Por volta das 18h30, a presidente Dilma retirou-se da reunião. Tinha agendada, com Barack Obama, a conversa em que consolidaria a decisão de cancelar sua visita a Washington. No Palácio do Planalto, o encontro prosseguiu. Era 16 setembro, uma segunda-feira. De um lado, estavam representantes do Comitê Gestor da Internet (CGI) – o grupo instituído, em 1995, para que a sociedade civil participe da formulação de estratégias para o futuro da rede, no Brasil. De outro, a chefe do governo e sete ministros – da Justiça, Defesa, Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia, Casa Civil, Planejamento, e Comunicações. Até o momento de sair, Dilma participara intensamente do diálogo. Dele recolheu alguns dos elementos centrais para fala que fez na manhã desta terça-feira, ao abrir a Assembleia Geral da ONU, em Nova York. Assumiu, em contrapartida, um compromissos internos: brigar pela “neutralidade na rede”, o principal ponto polêmico do chamado Marco Civil – projeto de lei que estabelece direitos e liberdades para os usuários da internet. Revelou, porém, um temor: receber do Legislativo um texto que não contemple tal princípio.

O encontro se deu no contexto de uma posição mais firme do governo em relação à aprovação do Marco Civil da Internet. Integrante do CGI e participante da reunião, a advogada do IDEC, Veridiana Alimonti, explica: “diante das denúncias de espionagem norte-americana, o comitê buscou abrir diálogo com a presidente e se colocar à disposição. O interesse recíproco dela produziu a aproximação”. O movimento concretizou-se em dois atos. Em 11 de setembro, três dias após o jornalista Glenn Greenwald revelar espionagem da NSA contra a Petrobrás a presidente pediu formalmente ao Congresso urgência para votação do Projeto de Lei (PL) 2126/11, nome oficial do Marco Civil. Cinco dias mais tarde, chamou o CGI para o diálogo.

“A presidente mostrou-se preocupada”, relata Veridiana. Anunciou que condenaria a espionagem, e defenderia a liberdade de expressão e a privacidade na internet, em seu discurso na ONU. Mostrou-se interessada em discutir o sistema global de governança na rede. Pediu subsídios para sua fala em Nova York. Foi correspondida. Os membros do CGI sugeriram-lhe o exame do Decálogo de Princípios para a Internet no Brasil, que formularam em 2009. Basta ler o discurso feito pela presidente nesta terça-feira (ou o resumo preparado pela própria presidência da República) para constatar a enorme identidade entre as duas peças.

As polêmicas em torno do Marco Civil

Em outro momento do encontro, os integrantes do CGI relataram à presidente as resistências do Congresso diante de duas regras essenciais previstas no Marco Civil: neutralidade na rede e liberdade de expressão dos usuários. A primeira está expressa no artigo 9º do PL 2126/11. Segundo o texto original, construído num amplo processo de debates e audiências públicas, entre 2009 e 2010, os pacotes de dados que circulam pela internet devem trafegar de “forma isonômica”. As autoridades e empresas provedoras não podem, por exemplo, restringir a circulação de conteúdos que julguem politicamente inconvenientes. Nem, ao contrário, criar vias mais rápidas para o tráfego de material produzido por quem pode pagar pelo privilégio.

Em sua fala na ONU, Dilma assumiu posição alinhada aos princípios do CGI. Um dos pontos da “governança global da internet” proposta por ela é: “neutralidade da rede, ao respeitar apenas critérios técnicos e éticos, tornando inadmissível restrição por motivos políticos, comerciais, religiosos ou de qualquer outra natureza”. Esta posição contraria opiniões manifestadas, em múltiplas oportunidades, por representantes das empresas privadas de telecomunicação brasileiras (leia uma delas). Interessadas em mercantilizar tanto quanto possível a rede, as “teles” insistem em criar segregação por meio da venda de “serviços premium” – de preferência, em múltiplas categorias.

