ÍNTEGRA DO DISCURSO DO SENADOR INÁCIO ARRUDA

No final de 1819, desembarcou em Santos um brasileiro que há 37 anos estava na Europa. Ele tinha uma formação renascentista, abarcando muitas áreas do conhecimento e entendia de política. Conheceu a Europa inteira, esteve na Revolução Francesa, em 1789, falou com seus dirigentes. Era membro de várias organizações científicas de vários países. Aqui chegando, ao contrário do preconceito que muitos brasileiros até hoje têm do próprio Brasil, esse cosmopolita, aos 56 anos, dançou o lundu! Isso mesmo: dançou um gênero musical lascivo, criado a partir dos batuques dos escravos bantos trazidos de Angola e de ritmos portugueses. E ali estava José Bonifácio, o futuro Patriarca da Independência, reafirmando sua brasilidade na umbigada, rebolado e outros gestos sensuais. Dançava magistralmente o que é considerado por muitos o primeiro ritmo afro-brasileiro!
José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu na vila de Santos, São Paulo, em 13 de junho de 1763, descendente de condes e marqueses portugueses. Tinha cinco irmãos e quatro irmãs. Foi alfabetizado em casa e cursou lógica, metafísica, retórica e francês em São Paulo. Também estudou literatura, linguística, grego e latim. Em 1783 graduou-se em Direito Civil e em Ciências Naturais na Universidade de Coimbra, Portugal. Casou-se, em 1790, com Narcisa Emília Oleary, de origem irlandesa.
Em 1790, viajou como naturalista e mineralogista pela Europa, a serviço da Academia Real das Ciências. Esteve na França, Escandinávia, Alemanha, Suécia, Noruega, Boêmia, Hungria e Itália. Criou a cadeira de Mineralogia, na Universidade de Coimbra, onde foi professor de geognosia (estudo da parte sólida da Terra) e metalurgia. Em 1807, ingressou no Corpo Voluntário Acadêmico para enfrentar as tropas de Napoleão Bonaparte, que haviam invadido Portugal. Foi major e tenente-coronel comandante do batalhão acadêmico. Expulsos os franceses, foi nomeado intendente da polícia do Porto.
Presidiu a Academia de Ciências de Lisboa por sete anos, foi intendente das Minas e Metais do Reino, intendente das Minas e superintendente das Matas e Sementeiras, administrador das minas de carvão de pedra de Buarcos, administrador das fundições de ferro de Figueiró dos Vinhos e Avellar, diretor do Real Laboratório da Casa da Moeda de Lisboa, onde também ministrou um curso de Docimásia (ciência que determina a proporção dos metais contidos nos minérios). Dirigiu a sementeira de pinhais nos areais das costas marítimas, foi desembargador ordinário efetivo da Relação e Casa do Porto, superintendente do rio Mondego e das Obras Públicas de Coimbra, diretor hidráulico das obras de encanamento do rio Mondego e provedor da Finta de Maralhões.
De volta à terra natal, em 1819, instalou-se em Santos, no seu sítio Outeirinhos, e continuou o estudo de minerais. Em 1821, tornou-se vice-presidente da Junta Governativa de São Paulo. Em janeiro do ano seguinte, foi o primeiro brasileiro a ocupar um ministério, o do Reino. Elaborou a criação de uma Universidade Parcial de Ciências Naturais, de uma Sociedade Econômica da Província de São Paulo, destinada a promover a indústria popular, e de uma Academia de Agricultura. Ocupava a Pasta do Império no Primeiro Reinado, em 1823, quando se demitiu dos Conselhos da Coroa, com seu irmão Martim Francisco, e opôs-se a D. Pedro I. No mesmo ano, foi eleito para a Assembleia Constituinte, preso e deportado para a Europa por ordem do imperador.
Ficou exilado por seis anos na França. Quando retornou, em 1829, trouxe suas três filhas e sua esposa, que morreu no navio, durante a viagem. Residiu na Ilha de Paquetá, de onde saiu para assumir a cadeira de deputado pela Bahia, como suplente, de 1831 a 1832. Reaproximou-se do Imperador que, ao abdicar à Coroa, em 1831, o indicou para tutor de seus filhos, inclusive o futuro Dom Pedro II, então com 5 anos. Em setembro de 1833 a Regência o destituiu da tutoria e ordenou sua prisão domiciliar, que durou até 1835, quando foi absolvido, por unanimidade, da acusação de conspiração e perturbação da ordem pública. Mudou-se para Niterói, Rio de Janeiro, onde faleceu em 6 de março de 1838.
