DO 11 DE SETEMBRO A CRISE DO SUBPRIME
Os anos 1990 testemunharam um período sem precedentes de expansão da economia norte-americana. Esse crescimento exuberante foi interrompido antes mesmo dos eventos de 11 de setembro de 2001. Mas foi com o ataque terrorista e o receio acerca dos desdobramentos da “guerra contra o terror” que os mercados globais entraram num período de forte incerteza, exacerbando a situação precária da economia mundial. Além disso, em 2002, o escândalo da ENRON nos Estados Unidos provocou uma forte queda no mercado de ações em geral, já bastante cambaleadas desde o estouro da bolha das empresas ponto-com no fim de 2000.
Em resposta à recessão o governo norte-americano reduziu fortemente a taxa de juros básica. Assim, depois de um pico de 6,5% em 2000, a taxa do “fed funds” foi reduzida para 1% no fim de 2003, a mais baixa desde 1958 (Cassidy, 2011; p.227; Morris, 2009, p.l06). Como a inflação estava em torno de 2%, o juro real ficou negativo por mais dois anos. O governo também ampliou os gastos públicos, cortou impostos e forneceu ajuda financeira a setores mais expostos como as companhias aéreas, de seguros etc.
Com as taxas de juros muito baixas, as famílias norte-americanas passaram a investir na compra de novas moradias, o que ajudou a dinamizar novamente a economia. Entretanto, o aquecimento no setor imobiliário levou a intensa especulação no preço das residências, fazendo com que, entre 2000 e 2005, os Estados Unidos vivessem um boom habitacional sem precedentes. As chamadas hipotecas subprime foram responsáveis por parcela expressiva desse boom. Segundo Morris (2009, p.116), os empréstimos nesse segmento saltaram de um volume anual de US$ 145 bilhões em 2001 para US$ 625 bilhões em 2005.
A conjuntura começou a mudar em junho de 2004 quando o Fed iniciou uma política de elevação da taxa de juros, provocando um aumento do custo financeiro dos empréstimos para o tomador e, a partir de 2006, uma queda no preço dos imóveis (Blackburn, 2008, p.68). Como resultado, houve um intenso aumento na inadimplência que já em 2006 atingiu 15% (IEDI, 2008, p.7). Em abril de 2007 ocorreu a falência da New Century Financial Corporation, a segunda maior instituição de crédito hipotecário de risco dos Estados Unidos, um dos primeiros sintomas da crise financeira. Entre os maiores credores do New Century estavam instituições como o Goldman Sachs Group, o Morgan Stanley e o Lehman Brothers (Lewis, 2007).
No segundo semestre de 2007, o Bears Stearns, banco de investimento, declarou que dois de seus fundos hedge, baseados em hipotecas subprime tiveram perdas superiores a US$ 3,2 bilhões (Cintra e Scherer, 2008, p.8). Assim, levando em conta a importância e o tamanho do mercado financeiro norte-americano e seus estreitos vínculos com outros mercados de crédito, amplificados com a globalização financeira das últimas décadas, estava evidente que a instabilidade financeira alcançaria outros países.
O agravamento da crise sobreveio entre setembro e outubro de 2008 com a falência das gigantes do mercado hipotecário, Fannie Mae e Freddie Mac e do banco de investimentos Lehman Brothers. A American International Group (AIG), maior seguradora do mundo, teria o mesmo destino, não fosse o resgate de US$ 85 bilhões realizado pelo Fed. Todas essas instituições estavam excessivamente expostas a perdas no mercado de hipotecas (Borça Jr e Torres, 2008).
A crise no núcleo central do capitalismo fez com que os fluxos de capitais entrassem em colapso, atingindo diversos países. Assim, em princípios de outubro de 2008, o Fed juntamente com os bancos centrais da Inglaterra, Suécia, Canadá e China, decidiram reduzir simultaneamente as taxas de juros (Frenkel, 2009). O Fed ainda fez acordos de swap   com 14 bancos centrais, incluindo bancos centrais de países periféricos como Brasil e México.

