Se o voto do ministro Celso de Mello encerrar, nesta quarta-feira, o julgamento do chamado “mensalão” pelo Supremo Tribunal Federal (STF), milhões de brasileiros irão sentir-se aliviados e engrandecidos. Tendo acompanhado o episódio, durante oito anos, por meio dos jornais e da TV, eles acreditarão que surgiu, enfim, um caso em que o desvio de verbas públicas não ficará impune. Certas circunstâncias ampliarão seu júbilo. Entre os condenados, haverá “peixes graúdos”. Não será poupado o PT, partido no governo há dez anos. E, glória máxima, parte dos réus irá para a cadeia – o símbolo maior e mais humilhante dos sistemas punitivos modernos. Ficará aberto caminho, pensarão estes milhões, para moralizar a vida política e resgatar a República.

Será um erro trágico, por dois motivos. Do ponto de vista factual, surgiram, nos últimos meses, sinais concretos de que o chamado “mensalão” não envolveu desvio de recursos públicos. O ministro Joaquim Barbosa, relator do processo e hoje presidente do STF, ignorou estes sinais; teme que este erro primário torne-se claro; é, também por isso, um opositor ferrenho da reabertura do caso.

Mas o engano principal seria político. O encerramento do processo, no pé em que está, evitará que a sociedade debata a corrupção da vida política por meio do dinheiro oferecido pelas empresas aos partidos e a suas campanhas eleitorais. Este é, de longe, o principal mecanismo para submeter as decisões políticas ao poder econômico, e para promover o enriquecimento ilícito de ocupantes de cargos públicos. Está exposto, em detalhes, no episódio do “mensalão”. Encarcerar José Dirceu e seus colegas, e não examiná-lo, satisfará o ímpeto punitivo com que alguns julgam possível enfrentar a corrução. Mas varrerá para debaixo do tapete o motor que a impulsiona.

Gilmar Mendes e Pizzolato

A derrubada do mito segundo o qual o “mensalão” envolveu apropriação e desvio de recursos públicos é obra de um mestre: o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, que dirigiu, nos anos 1970 e 80 algumas das principais publicações da imprensa de resistência à ditadura1. Hoje, toca a revista Retrato do Brasil, Lá, ele e a repórter Lia Imanishi, escrevem, desde fevereiro de 2012, uma série de reportagens investigativas sobre o julgamento, pelo STF, da Ação Penal 470 (AP-470) – a que examina o “mensalão”. Seu trabalho estende-se por ao menos nove edições regulares da revista [1 2 3 4 5 6 7 8 9], um número especial e um livro. Os textos expõe em detalhes como dois Procuradores-Gerais da República e o diversos ministros do Supremo, a começar por Joaquim Barbosa, passaram por cima dos fatos e construíram, para o episódio, a versão que mais interessava à mídia, à opinião pública conservadora e… ao próprio sistema político.

Denunciado pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) em junho de 2005, o “mensalão” chegou à Procuradoria-Geral (PGR) e ao STF um mês depois. Alguns fatos muito graves eram conhecidos, mostram as reportagens. No início do governo Lula, a direção nacional do PT repassou, por orientação de seu tesoureiro, Delúbio Soares, e com apoio do publicitário Marcos Valério, cerca de R$ 55,3 milhões a políticos de cinco partidos: o próprio PT, PL, PP, PMDB e PTB. Os pagamentos foram feitos por meio do chamado “valerioduto” – um esquema que incluía os bancos Rural e BMG, mais a agência de publicidade de Valério e empresas de seus sócios. Além disso, desde agosto daquele ano Delúbio admitiu que cometera crimes eleitorais: arrecadação de fundos junto a empresas sem contabilização (“caixa 2”); distribuição de somas a correligionários e aliados, também “por fora”.

No entanto, mostra o Retrato do Brasil, os procuradores-gerais Antonio Fernando de Souza (que atuou no caso até o final de seu mandato, em junho de 2009) e seu sucessor, Roberto Gurgel, omitiram-se da investigação deste delito. Estavam empenhados em argumentar que a admissão do “caixa 2” era mera estratégia para ocultar outro crime. Os dirigentes PT, no governo federal, teriam abastecido o partido e as agremiações aliadas com recursos desviados do Estado.

