Começo a pensar neste texto na alta madrugada de 14 de setembro e estou numa garimpeira, pequena rede que embala meus sentimentos e todo o cansaço destas jornadas araguaianas. A casa de taipa de Pedro da ´Tomásia´ sustenta os sonhos, a insônia, as vicissitudes e a grandeza deste céu absurdamente estrelado.

Aguardamos os primeiros timbres da alvorada, os raios sonoros das pedras minerais. Nosso guia, Raimundo Alves Pereira, o “Barreirão”, fala da primavera da manhã.

Meu caderno de anotações carrega o poema “Autoretrato” de Neruda. Lá pelas tantas ele, o poeta chileno, ensina ser “melancólico em las cordilleras, incansable em los bosques” e assim percorro as grandes extensões com sua poesia gritando pelos poros.

Faço essa digressão para contar essa história gravada nas retinas.

Acontece que nas atividades de campo do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) do governo federal que, dentre outras coisas, têm a responsabilidade de localizar os desaparecidos políticos na guerrilha do Araguaia tive a tarefa, em conjunto com o pesquisador Rodrigo Peixoto, do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG) de palmilhar aqueles mais de 25 mil hectares da Serra dos Martírios, rebatizada de “Andorinhas” pela ditadura militar.

Já havia estado ali em 2010 e 2011. Minha primeira subida foi com Euclides Pereira de Souza, o “Beca”, camponês duramente torturado pelo aparato repressivo instalado para combater a insurgência araguaiana. No ano seguinte segui de helicóptero. Escrevi artigos sobre as experiências vividas.

A diferença deste empreendimento para os já realizados está no nível das informações. Decerto que acumulamos mais dados, elementos essenciais para montar um verdadeiro quebra-cabeça capaz de traçar o modus-operandi do sistema perverso instalado pelos generais e as nababescas elites tupiniquins que, com forte apoio estadunidense, assaltaram o poder em 1964. Fazendo isso podemos encontrar muitos dos heróis de nosso povo e entregá-los, como um direito secular, para suas famílias e consolidarmos os rebeldes araguaianos no panteão dos verdadeiros heróis da nacionalidade. 

Entusiasta de primeira hora para a aventura cavalariça o pesquisador Rodrigo Peixoto propôs que nos preparássemos bem para a jornada e tratamos de comprar os mantimentos necessários para difícil subida até as “montanhas do Pará”, como ensina os versos de “A tenda do Pajé”, canção que minha mãe aprendeu com Ryoko Kaiano nas prisões políticas em Brasília. Tal música, inédita, pode ter sido confeccionada pelo poeta Rosalindo de Souza, o “Mundico”, destacado combatente do Destacamento C das Forcas Guerrilheiras do Araguaia.

Em São Domingos do Araguaia compramos sal, açúcar, arroz, farinha, repelentes, biscoitos, rapadura, alho, cebolas, sardinhas, linguiça e fumo de rolo. Conseguimos junto a Associação dos Torturados do Araguaia (ATGA) lanternas, facões e uma filmadora. A coordenação do GTA nos repassou um GPS para marcar os pontos.

Mas nossa escalada teria sido impossível sem a colaboração da emblemática figura do “Barreirão”, também atingido pela invasão militar no Araguaia. Sinceramente não conheço neste mundo figura mais forte que aquele camponês de 72 anos de idade, que, na juventude já sabia das histórias de Zé Porfírio do levante de Trombas e Formoso.

Pastor evangélico e lutador do povo, o “Barreirão “ se destaca na miríade das figuras araguaianas.

Há anos ele e a esposa, Dinalva, sustentam uma escola rural em São Geraldo do Araguaia. Formado em teologia com mais de sessenta anos nosso guia nos faz crer que tem gente neste mundo que leva mesmo ao pé da letra os ensinamentos de Cristo e as lições que a Bíblia enseja.

Vejo em nosso fraterno amigo camponês que a igreja das catacumbas ainda existe na prática humana, particularmente naqueles que estão voltados para os pobres e humilhados seja pelo poder do capital, seja pela presença criminosa do latifúndio.

Foi o “Barreirão” quem nos conseguiu as montarias: um cavalo imberbe e nervoso, uma mula parideira que levou a tiracolo sua cria e uma burrica que de tão lenta faz com que os passos humanos se assemelhem ao mais veloz dos bólidos.

No meio da tarde saímos para as altitudes dos Martírios.

Sabe-se com rigor documental que a imensa região de nossas pesquisas é conhecida desde fins do século XVI, ainda no período inicial da formação brasileira. Os primeiros registros documentais datam de 1590, referentes à Bandeira chefiada por Antonio de Macedo e Domingos Luís Grou quando o Araguaia era conhecido como Paraupava.

