Os anos 2000 significaram uma inflexão na história brasileira. Ainda sabemos pouco sobre o que aconteceu em vários aspectos: o novo padrão de inserção externa da economia brasileira, as transformações na estrutura de classes, as relações entre o Estado e o setor privado, a divisão inter-regional do trabalho, para falar apenas dos temas mais palpáveis, sem ingressar no âmbito mais subjetivo da cultura e das aspirações coletivas.

Nesse período, as palavras desenvolvimento, projeto nacional e planejamento voltaram a ser proferidas, mas não praticadas em sua plenitude. Se quisermos usar um termo retirado do nosso passado – mas desgastado pelo uso economicista que geralmente se faz dele no presente –, podemos dizer que avançamos, mas sem ultrapassar o limiar do pré-desenvolvimentismo.

O objetivo deste artigo é identificar mais uma barreira a nos manter na incômoda antessala do desenvolvimento. Trata-se do retorno da agenda antidesenvolvimentista.

Essa barreira – que havia sido apenas parcialmente deslocada – volta agora com força redobrada. É importante reconhecer que ela não emergiu como mero fruto do acaso. A incapacidade de construção de uma nova perspectiva desenvolvimentista – para o que contribuíram várias ilusões gestadas no campo progressista sobre a variedade de capitalismo no Brasil e sua estranha coalizão de poder – foi parteira do seu adversário, que tenta voltar ao passado (será possível?) e recuperar a agenda mais ampla do Plano Real, abortada pela crise externa dos anos 1990 e pelas reações da sociedade.

Quem são os antidesenvolvimentistas? De maneira sintética, pode-se dizer que fazem parte desse grupo economistas com formação obtida em centros de prestígio no exterior, os quais se socializam nos departamentos de Economia de algumas importantes universidades brasileiras. Hoje seu quartel-general encontra-se no Instituto de Estudos de Política Econômica, mais conhecido como Casa das Garças, no Rio de Janeiro.

Por que antidesenvolvimentistas? A afirmação pela negativa não tem nenhuma conotação pejorativa nem busca desqualificá-los. Eles próprios rejeitam qualquer filiação com a tradição do desenvolvimentismo no Brasil. O prefixo “ant(i)-” se justifica ademais pelo desapreço que têm com relação às peculiaridades e potencialidades nacionais – ponto de partida central do desenvolvimentismo –, preferindo aplicar uma farmacologia, pretensamente universal, mas em desuso inclusive nos centros onde adquiriram sua formação acadêmica.

Mais recentemente, eles estão se reorganizando em torno de grupos sociais poderosos. Vejamos o que querem os antidesenvolvimentistas1.

Em primeiro lugar, partem do pressuposto de que o “nacional-desenvolvimentismo” do governo Dilma naufragou. Segundo seu diagnóstico, a combinação entre juros cadentes desde 2011 com a política de contenção à valorização cambial acionada em 2012, maior “protecionismo à indústria” e “relaxamento fiscal”, num cenário de “pleno emprego”, em vez de produzir crescimento contribuiu apenas para incrementar a inflação. O recuo recente do governo – leia-se elevação dos juros – seria uma admissão de que a estratégia não deu certo e, portanto, precisa de uma guinada radical.

Como alternativa, os antidesenvolvimentistas pregam uma agenda voltada para a ampliação da produtividade, o que seria conseguido “facilmente” com a redução das tarifas de importação, a assinatura indiscriminada de acordos comerciais e uma redução da carga tributária. De modo a não afetar a dívida pública, eles propõem um teto aos gastos do governo, que deveriam se expandir a um ritmo inferior ao da economia brasileira. A fórmula de valorização do salário mínimo também passa a ser criticada, pois engessaria a competitividade do país.

Quanto aos gastos de infraestrutura, o Estado deve aceitar a rentabilidade imposta pelo mercado. Do contrário, a taxa de investimento não sairia do lugar. Vale lembrar que volta a velha cantilena de que os juros só podem cair com o ajuste fiscal. Versões mais recentes advogam que o contrato social da democratização está com os dias contados. Alguns de seus expoentes chegam a afirmar que o governo Lula surfou nas “reformas” dos anos 1990, as quais teriam ampliado a eficiência econômica do país, agora comprometida com o excesso de “ideologia” do governo Dilma.

Dois conceitos permeiam o vocabulário antidesenvolvimentista: o “pleno emprego” e o “isolamento das cadeias internacionais de valor”. Vivemos, em sua concepção, asfixiados pela autossuficiência. A solução é forçar as empresas a um choque de competitividade, permitindo que se integrem à economia global. A segurança jurídica nos contratos de concessão completaria o cenário: o Brasil precisa se transformar no paraíso do capital privado, de preferência, internacional, os quais não podem estar sujeitos a quaisquer tipos de condicionantes.

Os antidesenvolvimentistas têm como avô intelectual Eugênio Gudin, o pensador liberal dos anos 1940, para quem o problema do Brasil era essencialmente monetário. Vivíamos num país em situação de hiperinvestimento e hiperatividade, esse era o diagnóstico. A solução deveria ser buscada na integração comercial a partir dos setores onde éramos (supunha ele) mais eficientes, abrindo para os demais a porteira ao capital internacional.

Hoje sabemos que Gudin perdeu a batalha, mas seus herdeiros voltam à cena, replicando velhos argumentos. Parecem pouco familiarizados com a complexidade da economia brasileira do início do século 21 e com as demandas de uma sociedade heterogênea, urbanizada e ainda, profundamente, desigual.

