Historicamente, o conceito democracia significou coisas bastante diversas, desde o antigo domínio grego dos senhores de escravos unidos até as modernas formas burguesas-capitalistas. O pleonasmo “democracia popular” do socialismo de Estado revela que aí sempre havia um problema com o domínio do povo. Como as formas de dominação política se relacionam, essencialmente, com as estruturas econômicas e as relações de classe existentes em cada época, mudando-se com elas, e mudando também o que se entende por democracia. As transformações econômicas e sociais ligadas à “globalização” neoliberal fazem com que a democracia capitalista liberal, tal como ela se formou nos séculos XVIII e XIX, adquira o caráter de um modelo em desuso. Tal como pensam alguns analistas de época, nós já nos encontramos no período da “pós-democracia”.

Entre o surgimento da sociedade capitalista-burguesa e a implantação da democracia representativa liberal existe uma estreita relação. Com a dissolução das dependências feudais e das estruturas estamentais, são implantadas as relações de mercado e de contrato que criam uma base material para as ideias gerais de liberdade, igualdade e autodeterminação. Ao mesmo tempo, com o Estado territorial moderno surgiram no plano espacial sociedades em alguma medida claramente delimitadas, contextos de reprodução econômica relativamente fechados e, com isso, finalmente, um povo politicamente definido, submetido a um poder central e dotado de certos direitos civis. Isso representou, junto com a existência de um governo dotado da capacidade de ação, portanto responsável e passível de controle, um pressuposto essencial para a moderna forma da democracia representativa liberal. O que, porém, teve que ser conquistado arduamente e permanecia estruturalmente limitado em sua abrangência pelas relações de produção e de propriedade capitalistas. Como a democracia liberal relaciona despotismo econômico com igualdade e liberdade políticas formais, ela está marcada por uma contradição fundamental que, enquanto contradição manifesta da luta de classes no plano institucional, gera uma dinâmica própria de lutas e conflitos sócio-políticos. A íntima relação entre o Estado nacional moderno e a democracia burguesa faz com que as relações democráticas até agora apenas pudessem ser constituídas no plano de Estados isolados. Por isso a democracia liberal nunca significou uma ampla autodeterminação do povo, mas limitou-se a certos direitos de co-participação de parcelas cada vez menores e mais privilegiadas da população mundial nos processos e decisões que lhes afetava. Nas condições da transformação neoliberal do capitalismo e do sistema de Estados, esta forma política é desafiada novamente. Bases fundamentais de instituições e processos democráticos são colocados em questão. Diante do fato de que a política está cada vez mais submetida ao ditado do imperativo econômico, conceitos como “autodeterminação democrática” ou “soberania popular” hoje de fato soam em alguma medida como antiquados.

No entanto, esses imperativos não são leis naturais, mas o resultado de estratégias políticas. O processo da chamada “globalização” é na essência um ataque às conquistas democráticas do século XIX e sobretudo do século XX. Entre elas estão extensão do direito de votos, o controle parlamentar do poder executivo e a implantação de algumas garantias sociais, sem as quais a democracia real, mesmo no limitado sentido liberal capitalista, dificilmente funcionaria. Ao lado do movimento operário em permanente fortalecimento, foi sobretudo a pressão da concorrência entre sistemas após a Revolução de Outubro que obrigaram os dominantes a fazer algumas concessões políticas e sociais. O capitalismo fordista, apoiado sobre esta correlação de forças, garantiu por um longo tempo a compatibilidade entre lucrativa produção de massas, consumo de massas e política social reformista. Esta fase chegava ao fim nos anos setenta do século XX. As relações sociais de força institucionalizadas no Estado de bem estar social fordista mostraram-se crescentemente como uma barreira para o lucro do capital. Seguiu-se a grande crise mundial dos anos setenta e, com ela, a grande contraofensiva neoliberal. A queda do campo do socialismo de Estado completou o seu êxito. O objetivo do projeto neoliberal, mais exatamente a criação de um sistema político-econômico livre de uma série de interferências democráticas, estava criado. O que, após 1989, foi comemorado como sendo o início de uma nova era democrática, revelou-se em muitos sentidos como sendo o contrário. Estabeleceu-se um sistema mundial de Constitucionalismo neoliberal, isto é, um entrelaçamento de instituições políticas internacionais, de regras e procedimentos que sobretudo serviam à garantia da propriedade privada, à liberdade de investimentos e à abertura de mercados, e que na prática retirou de cada Estado a possibilidade da influência política democrática. Aparentemente, teria sido rompida a ligação histórica entre o capitalismo e a democracia liberal com a sua implantação em escala global.