Formular hipóteses é parte das atribuições do procurador-geral, responsável por comandar inquéritos. Mas nem Antonio Fernando de Souza, nem Roberto Gurgel preocuparam-se com os passos posteriores indispensáveis: investigar; demonstrar a suposição; reunir provas. Ao denunciar ao STF, em abril de 2006, quarenta pessoas envolvidas no episódio, o primeiro assegurou que houvera desvio de recursos públicos. À falta de provas, serviu-se de um atalho. Henrique Pizzolato, diretor de marketing do Banco do Brasil (BB) à época dos fatos, figurava ao mesmo tempo em duas pontas do inquérito. Ele havia recebido, por meio do valerioduto, R$ 326 mil. E, na condição de dirigente do BB, autorizara o pagamento de R$ 72,8 milhões à DNA, agência de publicidade de Marcos Valério. Isso bastou para que o procurador juntasse as pontas. A origem primeira do dinheiro repassado ao PT e aliados seria o Banco do Brasil. Pizzolato desviara os R$ 72,8 milhões da instituição que ajudava a dirigir; como recompensa, recebera suborno de R$ 326 mil.

A “demonstração” foi aceita e repetida acriticamente (e à exaustão), nos últimos sete anos – a começar pelo sucessor de Souza e pela maioria dos ministros do STF. Num de seus textos, Raimundo Pereira descreve, com humor, o discurso empolado que o ministro Gilmar Mendes proferiu na sessão do tribunal, transmitida ao vivo pela TV, em 29/8/12. Está no YouTube. Voz empostada, gestos teatrais, Mendes indigna-se: “O que fizeram com o Ban-co-do-Bra-sil?” E prossegue: “Em operações singelas, se tiram desta instituição 73 milhões, sabendo que não era para fazer serviço algum. […] Eu fico a imaginar […] como nós descemos na escala das de-gra-da-ções”. Três semanas antes, ao apresentar sua acusação, no plenário do Supremo, o procurar-geral Roberto Gurgel, assegurara: “Foi sem dúvida o mais atrevido e escandaloso caso de corrupção e desvio de dinheiro público realizado no Brasil”.

Em nenhum momento, Pizzolato admitiu as acusações que lhe foram feitas. Os R$ 326 mil recebidos via valerioduto, sustentou, foram para o PT. Todos os pagamentos do BB à DNA correspondiam a serviços efetivamente prestados pela agência. Conforme reza um princípio elementar do Direito, cabia aos que o acusavam provar sua culpa.

Poucos sabem, mas o princípio básico da presunção de inocência não foi respeitado, no julgamento da AP-470. O STF considerou que, sendo os réus pessoas “muito poderosas”, e tendo eles supostamente formado uma quadrilha para apagar as marcas de seus crimes, era possível condená-los com base em indícios consistentes. Pizzolato, por exemplo, foi condenado por unanimidade, em três das acusações que enfrentou e, por 11 votos contra um, numa quarta. Devido à ampla diferença de votos, não poderá beneficiar-se do direito a apresentar “embargos infringentes”, mesmo que o ministro Celso de Mello considere-os legítimos. Sua pena está fixada em 12 anos e 7 meses de prisão mais multa em torno de R$ 1,3 milhão.

A partir de outubro, no entanto, restou-lhe um alento moral. As reportagens de Retrato do Brasil refizeram a trilha de seus argumentos e comprovaram sua veracidade. O STF não permite a Pizzolato reivindicar sua presunção de inocência, mas Raimundo Pereira e Rute Imanishi estão conseguindo comprovar que ele não é culpado do que lhe atribui o Supremo. A partir dos próprios autos do processo, flagrantemente ignorados por dois procuradores-gerais e diversos ministros do Supremo, levantaram 99 notas fiscais que comprovam: os R$ 72,8 milhões pagos à DNA referem-se a promoções e eventos reais, que ocorreram às vistas de milhares ou milhões de brasileiros e têm documentação fiscal regular.

