Circulou recentemente nas redes sociais um texto tipicamente purista e conservador, que reacendeu a falsa polêmica gramatical em torno do uso do substantivo feminino presidenta. A polêmica é falsa porque, sob o disfarce da gramática, o que está realmente em jogo é a reação de determinados setores da sociedade, do lado conservador do espectro ideológico, à ascensão ao cargo máximo do poder de uma mulher e, não só, de uma mulher vinculada a um projeto político que se identifica com as forças convencionalmente chamadas de esquerda. Muitos analistas políticos já disseram, em tom de ironia, que o Brasil é o único país do mundo em que as forças conservadoras da sociedade, a começar pelos grandes conglomerados de comunicação de massa, querem derrubar um ex-presidente… De fato, todas as manifestações de ataque conservador ao governo da presidenta Dilma Rousseff têm representado, ao fim e ao cabo, uma evidente tentativa de combater a inabalável popularidade do ex-presidente Lula e de criar alguma barreira a uma possível nova candidatura dele à presidência.

No entanto, vamos deixar de lado o que é estritamente político-partidário e nos concentrar no que é político-linguístico. Por que não digo apenas linguístico? Porque não existe língua fora de sociedade, e todas as relações sociais são relações inevitavelmente políticas — fazemos política o tempo todo, até mesmo (e talvez sobretudo) dentro de casa, nas nossas relações com @ espos@, com @s filh@s, com @s empregad@s e até mesmo com noss@s cachorr@s e gat@s. Sim, eu uso o símbolo @ para denunciar a falsa neutralidade do gênero gramatical masculino como forma “não marcada” — e isso é política linguística.

As pessoas que se valem do discurso do “amor à língua portuguesa” e da “defesa da língua” sempre fazem isso recorrendo a argumentos de autoridades como os “grandes escritores” (os chamados “clássicos da língua”) e, principalmente, os gramáticos e dicionaristas, tradicionalmente considerados como os maiores conhecedores da língua e, além disso, detentores de um poder (de origem jamais explicada) de delimitação do que “existe” e do que “não existe” no idioma, do que é “certo” e do que é “errado”. No entanto, quando se trata de impor seu próprio ponto de vista conservador, ess@s supost@s defensor@s da língua se colocam até mesmo acima e além dessas autoridades, atribuindo a si mesm@s ou a alguma entidade mítica, como “a índole do idioma” ou coisa assim, o poder de decisão sobre os destinos da língua.

Um exemplo muito eloquente dessa postura se encontra no Manual de redação e estilo do jornal O Estado de S. Paulo:


De a, de o, de ele, de aquele. Não se faz a contração da preposição com o artigo quando este é parte do sujeito, nem da preposição com o pronome se ele funciona como sujeito ou o determina. Assim, eis os exemplos corretos: Apesar de o (e não do) presidente ter dito a verdade, ninguém acreditou nele. / Depois de a (e não da) equipe ter sido escalada, ele pediu para jogar. / O fato de o consumidor ver-se obrigado a pagar mais… / Apesar de aqueles (e não daqueles) criminosos terem sido capturados… / […] Observação. Há gramáticos que aceitam essa contração; o Estado, porém, segue a norma da língua.

http://www.estadao.com.br/manualredacao/esclareca/d.shtm

O redator desse Manual, o falecido jornalista Eduardo Martins, se refere a uma nebulosa “norma da língua” (com artigo definido singular, “a norma da língua”, como se só existisse uma) como sustentadora de sua postura hiperprescritiva (observe o autoritarismo do discurso: “eis os exemplos corretos”) Ora, vamos contrastar agora essa prescrição com a argumentação de um gramático profissional, de postura político-ideológica e linguística notoriamente conservadora (grifo meu):

Está na hora da onça beber água,
construção normal que não tem repugnado os ouvidos dos que melhor conhecem e escrevem a língua portuguesa. Alguns gramáticos viram aí, entretanto, um solecismo, pelo fato de se reger de preposição um sujeito. Na realidade, não se trata de regência preposicional do sujeito, mas do contato de dois vocábulos que, por hábito e por eufonia, costumam vir incorporados na pronúncia. A lição dos bons autores nos manda aceitar ambas as construções, de a onça beber água e da onça beber água.

BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37a ed., Rio de Janeiro, Lucerna, 1999, p. 567-8.

Na exemplificação oferecida por Bechara figura ninguém menos do que Rui Barbosa, o mais renitente defensor, em sua época, de um português “castiço” e fantasma sempre invocado pelos que tentam preservar a ferro e fogo um estilo de escrita rebuscado e empolado (como se isso fosse sinônimo de escrever bem). Pois o sacrossanto Rui escreveu: “se, por exemplo, me concederem um monopólio do plantar couves, apesar das couves serem uma das espécies de legumes”.