O capitalismo transformado em sentido neoliberal caracteriza-se por uma tendência massiva pela internacionalização do Estado e pela privatização da política. Com isso, a tradicional configuração do Estado nacional relativamente fechado foi eliminada e deslocou-se a relação entre Estado e sociedade. A política submeteu-se amplamente ao ditame da otimização da concorrência entre Estados por locais de investimentos, e deslocou-se fortemente para o plano das organizações e processos de negociação internacionais. Amplos processos de privatização e o aumento da independência das empresas multinacionais contribuíram para aumentar a influência de atores não estatais, entre os quais estão as chamadas organizações não-governamentais – ONGs –, também não controladas democraticamente. No lugar dos processos legislativos parlamentares, surgiram sistemas de negociação estatais-privados dificilmente transparentes e controláveis. A ciência política, que adora bagatelizar conceitos, designa isto como “Estado negociador “. Com isso, a aparelhagem democrática de cada Estado – partidos e parlamentos -, transforma-se em uma instância para confirmar decisões já tomadas, visando a sua implementação e a sua legitimação. Especialmente o deslocamento dos processos políticos decisórios no plano internacional tornou-se um meio de esvaziamento da democracia. Um exemplo disso é a União Europeia, que com o Tratado de Maastricht e seu Tratado Constitucional sanciona a ordem econômica capitalista liberal, e retira mecanismos do processo de formação da vontade democrática. Levando à crescente perda de importância das instituições democráticas. Não é o Estado, como se afirma frequentemente, mas sim a democracia liberal representativa que é minada. A consequência disso é uma tendência clara de autonomização autoritária dos aparelhos de Estado.

Paralelamente `a transformação neoliberal da economia e da sociedade aumentaram consideravelmente as desigualdades sociais, tanto no plano global como também no plano de cada Estado em particular. Isso impulsiona os movimentos migratórios e de refugiados, além da crescente redução do espaço de ação estatal voltada para a integração material social, levando a processos mais amplos de fragmentação e divisão sociais. Assim, o pertencimento a um “povo Nação “, ou seja, a posse de determinados direitos sociais e políticos, torna-se ainda mais precário e disputado. O que acaba colocando em questão dois pressupostos básicos essenciais da democracia liberal: um “povo“ relativamente igual em suas condições de vida e nos seus direitos, e um governo responsável e passível de controle.

Nesse processo, também o caráter do sistema político sofre modificações essenciais. A limitação politicamente imposta ao espaço de ação de cada Estado serve como pano de fundo de legitimação para uma política de imposição, para a qual aparentemente não existe nenhuma alternativa. A formulação política se reduz a adaptação às condições econômicas existentes. A transformação do Estado é acompanhada pela internacionalização do discurso da legitimação que declara as decisões tomadas nos processos econômicos globais, e pelos governos no contexto das organizações internacionais, como determinantes para o que acontece na esfera de cada Estado isoladamente. A responsabilidade política desaparece por meio dessa forma de “política de vários níveis” até a sua desfiguração. Simultaneamente, as alternativas para as condições dominantes são cada vez mais eficazmente ofuscadas. Implantou-se um “pensamento único” que declara o status quo das estruturas e tendências sociais dominantes como irremediáveis, deixando-se de perceber outras possibilidades de formulação política. Nessa penetração ideológica da sociedade em suas menores ramificações reside um êxito decisivo do projeto neoliberal.