INUNDANDO O MUNDO DE DÓLARES
As imensas injeções de liquidez no sistema financeiro, conduzidas pelo Fed e pelas autoridades econômicas dos países centrais, foram bem sucedidas em evitar a hecatombe do sistema. Neste caso valeu o aprendizado da crise de 1929, quando as autoridades, presas aos pressupostos econômicos ortodoxos, ficaram esperando que a economia se recuperasse por si só. Conforme Galbraith (1997, p.181), naquele momento acreditava-se que a questão estava principalmente em recuperar a confiança empresarial, o que necessariamente passava pela manutenção do equilíbrio orçamentário do governo. O prolongamento da depressão criou um ambiente propício para uma política alternativa, como o “New Deal” executado pelo governo Roosevelt entre 1933 e 1937. A partir do New Deal houve a execução de uma série de programas governamentais e o abandono das políticas deflacionárias que contribuíam para manter a economia estagnada. As políticas sociais também foram colocadas em prática e tiveram um papel importante, apesar da oposição de setores empresariais (Mazzucchelli, 2009, p.233).
Na crise atual, ao contrário dos anos 1930, um novo New Deal que fosse além das medidas tomadas para salvar o sistema financeiro ainda não foi lançado.  Pelo contrário, o lema é desmontar os pequenos vestígios do Estado de bem-estar social existentes nos Estados Unidos (Pollin, 2013) e atacar qualquer tentativa de estruturação nesse sentido, vide o recente ataque do partido Republicano a proposta que estende os benefícios da saúde pública do governo Obama (“Obamacare”).
Até o momento, a resposta à crise veio através de um ativismo da política monetária sem precedentes. Como a taxa de juros já estava próxima de zero desde 2007, em dezembro de 2008 o Fed anunciou que iria adotar um novo programa, denominado de quantitative easing (QE). Embora considerado pouco convencional por grande parte dos economistas, o QE tem sido, desde então, a principal ação do Fed para recuperar a atividade econômica. Pelo programa o Fed passou a imprimir moeda com o intuito de comprar mensalmente uma grande quantidade de títulos do mercado financeiro. Com isto ele mantém as taxas de juros de longo prazo baixas e disponibiliza maior liquidez a economia.
Na primeira versão do QE, entre dezembro de 2008 e março de 2010, o Fed comprou dos bancos cerca de U$1,7 trilhão entre títulos lastreados em hipotecas com alto risco de calote e títulos do Tesouro no mercado secundário.
No fim de 2009 a economia mundial apresentava alguns modestos sinais de recuperação, mas que logo foi debelado com o início da crise da dívida soberana da Europa.  Os mercados financeiros iniciaram uma forte pressão, principalmente sobre Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha, os estados mais fracos da zona do euro, que ficaram conhecidos pelo acrônimo pejorativo de PIGS (Farhi, 2012, p.37).
Com a economia ainda patinando, o Fed lançou em novembro de 2010 uma segunda rodada do quantitative easing (QE 2) no valor de US$ 600 bilhões que seriam desembolsados até o fim de junho de 2011. Como o resultado ainda mantinha-se aquém do esperado, o mercado financeiro passou a pressionar por novas medidas. Deste modo, em setembro de 2011 o Fed anunciou a chamada Operação Twist que consistiu na troca de títulos de curto prazo em poder do Fed por títulos de longo prazo (6 a 30 anos) no valor de US$ 400 bilhões. Aqui o objetivo era baixar as taxas de juros de longo prazo, mas sem a necessidade de emitir dinheiro.
