O processo constituinte foi palco de várias lutas emancipatórias.

A luta das mulheres e dos negros, entre outras tantas, não foi só uma luta por identidade, mas de reconstrução e transformação das identidades históricas que herdaram.

Eles insurgiram-se contra categorias essencialistas, biológicas, com a convicção de que estas haviam gerado e garantido a permanência das relações de poder que os oprimiram e marginalizaram.

E, nesse processo profundo de emancipação, emerge uma Constituição que carrega dentro de si a percepção genuinamente utópica de uma comunidade livre e igualitária de indivíduos independentes.

No entanto, de forma paradoxal e cruel, mostrou-se desejosa da submissão de uma categoria de sujeitos: as trabalhadoras domésticas.

Dos 34 direitos garantidos às demais categorias profissionais, apenas 9 lhes foram reservados (o art. 7º da Constituição, depois de enumerar, em 34 incisos, os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, dispõe, em seu parágrafo único, que aos empregados domésticos se aplicam apenas os direitos de salário mínimo, irredutibilidade de salário, 13º salário, repouso semanal remunerado, férias anuais remuneradas, licença à gestante, licença-paternidade, aviso prévio e aposentadoria).

Esse enclave acabou por comprometer, em larga medida, a promessa constitucional.

Foram criados dois mundos simultâneos e incompatíveis, nos quais passaram a conviver emancipação/sujeição, alteridade/unidade, autonomia/hegemonia. E reintroduziu-se, num ambiente libertário, aquilo que se buscava extirpar: nosso legado patriarcal e racista.

Segundo dados do IBGE de 2009, na categoria de trabalhador doméstico, 94% são mulheres e 62% se declaram negras.

O dado evidencia a persistência da visão naturalizada de que as mulheres estão aptas apenas a exercer atividades domésticas.

Somam-se a esse estigma os pesos das práticas do Brasil escravocrata, que reservam às negras essas atividades, compreendidas como de pouca ou nenhuma qualificação técnica e intelectual.

Não é por outra razão que o espaço onde se desenvolve o trabalho doméstico reproduz, em certa medida, a arquitetura da escravidão.

Tal como ocorria com a senzala e a casa-grande, o quarto da empregada, além de em geral com pouco espaço e pouca ventilação, mantém a presteza servil, sem que a trabalhadora tenha controle sobre a jornada de trabalho e as horas de descanso.

Foram necessárias sete décadas de luta, mas o Parlamento enfim ouviu suas vozes.

Ganham as trabalhadoras domésticas e ganhamos todos nós, livres dessa ironia devastadora de ter, numa Constituição fortemente comprometida com a liberdade, a igualdade e a solidariedade, um dispositivo de conteúdo tão mesquinho.

Essa importante decisão do Congresso Nacional vem somar-se ao capital –simbólico e real– de reconhecimento de direitos e fortalecer lutas que, ainda hoje, se desenrolam na ordem da existência cotidiana e no interior do campo jurídico.

DEBORAH DUPRAT, 54, vice-procuradora-geral da República, é candidata ao cargo de procurador-geral da República

Publicado em TENDÊNCIAS/DEBATES, da Folha de S. Paulo