Com a transformação do Estado modificou-se, especialmente e de forma considerável, a estrutura do sistema de partidos. O característico sistema fordista de “partidos populares”, que reivindicavam aglutinar amplos interesses sociais disseminados e influenciar a formulação dos processos políticos decisórios, é coisa do passado. Os partidos de instâncias de articulação e de intermediação de interesses sociais que eram tornaram-se aparelhos operativos midiáticos, cuja função prioritária é transmitir as decisões políticas para os atingidos por elas. A implementação da ideologia neoliberal e a transformação do sistema de partidos relacionam-se com uma mudança estrutural da esfera pública que está ligada com a difusão da indústria midiática privada e a adoção de novas técnicas de informação e comunicação. Cálculos econômicos definem os conteúdos a serem difundidos e as concepções de mundo e de sociedade que se tornam cada vez mais acessíveis. A transmissão da informação e a comunicação submetem-se à dinâmica de um controlado mercado monopolístico. A luta por índices de audiência com importantes técnicas de propaganda determina o comportamento da mídia, mesmo que ela tenha que manter um estatuto jurídico formalmente público. A informação política torna-se assim tendencialmente um “infotainment“ (“informação de entretenimento“). A propaganda política e a comercial se tornam semelhantes.

Diante do limitado espaço de ação para a integração material e da crescente fragmentação da sociedade torna-se mais difícil para os partidos apoiarem-se em grupos sociais e ambientes socioculturais específicos. Implanta-se um processo de “individualização“ que é impulsionado ainda mais pelos próprios partidos. Como consequência, se desfaz o eleitorado de clientela, se reduz o número de militantes, a lealdade político-partidária diminui e as orientações de voto tornam-se mais fluidas. O comportamento político dos partidos é marcado essencialmente pela busca de maximização de votos. A força de ataque e a capacidade concorrencial voltam-se sobretudo para a competência no domínio da técnica midiática e de propaganda. Elas se tornam, por assim dizer, parte integrante de um complexo industrial-cultural que por sua estrutura fortalece ideologicamente as condições existentes. Desse modo, a ativa participação da base partidária perde o sentido e, na medida em que ainda exista, adquire um caráter de fator de perturbação. Os aparelhos midiáticos consomem enormes somas de dinheiro, que geram uma crescente dependência do financiamento estatal e dos grandes doadores.  Já nos finais dos anos sessenta, Johannes Agnoli caracterizou o sistema fordista de “partidos populares” como sendo a manifestação de um “partido unitário virtual” que desconsiderava as questões fundamentais do ordenamento e do desenvolvimento da sociedade, reduzindo os antagonismos sociais e os conflitos pela dominação a querelas pessoais dos dirigentes, privilegiando não mais a escolha de questões de conteúdo, e sim a mera troca de pessoas. Este diagnósitco tornou-se realidade em grande medida. E, por sua vez, é uma das causas essenciais da dominância do consenso básico neoliberal-conservador no conjunto do espectro partidário.
A isso se liga a formação de uma “classe política “distante, ou seja, de uma categoria de políticos profissionais que para além das fronteiras partidárias se une pelo interesse na garantia da carreira, de posições e de privilégios. Por assim dizer, uma “nomenclatura da democracia realmente existente” (Tudyka). As carreiras partidárias são planejadas como caminhos de ascensão pessoal, um considerável número de cargos públicos está submetido à patronagem partidária e um “oportunismo de princípio“ (Luhmann) torna-se o pressuposto do sucesso individual. O conceito de classe tem aqui a sua plena justificação, correspondendo porém ao critério de igualdade das bases materiais e no “modo de vida“, no sentido de Max Weber. A unidade dessa classe se consolida com o fim das diferenças entre os partidos, e sua distância do eleitorado de clientela é fortalecida pela dependência financeira diante dos aparelhos. Isso por sua vez favorece a difusão de múltiplas formas de corrupção mais ou menos aberta. Quanto mais a flexibilidade de adaptação e a “liberdade de ideologias“ tornam-se um critério de sucesso, mais fácil fica para os políticos aceitar os chamados “imperativos“. Diante da dominância dos aparelhos burocráticos de decisão e dos opacos sistemas de negociação tanto no plano nacional como no plano internacional, a tarefa dos partidos consiste menos em fazer política, e mais em vendê-la. Nesse sentido, se realizou a mudança da “sociedade industrial“ para a “sociedade de serviços“. A exemplo do que acontece no mercado de mercadorias, os cidadãos são até declarados como consumidores soberanos, mas na prática isso pouco têm a dizer sobre a escolha de uma oferta controlada monopolisticamente. Esta se esgota em variantes da administração do status quo. Politicamente, o interesse da classe política é determinado por sua posição monopolística no acesso e na garantia de posições políticas contra formas não institucionais da salvaguarda de interesses, e, conforme o caso, também na disputa contra os novos concorrentes que apareçam. A democracia se limita a um modo formal de concorrência monopolista, mais afastada do que nunca da autodeterminação.