Os portugueses que chegaram por estes sertões, no alvorecer da nacionalidade, se depararam com um imenso sítio arqueológico com centenas e centenas de inscrições rupestres que comprova a milenar presença humana na Amazônia.

Naqueles dias em que ninguém se lembra, os colonizadores se depararam com registros gravados nos lajedos e rochas e muitos destes entalhes nas pedras realizavam oferendas ao sol que se assemelha a coroa de espinhos de Cristo. Daí o batismo de Martírios.

A forte presença de quartzito com mica na geologia da serra fez saltar, naqueles bugreiros a cobiça e a concomitante corrida pelos minerais de alto valor.

Pouca gente sabe, mas a descoberta de diamantes no Brasil ocorreu exatamente no vale araguaiano em 1610 por um soldado enviado pelo francês Daniel de La Touche, o Conde de La Ravardière, que dois anos depois conspirou para a fundação de uma das mais belas cidades brasileiras, São Luís do Maranhão, terra fecunda dos casarios, dos negros e de poetas da estirpe de Gonçalves Dias e Ferreira Gullar. 

Mais de um século depois, em 1714, é que os diamantes seriam descobertos nas Minas Gerais. O ouro e os diamantes das alterosas finalmente amarraram o Brasil, segundo o antropólogo e decisivo pensador brasileiro Darcy Ribeiro.   

Muito de nossa viagem ocorreu pela noite suspensa diante dos olhos e apenas o trote das montarias, os sussurros misteriosos dos ventos e os sonetos dos bichos podiam ser tocados pelas sensações humanas. O “Barreirão” ia à frente indicando-nos os melhores caminhos de pedras, grandes e pequenas com formações de mais de 500 milhões de anos.

Tive medo, mas pensei nos diamantes, nas opalas e ametistas. À esteira da pisada dos quadrúpedes espocavam faíscas e as estrelas que existem na terra reluziam pequenas, ofegantes, continuadas, como quem indica os caminhos a seguir. Senti que estávamos protegidos e já não havia temor, apesar de todos os músculos estarem em alerta e o instinto de sobrevivência prevalecer como o mais ancestral dos homens.

Na confusão das riquezas havidas naquele chão terno e perigoso sondei outra riqueza, aquela que aparece quando surge a humanidade e a civilização: a luta pela memória.

Os obscurantistas nos querem desmiolados. Para que a dominação seja bem sucedida é preciso não apenas matar nossos heróis, mas desaparecer com os seus vestígios. Por isso organizaram aparatosas operações de limpeza no curso dos anos que se seguiram.

Isso quer dizer que tentaram lhes matar várias vezes, a carne, os amores, a tez, o legado, suas histórias em armas, fuzis cantantes da liberdade que ousaram tomar os céus de assalto como ensinou-nos Marx diante da ousadia dos comunardos de Paris.

O reinado dos lobos foi derrotado pela alma libertária dos que guerrilharam nos sertões araguaianos e país afora.

Agora é hora de contar certas histórias e deixem as crianças na sala para que a moral civilizatória seja pródiga nas gerações que haverão de descortinar os horizontes do futuro. Com isso o progresso espiritual dos brasileiros estará assegurado com a inexorável emancipação de nosso povo do jugo dos tiranos, dos de cá e dos de fora.

Depois de horas de escuridão nas subidas chegamos até a casa de Pedro Pereira de Souza, o Pedro da “Tomásia” e sua esposa Francislene Moraes Leite, a dona “Franca”.

Na região da “Casa de Pedra”, onde ocorre em Junho a Festa do Divino Espírito Santo, o GPS indicava a altitude de 403 metros. Os lugares mais altos dos Martírios podem chegar a mais de 600 metros de altitude. Logo depois de instalarmo-nos enfiei-me no gelado ´Jatobá´, um dos vários córregos que nascem naquelas elevações de São Geraldo do Araguaia.

Entre as árvores avistávamos a estrela Dalva e o frio de 15 graus faz parecer que não estamos no Pará. Mas o Pará é tão diverso e desconhecido que nos surpreendemos. Apenas os entendidos no assunto sabem que na serra das opalas têm dezenas de cachoeiras, cavernas, grutas e abrigos. Há cachoeiras de 70 metros e uma caverna, a “Serra Andorinhas” cuja extensão chega à 1 km, segundo levantamentos do Grupo Espeleológico de Marabá (GEM). Além disso, toda a imensa extensão dos Martírios combina os biomas do cerrado e amazônico.

Na noite profunda, enfiado numa rede, naquela casa de taipa, com saudades dos filhos e da mulher e condecorado pelo cansaço é que comecei a entabular estes escritos.