Se estivessem interessados em cumprir sua função constitucional, e não em condenar de antemão, os procuradores e ministros poderiam ter chegado às mesmas conclusões dos repórteres. Verificariam que os recursos pagos pelo BB à DNA não “tiraram da instituição 73 milhões, sabendo que não era para fazer serviço algum”. Custearam eventos patrocinados pelo cartão de crédito do banco (bandeira Visa), ou promoções para divulgá-lo. Entre elas, o Réveillon do Rio de Janeiro; o Círio de Nazaré, em Belém; o Festival de Inverno de Campos do Jordão; a exposição de cultura africana Projeto África, no Centro Cultural do banco no Rio de Janeiro; a publicidade do BB nos biquínis, sutiãs e bandanas das campeãs mundiais de vôlei de praia, Shelda e Adriana; dezenas de peças publicitárias veiculadas pela Rede Globo…

As descobertas de Raimundo e Rute, que desmentem os vereditos do STF, foram feitas em outubro do ano passado e têm sido apresentadas, desde então, com profundidade e detalhes cada vez maiores, nas sucessivas edições do Retrato do Brasil. Foram tema central de debates e atos de protesto contra a forma como se deu o julgamento do “Mensalão”. Até agora, não foram contestadas por nenhum ministro do Supremo, nenhum dos procuradores-gerais da República envolvidos no caso, nenhum dos jornais ou jornalistas que defendem a tese do “desvio de dinheiro público”. Todos usam, como defesa, o silêncio e a inércia.

Eleições e caixa 2

Ao desprezarem a investigação de crime eleitoral e optarem pela tentativa de caracterizar desvio de dinheiro público, ministros e procuradores fizeram uma opção política e de, digamos, marketing pessoal. Desvio atrai manchetes e holofotes, além de evocar cadeia. Afirmar que a AP-470 tratou do “mais atrevido caso de corrupção da História” reforça a tese, sempre repetida pelos jornais e TVs, de que o Brasil seria melhor se jamais tivesse sido governado pela esquerda. Em contraste, caixa dois de campanha parece coisa banal e corriqueira, algo que todos os partidos praticam, assunto desimportante. Será?

O economista Ladislau Dowbor, professor da PUC-SP e consultor de diversas agências da ONU, tem se empenhado em demonstrar o contrário. Numa série de artigos e entrevistas publicados nos últimos meses (inclusive em Outras Palavras), ele sustenta que o modelo empresarial de financiamento dos partidos e dos políticos, no Brasil, é a principal causa do esvaziamento da democracia, do sequestro da política pelo poder econômico e do enriquecimento ilícito dos governantes. Sem desmontar este modelo, diz Ladislau, combater a corrupção será sempre uma caça catártica – porém vã – a bodes expiatórios.

Nas “sociedades de espetáculo”, altamente midiatizadas, explica o professor, eleger um político tornou-se extremamente caro; e possuir recursos para bancar muitos mandatos assegura enorme poder político. Em 1997, o Congresso Nacional modificou a legislação eleitoral e autorizou as empresas a investir em partidos e políticos. Desde então, os gastos globais dos candidatos nas eleições dispararam. Segundo o TSE, saltaram de R$ 827 milhões, em 2002, para R$ 4,09 bilhões, em 2012 – um aumento de 591%, em apenas uma década – isso, sem contar o caixa dois. “Eleger um simples deputado, em qualquer Estado do país, não custa menos de R$ 2,5 milhões”, diz Ladislau.

Quem é capaz de mobilizar estes recursos? Uma pesquisa dos professores Wagner Praion Mancuso (USP) e Bruno Speck (Unicamp) revela que “os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010, corresponderam a 74,4% de todo dinheiro aplicado nas eleições”. Mais uma vez, sem contar os recursos transferidos “por fora”. Quais os efeitos deste vínculo entre poder econômico e mandatos?

