É pedagógico notar o avanço das alianças políticas em torno das demandas de LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) durante a realização da 17ª. Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, ocorrida neste 2 de junho de 2013. Numa única foto é possível ver, lado a lado, lideranças políticas petistas, comunistas, trotskistas, conservadores de direita e de centro (se isso for possível), entre outros. Todos se posicionando contra o fundamentalismo religioso e a violência homofóbica que pautam a agenda de direitos humanos atual.
Movimento afirmativo que desabrochou no bojo das lutas pelos direitos civis na Califórnia hippie do final dos anos 1960, o Gay Pride tinha poucos vínculos políticos e ideológicos nítidos, embora tendesse à esquerda. Militantes que trouxeram a ideia e o entusiasmo norte-americanos para o Brasil, costumavam estar mais associados ao anarquismo que à esquerda. Em meio ao enfrentamento dos anos de chumbo da ditadura militar brasileira, havia resistências em todos os setores da esquerda por aceitar como legítima a luta pela liberdade de orientação sexual. Daí o radicalismo anarquista ou desencantado dos poucos militantes que despontavam. Ainda assim, a aliança inicial possível situava-se à esquerda, ao final dos anos 1970.
O surgimento e deterioração do grupo Somos, a primeira grande organização do eixo Rio-São Paulo no início dos 1980, ainda antes do surgimento da AIDS, tem sua história marcada pelos conflitos internos entre anarquistas, socialistas e pessoas sem vinculações políticas. Os motivos para desentendimentos iam desde a polarização entre a defesa de setores de esquerda de uma “luta principal”, que teria mais relevância sobre as “lutas específicas” ou das “minorias”, até a discussões mais mesquinhas sobre um suposto aparelhamento desonesto do grupo por parte de militantes de esquerda que infiltravam heterossexuais nas reuniões para as disputas de tática, quando distribuíam favores afetivo-sexuais. Pode-se dizer que, naquele episódio, está o cerne de uma relação desconfiada que perdura até recentemente, ainda que a conjuntura tenha mudado.
É possível identificar uma novidade na atual configuração do movimento LGBT paulista e carioca, em que militantes conservadores politicamente ocupam cargos de destaque na burocracia estadual, e militantes progressistas de esquerda comandam as políticas públicas em prefeituras influentes como São Paulo. Está aí uma oportunidade excepcional de fortalecer os vínculos e reduzir a desconfiança dentro de um movimento permeado pela ideologização de esquerda dos petistas, e pelo oportunismo comercial de um certo empresariado de direita. Enquanto os setores de direita dominavam a máquina estadual e municipal, só restava à esquerda uma relação de enfrentamento oposicionista permanente.
O Governo Federal, por sua vez, reflete os limites da poderosa coalizão comandada pelo PT, e preenchida pela infinidade de políticos conservadores ou mesmo fundamentalistas religiosos. Se por um lado, há um acúmulo de quadros nacionais LGBT produzindo ações, ampliando alianças e apoios financeiros e institucionais a políticas afirmativas de sexualidade e gênero, por outro lado há gestos governamentais ambíguos que fortalecem os setores religiosos da política. Dificilmente a presidenta Dilma associa sua imagem ao movimento, como fez o ex-presidente Lula, por exemplo. Ainda assim, essa ambiguidade aponta para uma balança que pende a favor dos direitos humanos de LGBT.
A tradicional Feira LGBT, que reúne estandes de organizações governamentais e não governamentais, assim como comerciais, no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo, expressou essa confluência política com frequentes confraternizações entre militantes dos diversos âmbitos políticos, em grandes espaços organizados por órgãos dos três níveis de governo. O governador Geraldo Alckmin (PSDB) e o prefeito Fernando Haddad (PT) se encontraram durante o evento público, num momento incomum para aquele público. Nenhuma das instâncias jamais prestigiou pessoalmente essa que já é a 13ª. edição da feira, preferindo deixar isso a cargo do terceiro escalão, ou seja, não me recordo, sequer de ter visto um secretário municipal ali em outros tempos. Alckmin veio acompanhado de seu secretário de Cultura e Haddad de seu secretário de Direitos Humanos. O Governo Federal permanece na feira com seus terceiros escalões, embora na Parada seja inevitável a presença da ministra da Cultura, Marta Suplicy (PT), que participa da manifestação desde sua primeira edição, quando era deputada federal e foi pioneira na proposição de projetos de leis para essa população.