Como as decisões políticas essenciais não estão à disposição nas eleições, e como a política sob o ditame da “competitive austerity“ (“austeridade competitiva“) significa para a maior parte da população a imposição de maiores sacrifícios, ocorre uma mudança do modelo de integração e legitimação políticas. Em oposição aos “partidos populares” de integração de massas da era fordista, surge um sistema de aparelhos partidários midiáticos com um discurso de legitimação política populista que para além das posições de interesses materiais apela para semelhanças fictícias, revelando frequentemente traços nacionalistas e racistas. Particularmente nos centros capitalistas, isto se condensa em uma síndrome que poderia ser designada como um chauvinismo de bem-estar, isto é, a defesa, se necessária violenta, de privilégios relativos em um mundo cada vez mais desigual. Assim, as fronteiras para as ideologias de extrema-direita tornam-se fluidas. Apela-se para o fato de que os poucos privilegiados das ilhas de bem-estar capitalista ainda vivem melhor do que aqueles que vivem fora delas. Parte desse contexto é a permanente proclamação de uma ameaça de terrorismo não bem especificada, bem como estereótipos racistas reinterpretados culturalmente e a propagação de um conceito de direitos humanos que na prática é pensado em associação com os modos de vida das metrópoles e suas bases econômicas. As diretrizes socialmente determinantes não são mais a seguridade social garantida burocraticamente pelo Estado, a igualdade e o bem-estar material geral, mas a mobilização do conjunto dos recursos sociais disponíveis na luta como local de investimento. Para isso é preciso um Estado forte, que esteja em condições de pacificar os conflitos sociais se necessário com a violência, de neutralizar determinados interesses sociais e de atender certas reivindicações. A desigualdade é vista como um estimulante econômico que impulsiona os processos de adaptação estrutural objetivados socialmente.

Uma base essencial desse processo ideológico e político são as mudanças sócio-estruturais ligadas com a transformação pós-fordista. As fragmentações sociais, no uso da linguagem sociológica de bom grado caracterizada como “individualização“, ocasionaram a erosão dos ambientes sócio-culturais. O compromisso de classes da época fordista institucionalizado sob a forma de estruturas de parceria social a nível central é substituído por um corporativismo descentralizado e segmentado, tanto no plano das empresas, como  no plano setorial, vinculando a burocracia estatal, as empresas, parte dos trabalhadores e, às vezes, os sindicatos, na medida em que estejam dispostos a uma coadministração cooperativa. Não se trata mais de uma regulação ampla e social, mas, essencialmente, de uma política de atração de investimentos locais em plena concorrência internacional. A aparelhagem política, por meio da privatização dos riscos sociais, é preservada das reivindicações, e isso de forma ainda mais determinante, quanto mais acentuado é o comportamento concorrencial dos indivíduos e maior for a capacidade de imposição pessoal permanente, que torna-se uma ideia diretriz. Assim, os sindicatos se enfraquecem ainda mais. Quanto menos problemas e conflitos sociais se expressem e sejam elaborados no sistema político institucional, maior significado adquirem a concorrência, a agressão e a violência diárias. De certo modo, as ideias de emancipação e de bem-estar são privatizadas e limitadas ao horizonte das possibilidades e da percepção do mercado. Constrangido entre a pressão concorrencial econômica e as ameaças de dimensão global não mais passíveis de influência, ocorre um ““voltar-se para si“ dos sujeitos“ na chamada “sociedade da vivência“ (Schulze). O pão e o circo, preparados por um sistema de produção altamente tecnizado, substituem a participação política. Telefones celulares e jogos de computador parecem mais importantes para o desenvolvimento pessoal do que o voto. No lugar da formulação social coletiva entra o comportamento concorrencial privatizado. Isso ajuda a explicar a fraqueza da resistência contra as “reformas“ que implicam uma sistemática desmontagem do Estado de bem-estar social. A crença na eficácia dos instrumentos democráticos – por exemplo, eleições e manifestações – desaparece. O que fica é a apatia política ou a tentativa de desenvolver estratégias de sucesso pessoal.