Antes do sol foi que o “Barreirão” alumiou os primeiros raios com a consigna da “primavera da manhã”. A sabedoria deste país profundo saltou como fagulhas cintilantes naquele simples linguajar camponês. Muitos doutores ou intelectuais jamais terão tal sabedoria e por isso se enforcam nas gravatas da exacerbação do cotidiano, da negação do processo histórico para a felicidade geral dos que atuam para turvar as consciências no sentido de que tudo deve se fragmentar e nada deve mudar, a não ser nas roupas de grifes ou os ipods tecnologicamente ultrapassados. Mudança de verdade é a revolução que já está em curso em boa parte de latino-américa.

Manhã posta e farinhada na barriga botamo-nos a andar. E andamos muito. O caminho de mais subidas não poderia haver montaria porque nossos destinos são altivamente íngremes. A queda de um dos animais poderiam nos machucar bastante.

Nosso caminho era até a casa de Raimundo Estevão de Souza Martins, o “Raimundão”, morador a 35 anos daquelas paragens para lá de inóspitas. Já o conhecia quando baixamos lá de helicóptero em maio de 2011.

Diferentemente do ano passado encontramos um homem de 68 anos revoltado.

O fato é que os moradores da serra, sua população tradicional está sendo achacada pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará, a Sema. Acontece que os moradores estão abandonando aquelas altitudes e a única escola que havia já não funciona mais. Não há mais crianças na Serra dos Martírios.

Tudo está ligado à consolidação de um parque estadual, mas segundo o “Raimundão” o que está por trás da saída dos moradores são os interesses da Vale, uma das maiores companhias de mineração do planeta. Aquele camponês, que criou os nove filhos na serra, informa que o governo propõe uma indenização de 100 mil reais, insuficientes para recomeçar a vida em outro lugar.´ Toda uma vida de trabalho duro não passa de 100 mil reais´, protesta. O “Raimundão” afirma ainda que “os fazendeiros fecharam as velhas estradas, os caminhos antigos e tudo foi passado no cadeano”, denuncia.

Acontece que a Vale tem feito muitas pressões por toda a região, inclusive em áreas indígenas, como é o caso das reservas Suruís, em São Geraldo do Araguaia. E na história contemporânea da Amazônia a instalação de poderosos projetos econômicos sempre foi parideira de conflitos porque intentaram e intentam na retirada de camponeses de suas áreas tradicionais de posse.

A “Guerra dos Perdidos” surgiu assim, em 1976, depois que os generais de Brasília tentaram retirar os lavradores na região do Araguaia para beneficiar grandes empresas nacionais e estrangeiras que intentavam se instalar na região depois de derrotada as Forcas Guerrilheiras do Araguaia. Daí surgiu a tão falada “Segunda Guerra”, onde os camponeses de armas em punho e adotando táticas aprendidas com os comunistas sustentaram um levante contra os prepostos do Incra, do Exército, da Polícia Militar do Pará e do latifúndio. Dezenas de camponeses foram presos e surrados até a náusea, sendo liberados apenas porque a CPT e seu assessor jurídico, Paulo Fonteles, atuaram para libertar aqueles lavradores pobres. Foi neste episódio que meu pai conquistou, em definitivo, a confiança camponesa e passou a ser conhecido como ´advogado-do-mato´.

Confesso que tenho uma pulga atrás das minhas orelhas de abano. Um vira-lata abandonado late aos meus ouvidos, mas posso estar enganado.

Mesmo com a revolta diante da situação, o “Raimundão”, como fez em outras vezes prestou um conjunto de informações e a principal delas foi a existência de uma Base Militar que desconhecíamos, a “Luizinho”.

Tal Base dista uns 2 km de outra, bem mais conhecida e divulgada, a do “Urutu”. A Base do “Luizinho” fica nas margens do “Gameleira” e próximo ao encontro deste com o “Jatobá”.

Impressiona o fato de que anos de trabalhos de pesquisas, seja de familiares, de militantes ligados ao Partido Comunista do Brasil, de ativistas em direitos humanos e mais recentemente do próprio governo federal ainda nos deparamos com dados e informações que, até os nossos dias, permaneceram invisíveis.

Mesmo com o volume de dados que dispomos ainda estamos distantes, convicção que carrego comigo, de compor na completude a saga araguaiana e a extensão da violência e de todo o aparato militar utilizado para sufocar a ousadia comunista nos sertões amazônicos.

Cumprida a tarefa nos despedimos do “Raimundão”, que sumiu entre as estruturas ruiniformes e a savana dos Martírios.

Espero revê-lo em breve, com saúde e disposição para a luta.

No retorno das descidas íngremes, de horas, mais uma vez o “Barreirão” foi nos ensinando as coisas da natureza, as frutas e plantas medicinais de nosso modesto altiplano. Nesse processo expedicionário nossas retinas e paladares conheceram o “puçá”, a “mirindiba”, o “cajuí” e o “bruto da quaresma”.

Com as retinas alargadas pelas extensões e por recentíssimas histórias, segui como Neruda: “entrometido entre pájaros”.