A fome sempre existiu. A consciência de que ela se tornou intolerável, e descabida, é o que redefine a sua circunstância no mundo. E o entendimento que sua causa principal hoje é o acesso, e não a insuficiência, muda a ferramentaria do mundo na ação contra ela.

A fome de 870 milhões de seres humanos, num planeta que tem poder para alimentar pelo menos o dobro da população atual, desautoriza a suficiência apenas da lógica econômica para equacioná-la.

Fomentar a produtividade, sobretudo da agricultura familiar responsável pelos alimentos consumidos pela maioria das populações dos países em desenvolvimento, é importante. Mas, definitivamente, o nome do jogo não é mais produtivismo.

Tal compreensão marca um divisor na história do desenvolvimento e uma ruptura na consciência da humanidade.

O problema dramático do século XXI é garantir a distribuição da riqueza para salvaguardar a vida e o planeta de desequilíbrios ainda maiores. O que a persistência da fome diz é que nenhum automatismo econômico fará isso por nós.

O idioma que melhor expressa os grandes desafios sociais do nosso tempo é a língua universal da democracia, dos direitos humanos e da justiça social. Juntos, eles formam a ética que deve alimentar os valores da convivência compartilhada.

Não se trata de um ingrediente opcional do desenvolvimento. Mas de um tutor indispensável. Sem ele, o comboio produtivo derrapa no paradoxo da riqueza que não reparte.

A economia é capaz de lançar a pedra do futuro o mais longe possível. Cumpre à ética cuidar de sua trajetória: a fome é a expressão mais alarmante de uma trajetória que precisa ser retificada. Mais perigoso, ainda, é o conformismo que a considera um mal necessário no caminho do progresso.

“É um escândalo”, advertiu o papa Francisco, em junho, dirigindo-se aos participantes da 38ª Conferência da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). “É do conhecimento público que a produção atual é suficiente; todavia, milhões sofrem e morrem de fome”, disse o Sumo Pontífice recusando-se a endossar o cortejo da fatalidade.

A grave assertiva da Igreja argui os que terceirizam ao fim da crise mundial a tarefa de resgatar náufragos que já soçobravam no mar muito antes dela.

Uma família pobre não pode jejuar até que amadureçam as reformas que o século XXI deve promover na estrutura do comércio, na regulação do sistema financeiro, no financiamento do desenvolvimento e nos fluxos da riqueza.

Não estamos lidando com estatísticas e livros-texto de iniciação à economia. Homens, mulheres e crianças abandonados à própria sorte, em situação precária, defrontam-se com adversidades econômicas, étnicas, bélicas e climáticas que aprofundam privações seculares decorrentes da insegurança alimentar.

Por mais paradoxal que seja, o fundo do poço de uma crise guarda pontos de contato com a borda inicial.

Transições que mexem abruptamente com massas gigantescas de recursos adicionam ondas de volatilidade à vida das nações.

Quem se espreme no ponto mais frágil da embarcação pode sofrer um revés adicional.

A reversão do sinal da crise nos EUA, embora incipiente, já reordena fluxos e preços, de capitais e mercadorias, em todo o planeta.

Clarões faíscam na linha do horizonte: encarecimento do crédito e do investimento; queda nas cotações das commodities; tensão nos índices de inflação e nos balanços de pagamentos. Para quem depende de financiamento externo e se notabiliza pelo elevado coeficiente de exportações de matérias-primas, o futuro pode desembocar num gráfico em cruz: receitas menores, custos maiores.

Cerca de 70% das exportações da América do Sul são de produtos primários. Na média, eles se encontram hoje no ponto mais baixo da curva de preços internacionais, desde meados de 2012. A desaceleração do crescimento chinês acrescenta sombras de retração de demanda às cores desse cenário.

As mudanças na conjuntura mundial incidem sobre uma travessia delicada da luta contra a fome. A sorte de 870 milhões de pessoas depende do que vai acontecer a partir de agora, na repactuação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para o período pós-2015.

Há uma crescente convicção de que o compromisso das nações não pode ser outro, exceto a erradicação da fome.

Pela primeira vez na história, a humanidade pode afirmar que a pobreza não é destino e a fome não é fatalidade. Erradicá-la pode ordenar o futuro mais justo que queremos, alavancando o desenvolvimento. E é também uma obrigação ética, um consenso em defesa da dignidade humana, capaz de unir povos e nações, independente da cor da pele, do matiz ideológico ou de religião.

O papa Francisco, que se encontra no Brasil para a Jornada Mundial da Juventude, assim sintetizou o desafio da hora ao falar à Conferência da FAO: “A situação que estamos vivendo, ainda que diretamente relacionada a fatores financeiros e econômicos, é também consequência de uma crise de convicções e valores, incluídos aqueles que fundamentam a vida internacional. Não podemos sonhar com planos assépticos. Hoje eles não servem”, disse o Sumo Pontífice.

A pertinência do apelo consiste em não aceitar que o econômico se separe do humano. Trata-se de reafirmar a precedência de escolhas e valores sobre a reiteração da lógica que gerou a crise mais grave desde 1929.

“Por causa da crise as pessoas morrem de fome, mas nós nos ocupamos com os bancos”, desabafou o papa Francisco. Após cinco anos de crise, caberia completar: os bancos foram salvos pela engrenagem econômica. Mas falta salvar quem tem fome.

José Graziano da Silva é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO)

Publicado em Valor Econômico – 25/07/2013