Nunca foi tão importante saber ler a história da música brasileira, seja pelos seus principais personagens da vida artística, seja pelo ponto de identificação da arte popular. Arte que, segundo Mário de Andrade, é naturalmente tropical. No entanto, dá um aperto no coração quando num dia tão especial quanto o 23 de abril em que vemos muitas comemorações a São Jorge (Ogum) e que também é o dia em que se comemora o nascimento de Pixinguinha e por isso O Dia Nacional do Choro, nossas principais instituições oficiais de cultura (que vivem tempos bicudos em um debate de araque) ignoram solenemente a concepção de nossa musicalidade posta em prática, uma música que procede da leitura do próprio povo.

Esta visão mágica que o Estado não consegue ter, é o que Pixinguinha sempre teve, com sua flauta, seu sax, seu pioneirismo como primeiro arranjador brasileiro e com uma composição farta e rica que puxa o fio mais sublime dos sentimentos do povo brasileiro para tecer uma versão artística do que é praticado em seu princípio por esta civilização tropical.

Dia desses vi o grande mestre Wilson das Neves dizer que “os grandes sambistas, quando morrem, viram orixás”. Então, Pixinguinha, classificado por muitos que o conheceram como São Pixinguinha, com certeza também virou um orixá. Na verdade motivos pra isso não lhe faltaram. Ogan, Pixinguinha foi o informante que, capaz de expressar realmente o objetivo das religiões de matrizes africanas, encheu de informação Mário de Andrade para que ele tivesse um rico material em uma conferência que mais tarde se transformaria em um dos principais livros sobre a Música Brasileira, “Música de Feitiçaria no Brasil”.

Portanto, a homenagem que Mário de Andrade faz a Pixinguinha no livro “Macunaíma” com o personagem “Filho de Ogum Bexiguento” tem raízes bem mais profundas de uma colheita farta de informações que a amizade entre os dois proporcionou.

Não tenho dúvidas de que o grande período de modernização de nossa música se deu nos primeiros sessenta anos do século XX. Jamais o Brasil viveu diante de tantas concepções que serviram de suprimento em quantidade e qualidade às gerações que viriam. E, dentre tantos grandes músicos, alguns deuses como Villa Lobos, Pixinguinha e Nazareth trouxeram em suas obras verdadeiras conferências aonde se encontram os pilares centrais da música moderna brasileira.

Há um outro aspecto singular em nossa música que reflete, não a religião, mas a religiosidade do povo brasileiro. E esse tema ecumênico desinteressado frequenta e decora a grande música brasileira até os dias de hoje. Ou seja, é a própria gênese de uma civilização que se manifesta diante das divindades de uma forma espontaneamente livre, a seu modo, tratando de se comunicar com o universo divino a partir dos princípios de nossa própria cultura mestiça.

O Choro é uma carta aberta que coloca o Brasil em um cenário amplo que se movimenta sem conflitos estéticos ou ideológicos. E Pixinguinha, com seu talento, glorificou toda a informação colhida, nota por nota, no seio da sociedade a partir do tempo de nossa música.

Por mais que achemos inaceitável que o Ministério da Cultura do Brasil se faça de autista diante desta data para produzir pensamentos híbridos, artificiais e economicistas sobre cultura, rasgando símbolos fundamentais de nossa memória, a nossa responsabilidade só aumenta. Por isso, passada a invasão da indústria fonográfica estrangeira, esse corpo estranho que não se integrou por falta de sensibilidade com a obra brasileira, está sendo expelido e todo o tecido social de nossa música vai se recompondo numa reintegração fulminante dadas as novas tecnologias de informação, num misto do divino, do profano e do virtual, uma santa comunhão.

E essa alma brasileira, como classificou Villa Lobos, o Choro, volta a ganhar clareza, liberdade e, consequentemente vai vestindo a roupa de gala e se tornando cada vez mais popular, mantendo contatos cada vez mais amplos com a juventude pela identificação com a obra de santos brasileiros que, como Pixinguinha, viraram Orixás.

____________

Fonte: blog Trezentos