Cientista e precursor da ecologia
Na Europa, José Bonifácio estudou Direito, Filosofia Natural, Botânica, Matemática, Mineralogia, Montanhística, Química aplicada, Metalurgia e Legislação das Minas. Na Suíça, descobriu doze novas espécies e variedades de minerais. Escreveu dois artigos, em 1815 e 1819, onde a palavra tecnologia foi usada, pela primeira vez, na língua portuguesa.
No livro Memória sobre a pesca das baleias e extração do seu azeite, com algumas reflexões a respeito das nossas pescarias, de 1790, menciona a pesca predatória de baleias no litoral brasileiro, com ênfase na necessidade de se conter a matança das fêmeas e seus filhotes, destacando a importância de futura descendência. Discorre sobre a pesca brasileira em geral e os principais erros cometidos nas pescarias, que resultavam em danos irreversíveis à economia.
No livro Memória sobre a necessidade e utilidades do plantio de novos bosques em Portugal, de 1812, defendeu que fossem reflorestados os cumes e ladeiras improdutivas e as áreas áridas nos terrenos marinhos que não serviam para a lavoura. Assim, haveria “o reaparecimento da caça, a abundância dos estrumes naturais oferecidos pelas folhas e resíduos, a umidade necessária para a vida das plantas e dos animais, a purificação da atmosfera respirável pela absorção dos miasmas dos charcos, a amenidade da temperatura na estação cálida”. Considerando que “sem as matas não há umidade, sem umidade não há chuvas nem orvalhos”, alertava que “sem chuvas e sem orvalhos não há fontes, sem fontes não há rios e sem rios não há navegação, perecendo o comércio, a lavoura e a indústria…”  Temos aqui um precursor da ecologia, palavra que só foi dicionarizada em 1928. Na verdade, um ecologista completo, que já naquele tempo associava a preservação da natureza ao progresso humano e o progresso humano ao uso racional dos recursos naturais.
Foi membro da Academia Real das Ciências de Copenhague, Dinamarca; da Sociedade Filomática (que ama as ciências) e da Sociedade de História Natural de Paris e do Instituto de França; da Sociedade dos Investigadores da Natureza de Berlim e da Sociedade Mineralógica de Iena, Alemanha; da Academia Real de Ciências de Estocolmo, Suécia; da Sociedade Werneriana de Edimburgo, Escócia, da Sociedade Lenneana de Londres, da Sociedade de Ciências Físicas e História Natural de Gênova e da Academia Real de Ciências de Turim, Itália; da Sociedade de Ciências Filosóficas de Filadélfia, Estados Unidos, além das entidades portuguesas de ciências antes citadas.
O poeta Américo Elísio
José Bonifácio era leitor de Aristóteles, Sêneca, Plutarco, Virgílio, Montesquieu, Voltaire, Byron, Camões, padre Vieira, dentre outros clássicos. Aos 61 anos, no exílio com sua família, na França, retomou “a mania antiga de poeta”, como escreveu a amigos. Adotou o pseudônimo arcádico pastoril e patriótico de Américo Elísio (território das musas, transplantado para a América) e publicou Poesias Avulsas, em 1825. Assumiu posições estéticas avançadas, como sua justificativa para o uso de versos brancos, sem rima: “a nossa bela língua não precisa, absolutamente falando, do zum zum dos consoantes para fixar atenção e deleitar o ouvido”. Defendeu que os poetas “evitarão, quando puder ser, a espropositada variedade que se opõe à simplicidade e ordem poética, que em vez de subministrar o proporcionado alimento à curiosidade, mãe do gosto, mata-a com imaginações e vem a não conseguir seu devido fim”. Considera que “o escritor honrado … deve … atacar o crime e ridiculizar o vício, para instruir e enobrecer a humanidade; e, quando o inspira Apolo, deve então com a musa amimar a virtude e deleitar o coração”.
O livro traz sua “Ode aos baianos”, onde agradece à Província da Bahia, que o elegeu deputado por duas vezes para a Assembleia Geral, desafiando a decisão do Império de dissolver a Constituinte. Temia morrer no exílio, e escreveu:
Amei a liberdade, e a independência
Da doce cara pátria, a quem o luso
Oprimia sem dó, com riso e mofa –
Eis o meu crime todo.

Doces visões! Fugi – ferinas almas
Querem que em França um desterrado morra:
Já vejo o gênio da certeira morte
Ir afiando a foice.

Que o Brasil inclemente (ingrato ou fraco)
Às minhas cinzas um buraco nega:
Talvez tempo virá que inda pranteie
Por mim com dor pungente.