Os impactos das políticas por eles propugnadas podem se revelar nefastos, especialmente em termos sociais, caso voltem a comandar a política econômica. Por isso, é importante questionar as premissas dos antidesenvolvimentistas.

Em primeiro lugar, não é possível dizer que os dilemas vividos pelo governo Dilma se devam a sua conversão ao “desenvolvimentismo”. Apesar de algumas mudanças iniciadas e não concluídas pelo atual governo – especialmente no que diz respeito à política econômica e às relações entre o Estado e o setor privado –, ainda estamos bem distantes de uma genuína perspectiva desenvolvimentista.

Em segundo lugar, os antidesenvolvimentistas incorrem no mesmo equívoco denunciado por Roberto Simonsen, na polêmica com Gudin2: “a mística da produtividade”. Acreditam que a simples combinação de mais abertura com menos gastos do Estado é suficiente para melhorar a eficiência da economia.

A pergunta é: o que vai sobrar depois de uma nova abertura extremada, em condições macroeconômicas pouco satisfatórias? Ora, sabemos que os juros continuariam elevados – até porque eles defendem uma meta de inflação mais baixa que a atual –, os gastos do Estado devem recuar e nada indica que o câmbio vá sofrer uma alteração drástica. Talvez apenas vivenciemos um novo período de perda substantiva de reservas, sucedida por nova crise cambial.

Elos da cadeia produtiva vão se perder e nada assegura que o país avançará rumo aos setores mais intensivos em tecnologia, dos quais continuaremos importadores, como já acontece hoje. O mercado interno, nosso principal ativo, desacreditado durante os anos 1990 e recuperado nos anos 2000, pode ter seu potencial de expansão mais uma vez desperdiçado.

Aliás, a perspectiva de crescimento das exportações num país como o Brasil está, em grande medida, vinculada à capacidade de estruturar interesses – internalizar os centros de decisão, como diria Furtado – complementares no espaço nacional.

Por isso, não faz sentido empiricamente dizer que o Brasil está ausente das cadeias internacionais de valor. Um rápido olhar para os déficits do setor industrial com a China, os Estados Unidos e a Europa revela que estamos bastante integrados, mas de forma passiva. A questão, pois, não é abrir ou fechar a economia brasileira, mas definir quais padrões de integração queremos (e podemos) desenvolver com os novos centros da economia-mundo capitalista. Que setores produtivos e nichos de mercado podem ser internalizados e de que forma – com tecnologia estrangeira ou desenvolvida nacionalmente por empresas transnacionais, estatais e de capital privado nacional?

Paralelamente, cumpre ressaltar que nos situamos muito longe do pleno emprego. A estrutura ocupacional brasileira ainda está concentrada em atividades que exigem pouca qualificação, pagam baixos salários e apresentam elevada rotatividade. Um contingente expressivo de trabalhadores encontra-se vinculado ao segmento não capitalista, com baixo nível de produtividade. Ou seja, continua existindo no país um excedente estrutural de força de trabalho a ser aproveitado, podendo desempenhar funções que exigem maior qualificação. Nesse sentido, uma política de valorização dos recursos humanos nacionais – em atividades que exigem curso técnico ou superior – pode inclusive dispensar, no longo prazo, os trabalhadores “importados” de outros países, cuja vinda obviamente não deve ser questionada, mas antes enfrentada com o aprimoramento do nosso potencial produtivo.

Tampouco se pode dizer que o custo do trabalho cresce, de maneira “generalizada”, por conta do “pleno emprego”, como insistem os antidesenvolvimentistas. Ora, ao contrário, o que estamos presenciando é uma recuperação, ainda em curso, dos salários de base, essencialmente por meio do salário mínimo, a qual pode ter continuidade num contexto de ampliação da produtividade do capital e do trabalho, por meio dos gastos de infraestrutura, qualificação e inovação, num contexto de maior diversificação produtiva e aumento das economias de escala.

Essa perspectiva está ausente do discurso antidesenvolvimentista. Sua fórmula, abstrata e pretensamente universal, para assegurar o aumento da produtividade é composta das seguintes variáveis: economia aberta, salários contidos, menos impostos (portanto, menos Estado) e mais educação – esta geralmente tida como “variável” ad hoc, adicionando uma pitada de boa consciência à equação mágica. Só não dizem como vão financiá-la num contexto de forte ajuste fiscal…

Para o enfrentamento a essa agenda, precisamos apostar na reconstrução de uma utopia e de uma práxis desenvolvimentistas, o que transcende os limites estreitos da política econômica.

Os nossos dilemas não serão superados a partir de uma combinação “ótima” entre política cambial, monetária e fiscal retirada da cabeça dos mais brilhantes economistas. A política econômica é apenas um dos meios – às vezes pode ser o obstáculo que emperra os demais e por isso é tão importante! – para pensarmos um projeto nacional enraizado na sociedade, no território e na cultura, que seja capaz de lidar com os desafios impostos pelo novo contexto internacional.

Enfim, um processo de construção coletiva em que planejamento e democracia cumpram o papel estratégico de soldar anseios hoje ainda circunscritos a demandas setoriais e de grupos específicos. Não existe um único padrão de desenvolvimento, e tampouco uma relação de dicotomia entre Estado e mercado. A criatividade na construção de esferas públicas decisórias autônomas e participativas, associadas a novas relações com a sociedade, é o grande desafio do desenvolvimento em qualquer tempo e lugar, por mais que as soluções encontradas resultem das especificidades de cada realidade histórica.

Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira/Internacional do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP)

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