lula. E, claro, cumpre registrar que não estou entre aqueles que acreditam que soluções meramente repressivas podem dar conta dessa enorme complexidade.

A chamada “nova classe média” está dando um verdadeiro nó na cabeça dos intelectuais e dos autodenominados formadores de opinião do país. Não há mapas e teorias pré-estabelecidas que assegurem uma abordagem integral e definitiva. Portanto, é hora de todos refletirmos.

Penso que esse estranhamento – que opõe as classes médias tradicionais e os jovens das periferias – tenha como pressuposto a emergência de amplos segmentos populares à sociedade de consumo, sustentada pelo aumento do salário mínimo e pelas políticas sociais desenvolvidas no país nos últimos anos. Acredito, ainda, que há três aspectos que diferem a atual onda de “invasão” dos jovens pobres de outros casos semelhantes no passado, como os arrastões nas praias do Rio na década de noventa, por exemplo.

Em primeiro lugar porque os pobres que “ocupam” esses espaços agora – à sua maneira e por vezes de forma violenta – estão ali porque acreditam ter legitimidade de ocupá-los enquanto sujeitos e consumidores. Eles querem ocupar um lugar que também lhes parece seu. Ainda que alguns – ou muitos – possam orientar-se por uma conduta violenta, é evidente que a mobilização de milhares de jovens para dar um “rolé” no shopping não teria a menor chance de se massificar, como ocorreu, tendo a violência como motivação exclusiva.

Há uma noção difusa, mas consistente, de que certos espaços das cidades não são de uso exclusivo de “playboys” ou “madames”. E o aumento do poder aquisitivo, a sensação de que “eu também posso comprar” justifica a presença do jovem das periferias nestes locais. O lugar em questão ja não pertence naturalmente ao outro; “eu” também me vejo nele. Essa presunção de legitimidade para ocupar esses pontos, portanto, é algo novo e distingue essa nova onda de estranhamento.

A segunda diferença é o uso das redes sociais digitais por parte destes jovens. Elas foram utilizadas tanto para organizarem os tais “rolezinhos” quanto para convocar ações em resposta ao tratamento que a polícia carioca passou a dispensar aos ônibus vindos dos subúrbios do Rio no final de 2013. Na capital fluminense, um “farofaço” chegou a ser convocado pelas redes sociais, em dezembro passado, como forma de protesto às medidas discriminatórias que supostamente visavam combater os arrastões nas praias cariocas. Portanto, trata-se de um fenômeno de mobilização em rede, descentralizada, sem hierarquias ou centros de convocação.

E, em terceiro lugar, creio ser possível afirmar que estes jovens se vêem como grupo social específico – o que a publicidade já percebeu e a política não. Os pobres inseridos na sociedade de consumo começam a ter consciência de si, de sua condição social e da discriminação que lhes é imposta. Óbvio que não se trata daquele tipo de consciência idealizada que a parcela elitista da esquerda reclama, mas um novo tipo de consciência. Espontânea, fragmentada e desorganizada, mas igualmente consciência. Torcer o nariz para o chamado “funk de ostentação” não ajuda a ter uma noção exata do que isso representa no imaginário de uma geração educada sob uma lógica cultural muito distante daquela vivenciada por seus pais. Eles se sentem muito mais potentes. A postura desses jovens tem relação direta com as políticas afirmativas, com a democratização do sistema de ensino, com cotas, Prouni, etc.

Goste-se ou não, esse tipo de manifestação cultural surge como uma forma desses jovens dizerem que “nós também queremos consumir tudo aquilo que a publicidade nos apresenta como caminho para a felicidade”. E o fazem a partir de seu lugar de origem e através dos meios que têm à sua disposição. Se isso não é consciência, o que é então?

O estranhamento da classe média às invasões da periferia guarda muita semelhança com o que ocorreu nos aeroportos brasileiros nos últimos anos. O desconforto das classes tradicionais com a chegada em massa da “nova classe média” aos aeroportos foi uma antecipação desse clima de tensão que preocupa freqüentadores dos shoppings paulistas.

E as condições que proporcionaram este estranhamento serão mantidas por algum tempo. Logo, é preciso agir para que não prospere por aqui nenhuma lógica segregacionista, que venha a exacerbar preconceitos e o racismo, através de medidas formais e institucionalizadas de discriminação, que já são uma realidade em alguns espaços, ainda que isolados.

Podemos gerar uma situação explosiva, cujos efeitos sobre o conjunto da sociedade brasileira são imprevisíveis. A reação dos donos do Shopping JK Iguatemi podem simplesmente gerar novas e mais violentas manifestações.

Lembremos que a repressão aos protestos de junho foi o estopim para novas mobilizações. Aliás, e se essa massa resolver dar um “rolezinho” nos estádios da Copa? E se os “rolezinhos” virarem moda e começarem a se disseminar em ruas, parques, feiras e outros espaços frequentado pela “gente diferenciada” em todo o país? Não estou com isso afirmando que estamos na iminência de um conflito. A sociedade brasileira, por sinal, tem sido pródiga em absorver e mitigar suas contradições, gostemos ou não disso. Mas é preciso estarmos atentos.

Será indispensável refletirmos sobre estratégias de aprofundamento do processo de inclusão social, que sejam capazes de acolher esses jovens e apresentar-lhes novas possibilidades de ascensão cultural, econômica e social. E é fundamental buscarmos a compreensão desses novos conflitos, partindo do pressuposto de que a resolução deles dirá muito sobre o país que teremos nas próximas décadas.

(*) Secretário-geral do governo do Rio Grande do Sul. Coordenador do Gabinete Digital.

Publicado em Carta Maior