Ladislau retorna: “Os interesses manifestam-se do lado das políticas que serão aprovadas – por exemplo, contratos de construção de viadutos e de pistas para mais carros, ainda que se saiba que as cidades estão ficando paralisadas. As empreiteiras e as montadoras agradecem. Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe aparece a preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a necessidade de pensar na reeleição. Quatro anos passam rápido. Entre representar interesses legítimos do povo – por exemplo, mais transporte coletivo, mais saúde preventiva – e assegurar a próxima eleição, ele […] sabe quem manda, está preso numa sinuca”.

As consequências deste controle são claras. Ladislau fornece um exemplo, entre inúmeros. “Existe uma bancada Friboi no Congresso, com 41 deputados federais e sete senadores. Dos 41 deputados financiados pela empresa, só um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as mudanças no Código Florestal. O próprio relator do Código, Paulo Piau, recebeu R$ 1,25 milhão de agropecuárias (…) Com o financiamento corporativo, temos bancadas ruralista, da grande mídia, das montadoras, dos grandes bancos, das empreiteiras, e temos de ficar à procura de uma bancada do cidadão”…

De que forma este fenômeno se desdobra também em lesão direta aos cofres públicos? “Uma dimensão importante deste círculo vicioso”, arremata Ladislau, “é o sobrefaturamento. Quanto mais se eleva o custo financeiro das campanhas, mais a pressão empresarial sobre os políticos se concentra em grandes empresas. Quando são poucas, e poderosas, e com muitos laços políticos, a tendência é a distribuição organizada dos contratos, que reduz as concorrências públicas a simulacros e permite elevar radicalmente o custo dos grandes contratos. Os lucros assim adquiridos permitirão financiar as campanhas da eleição seguinte”…

Jogando para a plateia

Nas eleições de 2012, o PT foi, segundo o TSE, o partido que mais recebeu financiamento privado para suas campanhas: R$ 255 milhões. As grandes empresas são pragmáticas: investem em quem é mais capaz de reunir votos, eleger-se e defender seus interesses: importa-lhes pouco a cor partidária. A entrada dos petistas no circuito das campanhas sustentadas por empresas é, porém, uma das explicações centrais para o retrocesso político do partido – reconhecido por algumas de suas lideranças, como o governador gaúcho Tarso Genro. Nas eleições para o Executivo, os choques são mais crus. Mas na atuação parlamentar, por exemplo, estão se dissolvendo as diferenças – antes nítidas – entre as bancadas petistas e as dos partidos conservadores.

Também por isso, a conduta dos procuradores-gerais e da maioria dos ministros do STF, no julgamento da AP-470, foi grotesco. Tendo em mãos um caso que poderia revelar alguns dos mecanismos centrais de corrupção da política – desde que investigado a fundo –, eles optaram pela busca fácil e preguiçosa de “culpados” individuais, por “jogar para a plateia”, por buscar sem descanso os holofotes. Ao fazê-lo, cometeram, como se viu, injustiças e erros primários.

Se o ministro Celso de Mello optar, nesta quarta-feira, por reconhecer o direito dos réus aos embargos infringentes, haverá alguma esperança de reparar o estrago. Tecnicamente, o espaço para corrigir as sentenças é exíguo. No plano do debate político, serão outros quinhentos. Reaberto o caso, é provável que as revelações factuais recentes feitas pelo trabalho jornalístico de Raimundo Pereira e Rute Imanishi ganhem novo destaque. E – muito mais importante – talvez surja uma brecha para argumentar que o resgate da democracia começa com uma vastíssima reforma política, não com um espetáculo ritual de encarceramento.


1Raimundo Pereira criou e editou Opinião (1971-1977) e Movimento (1975-1980), sobre o qual há um livro, disponível na Internet. Antes disso, dirigiu, entre outros trabalhos, a edição especial da revista Realidade sobre a Amazônia, considerada por  alguns como “a maior de todas as reportagens da imprensa brasileira”.

——————————————————————————————–

Este é blog do site Outras Palavras em CartaCapital. Aqui você vê o site completo.