Estadista, fundador da Nação
Recordamos José Bonifácio, nestes 250 anos de seu nascimento, para melhor enfrentarmos as tarefas e desafios atuais, levando em conta suas indicações de estrategista, de estadista, de chanceler preocupado com a unidade nacional e a defesa de nossas fronteiras, de brasileiro que pleiteava que nosso país ocupasse uma posição estratégica na América Latina e no mundo.
No início do século XIX, o Brasil tinha menos do que quatro milhões de habitantes, dos quais um milhão eram escravos. Não tínhamos escolas, muito menos universidades; não tínhamos um prelo ou um jornal. Foi nesse ambiente que José Bonifácio desenvolveu sua variada atividade, quando retornou da Europa, em 1819. Os brasileiros progressistas queriam livrar-se do domínio colonial. Numa época que exigia gigantes, José Bonifácio, pelos pensamentos que defendia, pelo caráter e paixão com que se entregou à luta pela Independência e construção da nação, pela sua universalidade e erudição, foi um deles. Era homem de teoria e de prática, de pensamento e ação.
Em 1820, obteve de D. João VI o título de Conselheiro e, depois, foi nomeado presidente da Junta Provisória de São Paulo, elaborou recomendações para os delegados que iam representar o Brasil nas Cortes de Lisboa, inclusive sete pontos que constituíam a reforma agrária que pretendia para o país, inclusive que as terras dadas por sesmarias que não eram cultivadas voltassem a ser bens nacionais, que os recursos obtidos com a venda de terras da nação fossem empregados para favorecer a colonização de europeus pobres, índios e negros forros. Queria que os camponeses tivessem reais possibilidades de adquirir as terras em que trabalhavam.
Foi pioneiro da siderurgia e da agricultura mecanizada no país. Escreveu a um amigo: “Trabalho de dia e de noite e tudo isso com gente livre e alugada, sem precisar de escravatura que detesto…”.
Sempre buscou garantir a unidade nacional. Em 1822, quando era ministro do Reino e Negócios Estrangeiros, promoveu a ida de Dom Pedro a Minas e São Paulo e enviou emissários a Pernambuco e Bahia para garantir a unidade do Brasil contra movimentos separatistas. Recrutou agregados das fazendas, escravaria da cidade, garimpeiros despedidos das minas (de 16 mil em 1812, decresceram para 6 mil em 1820), negros forros, milicianos enviados por São Paulo e Minas e cerca de 1.000 soldados e com eles organizou o Exército e a Marinha para expulsar remanescentes colonialistas portugueses na Bahia, Sergipe, Maranhão, Piauí e Ceará. Afirmou ao cônsul interino dos Estados Unidos, P. Sartoris, em junho daquele ano: “O Brasil é uma nação, e tomará o seu lugar como tal, sem esperar ou solicitar o reconhecimento das outras potências”. Foi o redator do manifesto do Príncipe Regente, de 6 de agosto, em que o Brasil “proclama à face do Universo a sua independência política”. Foi um dos que influenciou D. Pedro a desobedecer as ordens de Lisboa – inclusive no episódio que ficou conhecido como o Dia do Fico.
Esteve presente em todos os episódios da luta pela Independência. Após a sua conquista, como ministro, orientou nossa política interna e externa, tendo em vista, pioneiramente, um projeto de Estado nacional. Defendeu políticas sociais avançadas como o voto do analfabeto, o anticolonialismo na política externa, o respeito às nações, a autodeterminação dos países.
Indigenista e integrador
Em 1823, como deputado constituinte, propôs o projeto sobre a integração dos índios na sociedade brasileira e o projeto sobre a extinção do tráfico negreiro e a emancipação gradual dos escravos. Também apresentou à Constituinte projetos de lei destinados à proteção ao trabalho da mulher grávida. Demonstrou à Assembleia Constituinte as vantagens “de uma nova capital do Império no interior do Brasil, em uma das vertentes do rio São Francisco, na recém criada comarca de Paracatu do Príncipe, que poderá chamar-se Petrópole ou Brasília…”.
Nos Apontamentos para a Civilização dos Índios Bravos do Império do Brasil, combateu o roubo das melhores terras indígenas, condenou os males e vícios a que estavam sujeitos, os preconceitos e extermínio de que eram vítimas. Viu na escravidão a causa do luxo e da corrupção, que “nasceram entre nós antes da civilização e da indústria”.
Na Constituinte, apresentou 44 propostas para a “pronta e sucessiva civilização dos índios, que a razão e a experiência têm ensinado”. Sua concepção era de que “Newton, se nascera entre os Guarani, seria mais um bípede que pisara a superfície da Terra; mas um guarani criado por Newton talvez ocupasse o seu lugar”. Com a participação indígena, pretendia formar aldeias, aumentar a agricultura com gêneros de primeira necessidade e a criação de gado, equilibrar o cultivo e fabrico de açúcar. Reconhecia os índios como os legítimos senhores das terras “que ainda lhes restam”.