O segundo ponto que enfrenta obstáculos no Legislativo é a garantia plena de liberdade de expressão. No encontro de 16/9, membros do CGI revelaram à presidente o pomo da discórdia. O artigo 15 do Marco Civil estabelece um único caso em que os provedores de serviço à internet (como Google, Facebook, Youtube e hospedeiros de sites e blogs) são co-responsáveis pelos conteúdos publicados por seus usuários: quando descumprem ordem judicial de retirar conteúdos do ar. O Poder Judiciário, aliás, já tem abusado desta prerrogativa. Estudos internacionais demonstram que o Brasil é campeão mundial absoluto em censura a conteúdos por decisão de juízes.

Mas a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) – e a TV Globo, em especial – lutam para tornar a regra mais draconiana. Desejam que a própria decisão judicial seja dispensável, quando estiverem envolvidos direitos autorais. Neste caso, os provedores deveriam retirar os conteúdos considerados “infringentes” antes de decisão da Justiça, sob pena de serem co-responsáveis pela infração. Isso amedrontaria os provedores, convertendo-os em uma espécie de fiscais extra-judiciais de conteúdos. Veriana Alimondi conta que, durante o encontro com o CGI, Dilma ouviu as ponderações do comitê “com atenção” e se mostrou contrariada com a situação. Representantes do CGI defenderam que esse assunto não deveria ser objeto do Marco Civil, mas da revisão da Lei de Direitos Autorais, que será encaminhada em breve ao Congresso. Quanto a isso, vale notar: o primeiro princípio da governança global da internet proposta pela presidente na terça é: “liberdade de expressão, privacidade do indivíduo e respeito aos direitos humanos”

Nova mobilização pela liberdade na rede

Os primeiros frutos do diálogo de Dilma com os que lutam pela internet livre já começaram a surgir. O discurso da presidente na ONU teve repercussão internacional ampla e positiva, reconhecem os próprios jornais tradicionais brasileiros. Mas ela conseguirá garantir, em seu país, os princípios de liberdade na internet que pregou para o mundo? Com relação à neutralidade, o artigo 9º do Marco Civil é muito adequado, tanto no projeto original encaminhado ao Congresso em 2011, quanto na última versão apresentada pelo relator, deputado Alessandro Molon (PT-RJ). Mas e se os deputados e senadores o desfigurarem, na votação?

Um dos nós do problema é, também neste caso, o PMDB. Embora o partido integre a base do governo, setores peemedebistas tendme a se aliar com PSDB, DEM e outras agremiações à direita, sempre que o Palácio do Planalto ousa chocar-se contra interesses conservadores. Foi assim recentemente, quando inviabilizou-se a proposta de plebiscito sobre Reforma Política. Tem sido assim desde agosto de 2011, quando o PL 2126/11 foi enviado ao Congresso. Conhecido por suas vinculações com as teles, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) é um dos articuladores da resistência à neutralidade da rede.

Será possível vencer tal barreira? Os defensores da internet livre apostam na mobilização. Lembram de um precedente importante: em 2009, uma campanha-relâmpago da sociedade civil fulminou, em poucas semanas, projeto de lei apresentado pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e conhecido como “AI-5 digital”, por restringir de diversas maneiras a liberdade na rede. A partir dela, aliás, abriu-se o grande debate que culminou na construção do projeto de Marco Civil.

Agora, o movimento pela transformação do PL 2126/11 em lei prepara uma nova ofensiva. A formalização, pelo Palácio do Planalto, do pedido de urgência, apressou os tempos. A Câmara tem 45 dias, a contar de 11/9, para votar o texto. Em seguida, o Senado disporá do mesmo prazo para analisá-lo.

Plenárias de mobilização estão sendo convocadas em diversas cidades do país. A de São Paulo ocorrerá na próxima segunda-feira, 30/9 (veja imagem). A fala de Dilma na ONU servirá como impulso à campanha. Num mundo cada vez mais conectado, e cada vez mais angustiado pelas ameaças de vigilância e controle, o Brasil pode tornar-se referência internacional de respeito aos direitos humanos. Mas não será capaz de fazê-lo sem assegurar liberdade a seus cidadãos.

[Publicado no blog do site Outras Palavras em CartaCapital. Aqui você vê o site completo]