Em geral, trata-se de uma ampla submissão da sociedade civil e do Estado à economia. O Estado aparece como uma agência de serviços dificilmente influenciável, e a oposição entre “Estado “e “sociedade civil “que foi fundamental para a democracia liberal é aplainada. Na teoria política tradicional, o conceito de sociedade civil se referia a uma área relativamente independente da auto-organização social. Hoje essa diferenciação parece estar desaparecendo, junto com a sua figura do “citoyen“(cidadão). Ligado a isso, há uma considerável mudança no caráter da subjetividade social. O empresário, ou a empresária, que se auto afirma, que se sente autônomo ou autônoma, como um sujeito que abre mão das garantias sociais, torna-se a figura central. O comportamento de mercado penetra em todas as áreas da vida, desde a família até as escolas e as universidades. O indivíduo como “empresário de si mesmo“ – não apenas na valorização de sua própria força de trabalho -, torna-se a figura central das relações sociais. 

Com isso, se desenvolve uma nova forma de “governo”, uma combinação de “coerção “e “consenso“ caracterizada por um deslocamento específico dos dispositivos de disciplinamento e controle sob as condições da subjetividade pós-fordista, ligada a novas estratégias ideológicas de legitimação. Em comparação com o fordismo, observa-se uma tendência para a passagem da “sociedade da disciplina” para uma “sociedade da autodisciplina e do controle”. O consenso e a coesão sociais não são mais gerados por meio da disciplina burocrática, a submissão, a moralização e a ameaça repressiva, mas através do apelo à auto-realização e da auto-formação de indivíduos “empreendedores” no quadro dos mecanismos dominantes do mercado e da concorrência. O discurso fordista do cidadão passivo e comandado é superado pelo discurso do indivíduo ativo, formador de si mesmo, “autônomo“, ou seja, que se auto-controla e se submete-se às relações dominantes por seu próprio interesse, visando o atendimento de suas necessidades imediatas. Um comportamento que se desvie disso, torna-se objeto de uma estratégia de controle, voltada cada vez mais fortemente para os espaços e os ambientes “perigosos“. Ocorre, assim, uma espécie de dessocialização da sociedade. E que é apoiada pelo desenvolvimento das tecnologias biológicas e genéticas e por sua aplicação propagandística, alicerçada em uma biologização e naturalização das relações sociais. A possibilidade de manipulação do corpo, da saúde, do sexo e da idade torna-se um tema socialmente dominante. É notável o avanço de metáforas biológicas, médicas e esportivas para descrever as relações sociais. A saúde é menos o resultado de condições sociais adequadas, e mais uma realização da indústria farmacêutica, dos serviços terapêuticos para colocar as pessoas em forma na sociedade concorrencial e, em certos casos, de uma bem sucedida manipulação genética – ou apenas do uso de peças de reposição biológica. As diferenças e desigualdades de gênero são naturalizadas, a desigualdade social é declarada como um dado natural. É disso que se alimenta também um discurso elitista, em oposição diametral com as ideias democráticas básicas. Valores como “igualdade“ ou “solidariedade“ tornam-se ultrapassados. O destino pessoal transforma-se em uma questão da capacidade de se impor e de um competente trato da respectiva tecnologia. A existência e o desenvolvimento das pessoas aparecem não tanto como produto das relações sociais, mas como naturais, e portanto como assunto de técnica dominável pelas ciências naturais.
A fragmentação social e a individualização, associadas com a privatização e a mobilização concorrencial, são acompanhadas de um aumento da imprevisibilidade do comportamento social. A privatização e a ativação da concorrência difundem insegurança e medo. O que novamente alimenta um discurso político legitimatório que constrói permanentemente ameaças externas, a serem combatidas pelo Estado. Parte integrante do modo neoliberal de governo é, portanto, uma ampliação do Estado de segurança e de vigilância, que diante de maiores possibilidades tecnológicas adquire novas dimensões qualitativas e cuja difusão não se depara na prática com quase nenhuma fronteira política e jurídica, desde que ele possa ser legitimado pela garantia do modo de vida existente. Se o Estado de segurança da época do fordismo ainda podia ser legitimado basicamente por uma “ameaça comunista“, em seu lugar aparece como construção do inimigo um campo complexo de riscos e ameaças, composto por terroristas, pelo crime organizado e por estrangeiros de todo tipo. Depois do fim do conflito leste-oeste, o discurso da segurança deslocou-se da oposição entre sistemas políticos para a “criminalidade“ no mais amplo sentido. Nisso, se entrelaçam do modo mais estreito agências estatais e privadas de controle e vigilância. Isso também é um aspecto da privatização da política. Porém não representa o fim do “monopólio da violência” estatal, e sim o aumento de sua ação, que justamente assim deixa de estar ainda menos submetido ao controle público.