O lançamento do Q2 gerou sérias discussões entre as autoridades econômicas mundiais. Ao gerar massivos fluxos de capitais que buscavam maior retorno no mercado financeiro mundial, a política de dinheiro fácil do Fed fez com que as moedas de vários países se apreciassem (IMF, 2010). Deste modo várias economias emergentes adotaram medidas para tentar controlar a excessiva entrada de dólares e a valorização das suas moedas (Kakuchi, 2010). Uma “guerra cambial” estava em curso, conforme argumentou o ministro da Fazenda Guido Mantega. De fato, é indiscutível que o programa também tinha o objetivo de desvalorizar o dólar. E, como outras economias tentavam seguir o exemplo dos Estados Unidos, a semelhança como os anos 1930, quando as políticas de beggar-my-neighborhood tomaram conta dos objetivos comerciais dos países, era evidente.
Apesar das polêmicas, em setembro de 2012 foi anunciado o terceiro quantitative easing (Q3). O Fed informou que compraria US$ 85 bilhões ao mês em títulos, medida ainda vigente. O QE3 possui uma diferença crucial em relação aos programas anteriores: o Fed assumiu que a compra de ativos duraria até que houvesse uma melhora considerável no mercado de trabalho (Harding, 2013).

RESULTADOS E FUTURO INCERTOS
A política monetária norte-americana alcançou alguns efeitos positivos. Embora inicialmente o programa não tenha se refletido em crescimento (que continua patinando na casa de 2%) pelo menos não permitiu que a economia entrasse numa espiral deflacionária. Os mercados de ações recuperaram em torno de dois terços o valor perdido durante a crise, tornando-se um dos principais motores do mercado de ações em 2013 (Browning e Kiernan, 2013). Neste momento as finanças das famílias americanas estão se regularizando com os créditos novamente crescendo para os financiamentos imobiliários residenciais (Chandra e Matthews, 2013). Faz algum sentido, portanto, a sensação de que “o pior já passou”.
No entanto, ainda é cedo para avaliar o grau de sucesso do QE. Alguns efeitos colaterais já são conhecidos. Em primeiro lugar, o QE elevou drasticamente os níveis de depósitos excedentes dos bancos, uma vez que o crescimento dos empréstimos foi interrompido (Pollin, 2013, p.15). Enquanto o saldo em caixa dos bancos norte-americanos no fim do terceiro trimestre de 2008 era de US$ 388 bilhões, em 31 de julho já estava em US$ 2,2 trilhões (Oyamada, Valor, c3, 9/10/2013). Ou seja, até o momento o gigantesco aumento da liquidez não impulsionou o investimento privado, nem os gastos das famílias conforme o esperado. Mas os críticos do QE, conhecidos como “Policy Hawks”, alegam que em algum momento essas reservas começaram a ser revertidas em empréstimos, levando a uma inflação galopante (Prial, 2013).
O mercado de trabalho ainda é um problema grave. Entre 2008 e 2009 os Estados Unidos perderam cerca de 8,5 milhões de empregos (IMF, 2011, p.60). Em agosto a taxa de desemprego estava em 7,3%, o que significa 11,3 milhões de desempregados. Mais do que isso, segundo o FMI, a crise pode ter aumentado o chamado desemprego estrutural  (IMF, 2011, p.61). Vale observar: é principalmente pela elevada taxa de desemprego que dificulta a recuperação do rendimento dos trabalhadores que a economia norte-americana não sofre pressões inflacionárias, apesar da taxa de juros próxima a zero desde 2007 (Pollin, 2013, p.5). Isso vem acompanhado do aumento das desigualdades de renda dos Estados Unidos. De acordo com Saez (2013), em 2010 o rendimento médio da família americana cresceu 2,3%; entretanto nos 1% mais ricos a renda cresceu 11,6%, enquanto a parte inferior dos 99% restantes a renda cresceu somente 0,2%.