No caso de presidenta, os que erguem a bandeira do “amor à língua” se esquecem (por decisão ideológica, consciente ou inconsciente, mas ideológica) de fazer uma consulta elementar, por exemplo, aos dicionários mais respeitados da língua portuguesa. Se assim fizessem, encontrariam o seguinte:

presidenta. s. f. || (fam.) mulher que preside; esposa de um presidente. F. Presidente.

 

CALDAS AULETE, F. J. Dicionário contemporâneo da língua portuguêsa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1881.

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presidenta. [Fem. de presidente.] S. f. 1. Mulher que preside. 2. Mulher de um presidente.

FERREIRA, Aurélio B. H. Novo dicionário da língua portuguêsa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

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presidenta
substantivo feminino (1872)
1 mulher que exerce o cargo de presidente de uma instituição
    ‹ a p. da Academia de Letras ›
1.1 pol mulher que se elege para a presidência de um país
    ‹ a excelentíssima senhora p. do Brasil ›
2 mulher que preside (sessão, assembleia, reunião etc.)
    ‹ a p. da sessão do Congresso ›
3 p.us. a mulher de um presidente
Gramática e Uso: Mário Barreto foi contra o emprego da palavra presidenta nesta acp. 3 (Novos estudos)

HOUAISS, A. Dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001.

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Fiz questão de citar três dicionários famosos, publicados em três séculos diferentes, e em suas primeiras edições: o Caldas Aulete, do século XIX; o Aurélio, do século XX; e o Houaiss, do século XXI. Como se verifica facilmente, o termo presidenta vem sendo incluído pelos dicionaristas em suas obras lexicográficas há mais de 130 anos.

O verbete mais completo, o do Houaiss, traz entre parênteses o ano de 1872, que é a data da primeira ocorrência escrita da palavra. Ou seja, a palavra presidenta não representa absolutamente nenhuma novidade na língua, nem tampouco é uma idiossincrasia da presidenta Dilma Rousseff — a verdadeira novidade é, isso sim, e não me canso de repetir, uma mulher na Presidência da República.

Ainda sobre o Houaiss, o mais curioso é que, publicado em 2001, ele dá como exemplo de uso precisamente “a excelentíssima senhora presidenta do Brasil”, quando nem Lula tinha sido eleito e quando, sobretudo, nem imaginávamos que, dez anos depois, esse exemplo fictício do dicionário se aplicaria a um episódio real da nossa história.

Mas vale sempre a advertência: o recurso aos dicionários não autoriza nem desautoriza ninguém a dizer ou a não dizer o que quer que seja. Não é o dicionário que faz a língua: não é um simples livro, feito por seres humanos como outros quaisquer, falíveis portanto, que tem a última palavra sobre a língua. Qualquer dicionário, no minuto seguinte à sua publicação, já está ultrapassado: a língua não para, novos termos surgem a cada instante, outros tantos desaparecem do uso, novas acepções são atribuídas a palavras antigas, e assim vai, e vai longe. A língua não para porque a língua não existe: o que existe são seres humanos que falam línguas, seres humanos que, em sociedade, em inter-relações político-culturais-ideológicas-econômicas, falam línguas.

Defender o uso de presidenta é algo que podemos fazer sem recorrer a nenhum dicionário, mas simplesmente adotando uma postura político-ideológica progressista, que reconhece que a gramática existe para servir aos falantes da língua, e não ao contrário. Não somos escravos da gramática: ela é que depende de nós para existir.

Há 140 anos nenhum dicionário registrava doutora, engenheira, arquiteta, advogada, juíza, desembargadora, aviadora, pesquisadora, bispa, prefeita, vereadora, deputada, senadora, govenadora, ministra… simplesmente porque as mulheres, em sua condição multimilenarmente subjugada aos homens, não tinham acesso a nenhuma dessas profissões, a nenhum desses cargos políticos. O voto feminino no Brasil só foi regulamentado sob a ditadura de Getúlio Vargas, em 1932!

Ninguém precisa apoiar o governo de Dilma Rousseff para defender o uso da palavra presidenta. Esse uso representa, simplesmente, e independentemente de partidos políticos, uma conquista das mulheres brasileiras. Conquista que pode, deve e tem que ser registrada, também, nos dicionários e nas gramáticas.

Publicado em http://e-proinfo.mec.gov.br/eproinfo/blog/preconceito/

Marcos Araújo Bagno é doutor em filologia do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília. Em 2012 sua obra As memórias de Eugênia recebeu o Prêmio Jabuti.