O jornal “O Estado de São Paulo” publicou no último dia 10 de outubro um editorial intitulado “A demagogia da mobilidade“. O texto reclama da reorganização dos corredores de ônibus ora em realização na cidade de São Paulo e a denomina “demagógica”, associando-a aos objetivos políticos do partido que está no poder municipal hoje.

Vou me limitar a comentar as partes do editorial que se referem exclusivamente à ação técnica que está sendo realizada pela Prefeitura. Por mais voltas que dê no seu raciocino, o que está por trás do editorial é o descontentamento pela redução do espaço viário hoje ocupado pelos automóveis. Embora o editorial reconheça a necessidade de melhorar o transporte público o que se percebe nele é uma visão claramente elitista e irritada, ecoando os protestos que alguns usuários de automóvel vêm manifestando por meio da mídia.

É estranho que o jornal se deixe levar pela emoção e que em um editorial trate tão superficialmente um tema tão relevante não só para São Paulo, mas para outras grandes cidades do país.

O primeiro problema do texto está na tentativa de aumentar a quantidade de automobilistas supostamente afetados pelas medidas. O texto fala em 7 milhões de proprietários de veículos e procura defendê-los contra a idéia de que seriam “pessoas egoístas que rejeitam o transporte público”. Embora o texto não afirme que há 7 milhões de automóveis em São Paulo, ao colocar seus donos na discussão ele está se referindo a eles, pois seriam as pessoas que poderiam usar o transporte coletivo. Primeiro, este dado sobre a frota é fornecido pelo Detran e se refere a todos os veículos registrados e não apenas aos automóveis. Ademais, o Detran não tem um sistema que permita dar baixa dos veículos que não circulam mais, seja porque estavam muito velhos, seja porque foram roubados, seja porque estão destruídos hoje.  Dados oficiais do Detran São Paulo mostram que dentre os veículos privados há 5,4 milhões de automóveis. Em outra categoria de veículos privados (salvo as motos, que contam um milhão) há 830 mil veículos dos tipos micro-ônibus, camioneta e utilitários, não havendo indicação separada entre eles.

Para superar o problema entidades públicas e privadas que precisam de dados mais acurados para fazer estimativas econômicas, de consumo de energia ou de impacto ambiental usam procedimentos estatísticos reconhecidos internacionalmente e eliminam da lista de veículos aqueles cuja probabilidade de estar em uso é próxima ou igual a zero. Entidades como a ANFAVEA (fabricantes de automóveis), o IPT, a USP, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Ministério do Meio Ambiente, a Petrobrás, a Cetesb (de São Paulo) usam os mesmos procedimentos para chegar à estimativa de frota de automóveis e utilitários leves em São Paulo de 4 a  4,5 milhões de unidades.  Estes valores vêm sendo sistematicamente ignorados pela imprensa, pelo rádio e pela televisão, provavelmente porque números enormes chamam muito mais a atenção. Mas o nome mais correto para este comportamento é “desinformação”.

E como são usados os automóveis que estão realmente ativos? Segundo a pesquisa origem-destino feita pelo metrô de São Paulo, eram feitas diariamente em 2007 9 milhões de viagens de pessoas usando automóveis. Atualmente, vamos considerar 10 milhões de viagens. Sabendo que cada carro transporta em média 1,4 pessoas, o número de deslocamentos dos veículos automóveis é de 7 milhões por dia (sendo que a maioria dos autos é usada para fazer mais de dois deslocamentos). Assumindo que na hora de pico ocorre 10% do fluxo diário, há 700 mil automóveis que saem às ruas, por exemplo, entre 18 e 19 horas (assumindo que veículos de fora de São Paulo que vêm para a cidade são compensados pelos veículos da cidade que vão para outros municípios). No entanto, a maioria das viagens em automóvel não usa o sistema viário principal onde estão os corredores de ônibus, pois são deslocamentos feitos dentro dos bairros  (60% das viagens deles são feitos em menos de 30 minutos ) ou em vias principais nas quais a quantidade de ônibus não é grande, como a avenidas Brasil, Sumaré, Pacaembú, Salim Farah Maluf, Ricardo Jafet, Bandeirantes e dezenas de outras. O tema causa reação por parte de usuários de automóvel e tem repercussão tão forte na imprensa provavelmente porque alguns corredores passam pela parte mais rica da cidade, como as vias 23 de Maio e Ruben Berta, afetando negativamente os moradores e usuários das redondezas.