Outra questão a ser destacada é como a economia mundial irá reagir quando o Fed encerrar o estímulo monetário. A recuperação da atividade econômica dos Estados Unidos vem criando a expectativa de que este momento ocorra antes do esperado. Desde meados de maio, o Fed passou a sinalizar que pretende diminuir o ritmo de compras do atual QE até o fim do ano (Prial, 2013), fazendo com que os investidores permaneçam atentos para qualquer sinal de melhora na economia norte-americana. Ironicamente, a mera lembrança do óbvio, isto é, que o monumental derrame de dinheiro não pode durar indefinidamente, modificou as expectativas sobre a trajetória dos juros americana.
Isso gerou turbulências no mercado financeiro internacional, em particular sobre as economias emergentes que foram assoladas com fugas de capitais nos últimos meses. Assim, várias dessas economias sofreram desvalorizações cambiais como Brasil, Índia e Indonésia. Notável exceção: a China assistiu o renminbi se apreciar ao mesmo tempo em que seu estoque de reservas internacionais crescia. Somente em meados de setembro quando o Fed anunciou que manteria as compras de ativos, as turbulências no mercado financeiro deram uma trégua, estabilizando as taxas de câmbio das economias emergentes . A manutenção do QE ganhou um novo reforço com o impasse fiscal devido ao imbróglio entre democratas e republicanos sobre a ampliação do teto da dívida americana. Em decorrência, o “shutdown” durante o impasse (paralização de vários serviços públicos) deve dificultar ainda mais a recuperação da economia norte-americana.
Nesse ínterim, alguns analistas passaram a culpar os países que não aproveitaram o período de bonança para realizar reformas econômicas (leia-se, reformas neoliberais) que melhorassem suas imagens perante o mercado financeiro internacional. No primeiro grupo, países como o Brasil que mantém elevados gastos públicos. Ao contrário, aqueles que, nas palavras de Bellman e Catan (2013). “aproveitaram a era global de dinheiro fácil para promover mudanças nas suas economias estão vendo benefícios.” Nesse segundo grupo encontra-se o México que teria como “ativo valioso” a aproximação com os Estados Unidos que, espera-se, volte a crescer.
Longe disso, o que a turbulência nestes mercados demonstrou mais uma vez é o caráter errático dos fluxos de capitais quando gozam de ampla liberdade. A alta mobilidade de capitais e a inexistência de uma instituição com instrumentos capazes de coordenar o sistema monetário e financeiro internacional faz com que o atual sistema de taxas de câmbio flutuantes se caracterize por forte instabilidade.
Na realidade, passados cinco anos desde a quebra do Lehman, muito pouco foi feito em matéria de regulação das finanças. A lei Dodd/Frank de Reforma de Wall Street, assinada em julho de 2010, cria regras amplas para o mercado financeiro, mas ainda estão em processo de execução. Apesar de conter pontos ambiciosos como a “regra de Volcker”, que dificulta a criação de bancos universais nos Estados Unidos há enormes dificuldades de regulamentar a lei. Dificuldades incompreensíveis, segundo o próprio Paul Volcker. Além disso, algumas brechas na lei já foram realizadas como a isenção de swaps cambiais e contratos futuros de câmbio nas regulações (Gallagher, 2013).
Embora se peça maior regulação das finanças, as políticas que caracterizam a economia mundial permanecem subordinadas as instituições financeiras “grandes demais para falir”, mantendo os países reféns dos dissabores gerados pela livre movimentação do capital. Ou seja, as estruturas responsáveis pela maior crise financeira desde a crise de 1929 continuam de pé, e com um agravante que deverá acirrar as contradições imperialistas: o reposicionamento das grandes potências gerado pela fragilidade econômica.

1. Nestes acordos o Fed realiza empréstimos para os bancos centrais que, assim, utilizam os recursos para conceder crédito em dólares para as instituições financeiras em seus mercados domésticos.

2. Conceito próximo àquilo que Marx denominou de “exercito industrial de reserva”.

3. O Fed reafirmou que pretende manter o afrouxamento monetário até que a taxa de desemprego cai a 6,5%.

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