As aldeias centrais teriam escolas práticas de artes e ofícios para índios, brancos e mestiços. Os estudantes que se destacassem aprenderiam latim e ciências, como pensionários do Estado. Dentre eles seriam escolhidos os dirigentes do povoamento, favorecendo “em iguais circunstâncias os de origem indiana, para se acabarem de vez preocupações antissociais e injustas”.
Ao inaugurar o Serviço de Proteção aos Índios, em 1910, antecessor da atual FUNAI, o então tenente coronel Cândido Mariano da Silva Rondon declarou inspirar-se nas ideias, processos e medidas aconselhados por José Bonifácio no seu projeto sobre a civilização dos índios.
Precursor do abolicionismo
Para Bonifácio, “o mulato deve ser a raça mais ativa e empreendedora, pois reúne a vivacidade impetuosa e a robustez do negro com a mobilidade e sensibilidade do europeu”. Afirmava que, sem o fim do tráfico e a emancipação sucessiva dos cativos, “nunca o Brasil firmará a sua independência nacional e segurará e defenderá a sua liberal constituição”. O grande abolicionista Joaquim Nabuco, 60 anos depois, referiu-se a estas palavras considerando-as uma “defesa ardente”, uma “promoção espontânea e apaixonada dos direitos dos escravos pelo mais ilustre de todos os brasileiros”.
Sobre a escravidão – e a emancipação – dos negros, apresentou 37 artigos, que dão prazo para o fim do comércio de africanos, mecanismos para a abolição gradual da escravidão e indicações para a reorganização da vida social, jurídica, econômica e familiar dos libertos. Conclamou: “É tempo, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, responsáveis e felizes”. Denunciou os “nossos compradores e vendedores de carne humana”, “que só empunham a vara da justiça para oprimir desgraçados”. Os negros libertos “virão a ter então mais valor”, com casamentos e outras iniciativas. Os trabalhadores livres ou forros, para “ganharem a vida, aforarão pequenas porções de terras”.
Para Joaquim Nabuco, se o projeto de José Bonifácio tivesse sido adotado e, “sobretudo, se o ‘patriarca da Independência’ houvesse podido insuflar nos nossos estadistas desde então o espírito largo e generoso da liberdade e justiça que o animava, a escravidão teria por certo desaparecido do Brasil há mais de meio século”.
Entre os melhores de nossa História
Atualmente, os restos mortais de José Bonifácio de Andrada e Silva jazem, ao lado dos despojos de seus irmãos Antônio Carlos, Martim Francisco e padre Patrício Manuel, no Panteão dos Andradas, em Santos. Uma das galerias do Museu Mineralógico e Geológico da Universidade de Coimbra leva o seu nome. A um mineral do grupo das granadas foi dado o nome de andradita, em sua homenagem. A Marinha Brasileira batizou com o seu nome três de suas belonaves. Seu nome foi inserido no Livro dos Heróis da Pátria. No Senado, a Mesa instituiu, em 16 de junho de 1978, a Medalha José Bonifácio, em sua homenagem. A Medalha Nacional do Mérito Científico, do Ministério da Ciência e Tecnologia, tem a sua efígie. A Sociedade Brasileira de Geologia premia os profissionais de destaque da sua área com a Medalha de Ouro José Bonifácio de Andrada e Silva. E assim existem homenagens em várias cidades e estados brasileiros.
Tratando de seus trabalhos, Sérgio Buarque de Holanda considerou: “Enriqueceu-lhe o espírito não só a cultura que se aprende nos livros e nas escolas, como também o contato direto, em todos os centros civilizados, com os problemas que desde cedo o absorveram”. José Honório Rodrigues o tratou como “um vanguardeiro para sua época. Um acelerador do processo histórico”. Para Carlos Guilherme Mota, “José Bonifácio de Andrada e Silva é uma referência fundamental na formação da nacionalidade brasileira, tanto no plano político-social como no cultural”.
***
José Bonifácio é um desses homens que se elevam como dos melhores de seu tempo. Ao homenagearmos sua figura histórica, aprendemos com seu exemplo e, enriquecidos com suas lições, continuamos a sua obra de construir um projeto de autonomia nacional que consolide um Brasil forte, soberano, próspero, socialmente justo. Ao lembrarmos seus feitos, nos 250 anos de seu nascimento, despertamos a nova geração para a nova vida que estamos construindo e as tarefas históricas que temos pela frente.