Parafraseando Pilatos, “o que é a verdade quando quem supostamente a produz são as superestrelas acadêmicas?”. Possivelmente, ainda que negligenciada, essa é a pergunta mais importante levantada pelo recente caso Reinhart-Rogoff (R-R).

Os fatos essenciais do episódio são os seguintes: dois professores de Harvard, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, usaram suas pesquisas acadêmicas para se tornaram grandes defensores, no reino político, embora não entre os colegas acadêmicos, da necessidade de austeridade fiscal quando uma economia se aproxima de um patamar de endividamento de 90% do Produto Interno Bruto (PIB). Suas reputações de superestrelas (merecidamente conquistadas graças a seus trabalhos anteriores) tornaram essa defesa influente, até demais, nos acirrados debates políticos nos Estados Unidos e Europa. A pesquisa – em especial, a revelação crucial de que há uma desaceleração tão grande do crescimento quando se atinge o patamar dos 90% – foi posteriormente exposta como sendo falha.

O frenesi post mortem com o caso R-R teve como foco as implicações para o debate sobre a austeridade. Isso parece menos interessante do que a questão epistemológica, mais ampla. Uma resposta é minimizar a importância da questão considerando-a irrelevante. Sob certos aspectos, o caso mostra que o mercado do conhecimento ou o processo de “investigação científica” realmente funcionou. Asseverações foram defendidas com base em evidências. As evidências foram revistas e essas asseverações foram subsequentemente desprestigiadas. Na verdade, de uma forma sutil, mas relevante, há uma atraente qualidade autorreguladora nesse mercado. Quanto maiores as superestrelas e mais influentes as asseverações, maior é a fiscalização que se desperta. E também é possível que o constrangimento causado aos professores Reinhart e Rogoff fará com que eles e outros sejam mais cuidadosos em pesquisas futuras.

Se superestrelas como Reinhart e Rogoff produzem estudos em questões políticas importantes deveriam submeter tais trabalhos a padrões demonstrativos mais elevados e a um processo de escrutínio antes de serem disseminados como preliminares

O grande físico Max Planck disse certa vez que a ciência avança “de funeral em funeral”. Interprete-se “funeral” de forma metafórica e temos a validação não apenas de sua frase espirituosa e mórbida, mas também do próprio processo atual de geração de conhecimento.

A saga R-R, no entanto, sinaliza que há dois alertas importantes. O primeiro é o que pode ser chamado o “efeito auréola”. O ideal é que cada pesquisa seja avaliada por seus próprios méritos. Mas é provável que a pesquisa R-R tenha sido objeto de padrões menos exigentes porque eles eram ninguém menos que os professores Reinhart e Rogoff.

A segunda, que talvez seja um problema mais grave, refere-se aos danos provocados nesse meio tempo. Vamos presumir que a pesquisa e suas ideias tenham influência. Vamos presumir, também, que essa influência é diretamente proporcional à reputação dos que vendem essas ideias.

Sob esse ponto de vista, os professores Reinhart e Rogoff seriam responsáveis pelas consequências reais da austeridade que defenderam. Será que a sociedade gostaria de ver uma repetição disso?

É claro, seria tolice culpar os professores Reinhart e Rogoff pela austeridade e suas consequências. A voz deles era apenas uma entre as muitas vozes contrastantes no debate sobre a austeridade. Por que separá-las das demais? Há um problema, no entanto, que não pode ser ignorado. E esse problema é especialmente grave no mundo de hoje de alta frequência e alta octanagem, em que pesquisas preliminares veem à tona na forma de um “documento de trabalho” e são selecionadas e disseminadas bem antes do processo formal de escrutínio que leva à publicação (ou rejeição) dessas pesquisas. E esses riscos são especialmente maiores quando se trata de um trabalho de superestrelas.

O que deveria ser feito para minimizar esses riscos? Uma possível solução poderia ser a seguinte. Se superestrelas produzem pesquisas empíricas em questões políticas importantes, deveriam submeter voluntariamente tais pesquisas a padrões demonstrativos mais elevados e a um processo de escrutínio mesmo antes de serem disseminadas como pesquisas preliminares. Por exemplo, o Gabinete Nacional de Análises Econômicas dos Estados Unidos (NBER, na sigla em inglês), que produz as séries de “documentos de trabalho” mais prestigiados do país, poderia cria uma “agência de replicação”, composta pelos estudantes de graduação mais destacados. As superestrelas (muitas das quais são filiadas à NBER) enviariam suas pesquisas empíricas a essa agência para uma fiscalização antes da publicação.

Sob certos aspectos, a saga R-R exemplifica o menor dos perigos. Possivelmente, o maior deles é quando superestrelas deslocam-se além das pesquisas e entram no mundo da pura defesa de políticas, muitas vezes fora de seus campos de especialização e experiência. Na verdade, esse problema foi previsto há muito tempo.

No Banquete do Prêmio Nobel de 1974, Friedrich von Hayek, um dos vencedores do Nobel de Ciências Econômicas, fez discurso sugerindo que a comissão selecionadora do Nobel exigisse dos laureados “um juramento de humildade, uma espécie de juramento hipocrático, de nunca traspassar em pronunciamentos públicos os limites de sua competência”. Sua explicação: “O prêmio Nobel confere a um indivíduo uma autoridade que, nas ciências econômicas, nenhum homem deveria possuir. Isso não importa nas ciências naturais. Aqui a influência exercida por um indivíduo é essencialmente uma influência sobre seus colegas especialistas; e eles logo o farão encolher de tamanho, se ele traspassar sua competência. Mas a influência do economista que mais importa é a influência sobre os leigos: políticos, jornalistas, funcionários públicos e o público em geral. Não há motivo para que um homem que tenha feito uma contribuição diferenciada para as ciências econômicas deva ser onipotente sobre todos os problemas da sociedade – como a imprensa tende a tratá-lo até que em algum momento ele próprio possa ser persuadido a acreditar”.

Se Keynes – o “doppelgänger”, o “outro eu”, intelectual de Hayek – estava certo quando celebremente concluiu em sua “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda” que: “Porém, cedo ou tarde, são as ideias, e não os interesses velados, que representam um perigo, seja para o bem ou para o mal”; e se as superestrelas estão cada vez mais envolvidas na geração e disseminação de tais ideias, talvez, elas devessem assumir dois compromissos: sujeitar suas pesquisas a padrões mais elevados e a um escrutínio prévio à publicação; e, o que é mais polêmico, esforçar-se para limitar sua defesa de políticas a seus campos específicos de experiência. “Caveat emptor”, a advertência ao comprador, carrega riscos no mercado de ideias, com as superestrelas ocupando os papéis-chave. Este pode ser o momento perfeito para um juramento Hayek-Hipócrates ajudar a minimizar tais riscos.

Arvind Subramanian é membro do Peterson Institute for International Economics e do Center for Global Development. Foi diretor assistente do Fundo Monetário Internacional (FMI). Escreveu o livro “Eclipse: Living in the Shadow of China”s Economic Dominance” e é co-autor de “Who Needs to Open the Capital Account?”.

Valor Econômico – 26/04/2013