Na entrevista coletiva que antecede a Parada, a diplomacia entre adversários políticos retóricos como o deputado federal Jean Willys (PSOL) e a ministra Marta, ou Haddad e Alckmin, mostra o nível de civilidade que vigora em relação a este tema. Todos preferiram focar no alvo comum de interesse da população LGBT: o fundamentalismo religioso e a violência e discriminação homofóbicas cotidianas. Embora direita e esquerda tenham se encontrado na disputa pelos corações e mentes LGBT, surgiu um setor da política que decidiu se afirmar negativamente contra os direitos civis dos homossexuais, pela via da teocratização do espaço político. Ainda não há sinal no horizonte de possibilidade de pactuação entre o movimento LGBT e uma grande parcela de parlamentares ou gestores que se afirmam politicamente como evangélicos.
Portanto, ao contrário de outras demandas de movimentos sociais que continuam sendo defendidas exclusivamente pela militância de esquerda, as demandas LGBT atingiram um cenário em que também a direita disputa sua atenção e simpatia. A Parada do Orgulho tornou-se o espaço ideal para isso com seu formato celebratório leve e inclusivo e não apenas de protesto nervoso típico da esquerda. Para efeito de comparação, mesmo o movimento de combate ao racismo, que tem a simpatia de setores de direita, não desfruta de prioridade absoluta entre conservadores que associam suas reivindicações ao classismo proletário de esquerda, mais que a questões afirmativas raciais.
Entre os LGBT, a direita identifica não apenas uma elite liberal influente e formadora de opinião eleitoral, como também todo um mercado consumidor de produtos específicos que constituem os “melhores” valores ideológicos liberais. Em grande medida, o raio de influência do movimento LGBT não tem origem apenas na militância precária de suas entidades, mas, em grande medida, nos setores médios que ocupam espaço nas mídias, na cultura e no mercado. Se o movimento evita o discurso de que gays e lésbicas compram mais produtos supérfluos, como se isso fosse critério para ter direitos sociais, há todo um setor formador de opinião que fisga essa armadilha repetindo o quanto a cidade arrecada com os turistas da Parada.
Agora, em pé de relativa igualdade, ocupando cargos públicos similares, começa uma guerra de realizações e publicidade entre os governos do PSDB e do PT. Os petistas avaliam que as ações demotucanas na Prefeitura da capital e no Governo paulista focam-se na realização de eventos, mais que em políticas públicas duradouras. Aqueles, por sua vez, criticam os petistas (Haddad) por cederem às chantagens da bancada evangélica, evitando políticas públicas para LGBT. Neste momento, a esquerda (Haddad) tem uma oportunidade de mostrar do que os petistas são capazes, dando uma aula aos tucanos de como fazer políticas públicas afirmativas e transversais de amplo alcance em vez de ações pontuais e focalistas.
É este o cenário que se contorna para os próximos anos no âmbito do movimento LGBT. Uma disputa entre gestores públicos, em que LGBT podem sair conquistando muito, como raras vezes tiveram a oportunidade. O Governo Federal espera apenas que essa correlação de forças oriunda de São Paulo seja capaz de mostrar aos extremistas do Congresso o erro que significa operar legislativamente contra os direitos humanos. Quem sabe, assim, as políticas públicas nacionais, que não são poucas, avancem ainda mais em direção a plenitude de direitos.
O desafio envolve muito pragmatismo na relação entre os entes federativos, evitando confrontos desnecessários, e alguma ideologia de esquerda na formulação de políticas perenes, definitivas e irrefutáveis. Daquelas que ampliem o alcance até mesmo entre os religiosos, forçando os fundamentalistas a buscar outra estratégia e outro alvo de afirmação retórica. Resta observar qual o alcance possível de uma aliança com tamanha amplitude, para além de adversidades ideológicas e políticas.