Assim, a quantidade de viagens feitas em automóvel e que são afetadas pela ampliação dos corredores é pequena e muito menor que a quantidade de usuários de ônibus beneficiados pelas medidas – em uma avenida típica da cidade os usuários de ônibus superam os usuários de automóvel na proporção de 3 para um, valor que sobe no caso de grandes corredores. Portanto, como ocorre em uma democracia, o espaço público escasso tem de ser dado prioritariamente à maioria, considerando também os aspectos ambientais. Ou será que deveríamos re-fundar nossa democracia e passar a usar o critério de distribuir o espaço público das vias de acordo com a renda dos usuários?

A ilusão do espaço infinito

Sucessivos governos, políticos interessados nas obras e a  indústria automotiva venderam a ilusão do espaço viário infinito e a insustentabilidade foi sendo construída cuidadosa e persistentemente. O empilhamento de automóveis nas ruas de São Paulo decorreu de políticas de incentivo irrestrito ao transporte individual que vêm sendo aplicadas no nosso país desde a década de 1960. Em São Paulo no período entre 1965 e 1970 chegamos a gastar 27% do orçamento para a ampliação do sistema viário e desde lá vem sendo gastos valores imensos, tudo para chegarmos ao século XXI imersos em um enorme congestionamento de automóveis. Nem a sociedade mais rica da Terra – os Estados Unidos da América do Norte – conseguiu evitar que suas grandes cidades tenham enormes congestionamentos, mesmo tendo aplicado centenas de bilhões de dólares em avenidas especiais e vias expressas. Isto ocorre por causa de uma barreira insuperável tanto nos países em desenvolvimento como o Brasil, quanto nas sociedades ricas: o uso do veículo automóvel requer um espaço muito grande – 40 m2 para circular a 30 km/h em um ambiente urbano – sendo fisicamente impossível acomodar todos os automóveis de uma cidade em situação de alta fluidez. No caso de São Paulo, a presença simultânea de 600 a 700 mil automóveis nas ruas (20% da frota) já é suficiente para provocar um enorme congestionamento. Assim, o processo ocorrido em São Paulo merece, no mínimo, o adjetivo elegante de “insensato”, e teve como principais beneficiários as construtoras de vias, as pessoas e organizações políticas que participaram das obras e os usuários de automóvel, mesmo que em períodos limitados de tempo, até que um novo congestionamento se formasse.

O editorial ignora também aspectos básicos da engenharia de tráfego. A existência de espaços entre os ônibus que circulam em uma faixa não representa “desperdício”, sendo uma necessidade física e dinâmica para garantir a otimização do fluxo geral dos ônibus do corredor e para conseguir transportar, em alguns casos, até 25 mil passageiros por hora, em cada sentido. Sem isso, os ônibus se enfileirariam colados uns aos outros, circulando entre 6 a 8 km por hora, como hoje ocorre na cidade. Mesmo com os espaços existentes, a quantidade de pessoas dentro dos ônibus é muito maior que dentro dos automóveis que estão nas outras faixas – a maioria destes com uma pessoa só. Adicionalmente, ônibus que transportam apenas pessoas sentadas (25 a 30) levam a um consumo do espaço viário público que é dez vezes inferior, por pessoa, ao consumo feito no automóvel que transporta apenas uma pessoa; causa também uma emissão de gases de efeito estufa, por pessoa, seis vezes inferior à causada pelo uso do auto com um passageiro. Embora não sejam ocupações recomendáveis do ponto de vista técnico, ônibus com três passageiros usam menos espaço por pessoa transportada que os autos com uma pessoa e ônibus com seis passageiros são menos prejudiciais ao “efeito estufa” do que automóveis com um passageiro que estão circulando ao lado do ônibus no corredor.