Diante da clara erosão dos sistemas liberal-democráticos, fala-se mais recentemente e mais frequentemente de uma “crise de representação“, que se manifesta no desinteresse pela política, na abstinência eleitoral e na perda de confiança generalizada da classe política. Tomando como base princípios democráticos já realizados, na realidade observa-se um considerável déficit de representação. Porém, tomado em si, ele não pode ser estendido até uma crise do sistema político, e tem efeitos inteiramente ambivalentes. Esse fenômeno afeta em certo grau a rotina encenada da disputa partidária, torna as reações diante das decisões políticas imprevisíveis, e tem, sem dúvida, consequências prejudiciais para os políticos em geral. Mas, ao mesmo tempo, ele permite uma atenuação legitimatória das reivindicações sociais. Já que com eleitores desinteressados, ou melhor ainda, com uma participação eleitoral mínima, pode-se seguir governando, desde que predomine o ressentimento privado e as instituições permaneçam intactas. A perda de confiança também faz com que a responsabilidade política se torne superficial.

Nesse contexto, chegou-se a uma notável redefinição do conceito de democracia. Os cientistas políticos formularam a tese atual de que a qualidade democrática de um sistema político se mede não por seu “input“- ou seja, pela existência de direitos de participação e de decisão da população-, mas por seu “output“. O que se pensa com isso é que o resultado do processo político seja percebido como aceitável. O que de fato ocorre, e tanto mais facilmente, quanto menos existam alternativas na consciência geral. A democracia se torna um modo de mobilização para a guerra econômica permanente, um termo genérico para as condições de vida dominantes nas partes privilegiadas do mundo, que em caso de necessidade devem ser asseguradas pela via das intervenções militares. A síndrome do chauvinismo do bem-estar forma seu núcleo.

O resultado deste processo é uma espécie de totalitarismo brando. Ele provem não apenas dos aparelhos de Estado, como se encontra enraizado nas estruturas da própria “sociedade civil“. Ele faz lembrar a utopia negativa de George Orwells, quando conceitos centrais do discurso político convertem-se em seu contrário. Assim, por exemplo, “direitos humanos“ passa a significar lucro, “a garantia da paz“ a intervenção militar, “a liberdade“ a vigilância, “o crescimento“ a miséria,  e “a reforma“ a destruição. A advertência de Orwell lembra também a encenação de um permanente estado de guerra objetivando legitimar as relações de dominação existentes. Hannah Arendt já havia indicado que o perigo extraordinário do domínio total para o futuro da humanidade, consiste menos em ser tirânico e não tolerar a liberdade política, e mais na ameaça de eliminar qualquer forma de espontaneidade – isto é, o elemento de ação e de liberdade de todas as atividades. Na essência dessa terrível forma de tirania está a ambição de eliminar as possibilidades da política, confiando-se nos processos automáticos que nos circundam. De fato, “acontecimentos“ são produzidos permanentemente, mas apenas como encenação de um show político comercial que serve para retirar da discussão processos e relações relevantes. Por meio disso, surge um “totalitarismo do centro“ (Ziebura), que – com a “consciência feliz“ da sociedade unidimensional (Herbert Marcuse)-, se adequa às relações dominantes, que de certo modo parecem confortáveis. Já o desvio e a resistência aparecem como individuais e isolados, e o comportamento político dissonante adquire o caráter de dissidência política.

