Demóstenes foi um fiel servidor dos impolutos “investigativos” que agora executam sua liquidação moral e política. Repito o que escrevi há tempos: a língua inglesa tem uma palavra precisa – self-righteousness – para designar as exibições de virtude dos caçadores de corruptos que, como Torres, se ocupam de achincalhar os adversários com as desfeitas do moralismo dos fariseus. O Novo Michaelis define: self-righteous, o cidadão que imposta a self-righteousness, é farisaico, hipócrita.

Há que se admirar, no entanto, o desmazelo da turma dos self-righteous nos labores de selecionar seus operadores políticos. Por causa de tais “falhas de mercado”, o morgue das reputações perdidas é invadido por uma frenética circulação de cadáveres excelentes, todos mortos a golpes de primeira página. Enquanto isso, sobrevive impávida a estrutura de poder real que sustenta a procissão de promiscuidades entre a mídia e a política. Mandam e desmandam os mesmos de sempre, agora reforçados pelas pirotecnias eletrônicas à moda de Ruppert Murdoch.

A grande inovação dos tempos, além da internet e do celular, é a fábrica de grampos, empreendimento comum de arapongas e de certos “operadores” da mídia dita investigativa.

Tempo houve em que o grampo se prestava a finalidades excelentes. Excelentes porque, de fato, excediam sua banalidade ilusoriamente óbvia. O grampo cuidava, então, de adornar os cabelos das estrelas de Hollywood, mulheres inesquecíveis, como Rita Hayworth em Gilda ou, melhor ainda, Kim Novak em Vertigo.

Nem todos se deram conta do poder de sedução abrigado nos prosaicos grampos, quase invisíveis, em seu nobre mister de prender os longos cabelos cuidadosamente repartidos de Rita ou as madeixas prateadas de miss Novak, magistralmente dirigida por Alfred Hitchcock.

Hoje os grampos transformaram-se em meios de troca no intercâmbio de favores entre as improbidades da jogatina ilegal e a reportagem escandalosa. Os senhores tornaram-se mais ferozes na aplicação de métodos suaves. Aprenderam a usar instrumentos mais sutis e eficientes para torturar coletivamente os cidadãos com as técnicas da desinformação, do massacre ideológico e da “espetacularização” da política.

Os cúmplices de ontem e os algozes de hoje enfrentam, porém, uma dúvida terrível: não sabem se, de fato, o cadáver está bem morto. Defunto notório, o senador Demóstenes é possuidor de amplos e reconhecidos saberes a respeito das ligações entre as mazelas da política nativa e as manobras dos “investigadores” que desfrutavam de sua convivência e intimidade. Os estragos de uma ressurreição ou de um último suspiro podem ser pavorosos.

Imagino as angústias que nesta hora oprimem os corações de alguns acusadores de ocasião. Como pistoleiros de aluguel, só vão sossegar o espírito quando convencidos de que o cadáver está completamente morto. Não podem fazer outra coisa senão esperar sua defunção definitiva. Mas aqui só há uma certeza possível: contra ele, todos os golpes já foram desferidos.

Então caberia pesar as conveniências do assassinato de um personagem tão emblemático, uma encarnação perfeita dos vícios e das virtudes do sistema dominante. Os vícios são muitos. Deixo à imaginação do leitor o trabalho de enunciar o elenco. De resto, neste momento o establishment nativo se encarrega do conhecido esporte praticado com os pés, na boa tradição das habilidades brasileiras: o chute ao cadáver. Os barões do pedaço e seus lacaios preparam requintados pontapés na carcaça de quem, enfim, serviu tão bem a seus interesses e apetites.

No Brasil de hoje, uma lógica fatal contamina as instâncias decisivas da vida social e política. O sistema partidário e o financiamento das campanhas eleitorais parecem ter sido engendrados com o propósito de transformar o Congresso num mercado de balcão: os gritos de “compro” e “vendo” tornam ridícula a hipocrisia dos discursos tonitruantes do senador Demóstenes. O arbítrio, o favorecimento, o segredo, a obscuridade, o nepotismo são os demônios da República. Pois os curupiras da Pátria Amada estão aí, livres e folgazões, gargalhando sobre as nossas incríveis angústias.

O povo, entre perplexo e cada vez mais desencantado, contempla o espetáculo da mudança sem esperança, ou como dizia um crítico de Adorno, “a realização das esperanças do passado”. Assim os senhores da terra concebem o progresso.

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Fonte: CartaCapital