O editorial faz um apelo para que o espaço dedicado aos ônibus seja obtido sem impactar o fluxo dos automóveis. Mas isto é impossível, pois dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço no mesmo instante. Além disto, procurar fazê-lo seria injusto e iníquo.  O amontoamento dos automóveis em São Paulo passou antes pela fase de ocupação de todo o espaço viário principal disponível, expulsando os ônibus ou confinando-os a faixas estreitas do lado direito da via, onde competem com automóveis estacionados (muitas vezes de forma ilegal), com automóveis entrando e saindo das construções, e com táxis que recolhem ou deixam passageiros. Tudo isto foi feito permanentemente na nossa história, com grande prejuízo para a maioria da população e tendo sido ignorado pelos principais meios de comunicação.

Portanto, a maioria das viagens em automóvel não é afetada pelos corredores e seus usuários vêm tendo, há décadas, um tratamento prioritário generalizado, garantido por investimentos gigantescos no sistema viário, por estacionamento gratuito nas vias representando um subsídio anual de R$ 3,5 bilhões, por fiscalização deficiente que historicamente captou apenas uma parte mínima das infrações cometidas e pela aplicação de técnicas de engenharia de tráfego de padrão internacional, com resultados surpreendentes se for considerado o grau elevado de congestionamento que foi historicamente produzido. Assim, os “milhões” de usuários de automóveis nunca tiveram seus interesses e necessidades negadas ou desprezadas, tendo sido os maiores beneficiados dentre os usuários do trânsito na cidade desde a década de 1960. A maioria dos usuários do transporte público, ao contrário, sempre teve suas necessidades ignoradas ou mal atendidas, sem falar de pedestres e ciclistas.

Para que o sistema de ônibus funcione adequadamente é necessário garantir espaço físico e boas condições operacionais, inclusive de ultrapassagem entre os ônibus no caso dos corredores mais carregados. Nada mais justo do que re-publicizar o espaço ocupado indevidamente pelo excesso de automóveis, dedicando-o à operação adequada dos ônibus. É fato que esta reorganização deve ser feita com critérios técnicos, dentro de um âmbito contratual distinto do atualmente existente – que aprisiona e limita o poder público – com transparência e com a disponibilização de formas de controle social e legal das operações. Precisamos organizar um sistema que tenha alta qualidade, seja abrangente no espaço e que tenha regularidade e previsibilidade, permitindo aos usuários de todas as regiões da cidade planejaram seus deslocamentos nos ônibus com confiança. Das medidas atuais se espera também que uma parte dos usuários de automóvel passe a usar ônibus. Com o uso de técnicas adequadas de engenharia de tráfego, os automobilistas que permanecerem em seus veículos nos corredores devem, como cidadãos, ter a atenção das autoridades de transporte e trânsito, desde que isto não implique em inversão das prioridades hoje definidas, nem em criação de privilégios indevidos no uso do espaço público das vias nos corredores ou em outros locais.

Eduardo Alcântara de Vasconcellos é engenheiro civil e sociólogo. Fez mestrado e doutorado em Ciência Política na Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Planejamento de Transporte nos Países em Desenvolvimento na Cornell University, Estados Unidos. É assessor técnico da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), onde preside a Comissão Técnica de Meio Ambiente; é assessor técnico do Banco de Desarrollo de América Latina (CAF). É diretor do Instituto Movimento, de São Paulo, dedicado a estudos de mobilidade.

Autor do livro “Políticas de transporte no Brasil: a construção da mobilidade excludente”, Editora Manole, lançado no 19º Congresso da ANTP, em Brasília (09 de outubro, 2013)