Os desenvolvimentos relacionados com a transformação dos Estados e do sistema de Estados são problemáticos não apenas do ponto de vista dos princípios democráticos. A socialização mercantil capitalista porta a tendência de destruir as suas próprias bases sociais e naturais. E é contrarestada sobretudo pela formação de forças opostas – movimentos sociais, como o movimento operário em particular (Polany 1990). Já Marx, em suas análises sobre a luta pela jornada de dez horas de trabalho, indicou a necessidade das lutas do movimento operário para que o capital não arruinasse a força social de trabalho como objeto de exploração. Com a transformação pós-fordista do Estado e da sociedade e a erosão da democracia liberal em cada Estado, as condições para isso se modificaram radicalmente. Caso se compreenda a democracia liberal, entre outras coisas, como um mecanismo de aprendizado social e de garantia da capacidade de reação social, isto é, como uma espécie de autoreflexão institucionalizada, a sua erosão ameaça então, a longo prazo, a existência da sociedade em geral.

Mas este desenvolvimento não ocorre sem contradições. O projeto neoliberal não saudou de modo algum as suas promessas. É questionável que as suas consequências sociais de longo prazo sejam aceitas como naturais e inevitáveis. A economia mundial revela instabilidades fundamentais que podem gerar quedas e crises a qualquer momento. Os danos causados à natureza e à sociedade pelo mercado sem barreiras são óbvios. Isso, e o fato de que a propaganda da liberdade e da autodeterminação são claramente desmentidas pelas estruturas econômicas e políticas dominantes, devem ter consequências políticas, que no momento ainda são imprevisíveis. A “contradição da constituição burguesa“, da qual Marx falou –ou seja, a incompatibilidade de princípio entre democracia e propriedade privada dos meios de produção -, não pode ser inteiramente equacionada. Como ensina a experiência, é preciso tempo para as mudanças, para se reconhecer as condições para o desenvolvimento de formas e conteúdos políticos novos. De todo modo, vai ficando claro que o “pensamento único” neoliberal revela fissuras. Disso pode surgir uma ação política. Já se desenvolveu um movimento internacional crítico da globalização, que é de fato heterogêneo e  mesmo difuso em suas orientações políticas, mas que representa um sério fator em crescimento no processo político tanto a nível nacional, como a nível internacional. Importantes parcelas desse movimento, tanto nas formas de organização, quanto nas ideias políticas, se diferenciam essencialmente dos tradicionais movimentos sociais, e colocam-se inteiramente a altura dos tempos. De seu desenvolvimento dependerá em muito os demais processos sociais e políticos.

Isto está em oposição com as ideias ainda amplamente difundidas em alguns meios sindicais e social-democratas, que se voltam para uma reconstituição do Estado fordista de bem-estar social. Pode-se presumir que tal tentativa deve fracassar diante das estruturas econômicas e sociais modificadas. Sem falar que ele próprio era um sistema de disciplinamento burocrático e de exclusão com uma qualidade democrática questionável. O que é necessário é o desenvolvimento de novas e autônomas formas de socialização, de acordo com as possibilidades econômicas e técnicas existentes. Além da redefinição do que significa a democracia em plano nacional e internacional. Ou seja, trata-se de redefinir o conceito de democracia e de concretizá-lo institucionalmente. Para o debate se encontram novas formas de autoorganização social, o desenvolvimento de uma esfera pública produtiva democrática que supere a relação capitalista entre o “privado“ e o “público“, uma “globalização de baixo“ tendo como objetivo a descentralização econômica e política, a implantação de estruturas de participação e de controle no plano internacional, que contraponham ao dominante constitucionalismo neoliberal um constitucionalismo democrático, e muitas outras coisas. Para isso é preciso esforço teórico e fantasia política no contexto de um movimento democrático em desenvolvimento. Face à factual internacionalização do Estado e da economia, os processos democratizantes se condicionam reciprocamente na esfera regional, nacional e internacional de forma tão estreita como nunca antes.

Joachim Hirsch é cientista político alemão e autor de Teoria materialista do Estado, Editora Revan. Publicado inicialmente em www.links-netz.de. Tradução do original alemão por Luciano C. Martorano para o portal Grabois.