Mais do que ódio em relação à pessoa do ex-presidente e ao que ele representa, um cidadão originado dos setores excluídos de nossa sociedade que chega a liderá-la como presidente eleito e reeleito e, o que é pior para a ignorância de nossas elites conservadoras, por um dos governos mais competentes de nossa história no que toca ao desenvolvimento econômico, inclusão social e independência e valorização nacional no plano da política externa, o que vimos foi um movimento também de ódio ao serviço público, manifestado por aqueles que têm a ilusão de dele não depender, por conta de sua situação social mais abastada que a da maioria da população.

O SUS, serviço efetivamente carente em termos de qualidade desejável de serviços, por conta de falta de verbas, excessos burocráticos, corrupção e pelo comportamento parasitário de parte de seus agentes, também conta com núcleos de excelência, alguns dos quais, inclusive, foram recentemente objeto de tentativa de inconstitucional apropriação privada por iniciativa do governo do Estado de São Paulo, sobre o que já tratei em coluna anterior, através da malfadada iniciativa da chamada “dupla-porta” de acesso. Ora, se tudo no serviço público de saúde é tão ruim, para que a dupla-porta de acesso?

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Em verdade, o ocorrido é sintoma mais raivoso e desprezível de um sentimento complexo e mais profundo que acomete setores da sociedade e do público. De um lado, pela ineficiência de muitos de nossos serviços públicos e atividades estatais e, de outro, pela influência ideológica da chamada onda “neoliberal” ou “neoconservadora”, como me parece mais adequado alcunhar, formou-se um inegável preconceito contra a função pública em suas diversas dimensões, inclusive seus agentes.

Há uma crença em nossos setores médios de que o Estado funciona mal em seus serviços por conta das regras e da forma burocrática de sua atuação, além do suposto parasitismo de seus agentes e servidores, que não se veem exigidos em sua atuação funcional com o rigor disciplinar que deveriam.

Como solução mágica, de formas diferentes, ao menos desde o exórdio de nossa história republicana, se tentaram mecanismos de mudança nos ritos e formas administrativas do Estado, sempre conduzidas por luminares tecnocráticos, criadores de “inovadoras” propostas de gestão estatal, sempre sob o discurso de distanciar as atividades públicas do ambiente político, visto como lugar único da corrupção, dos desmandos e do compadrio. Em geral, sempre modelos criados à luz da experiência europeia ou do primeiro mundo, sob evidente perspectiva colonizada e com total desprezo por nossas experiências históricas próprias.

O velho jargão da eurodescendência tupiniquim, de que o tudo que é brasileiro por natureza é ruim, ineficiente, produto de uma miscigenação degeneradora da capacidade de trabalho de nosso povo.

O interessante é que nessas propostas históricas de gestão estatal é vista como algo monolítico, como se ineficiência, imoralidade e injustiça social fossem atributos do político como dimensão humana e não de formações políticas específicas e cambiáveis por nossas ações.

Evidente a mentalidade de infantilização da cidadania por parte de nossa elite intelectual e bem-pensante e de consequente apropriação de decisões que deveriam ser públicas e cidadãs por titulares de qualidades técnicas e profissionais, na crença que o “técnico” é imparcial, apolítico etc e que atribui ao detentor de tal conhecimento o condão não apenas do saber científico específico para o qual estudou, mas uma mística capacidade de definir o justo, o feliz, o adequado à vida social e íntima.

Decisões públicas como, por exemplo, política tarifária e universalização de serviços, nessa perspectiva tecnocrática, estariam mais protegidas da corrupção e dos desvios e dos males da política se formuladas por técnicos apolíticos e divinamente intangíveis por interesses menores. Gente que cheira melhor que os políticos, considerados todos como iguais na representação do pior da humanidade, a par da plebe ignara e incapaz que os elege.

De formas diferentes esta perspectiva tecnocrática esteve presente nas diversas reformas administrativas ocorridas no país. Na fundação do DASP em 1938, durante ditadura populista de Getúlio Vargas, e com postura nitidamente privatizante nas reformas de 1967 capitaneadas por Roberto Campos e na da “administração gerencial” do governo FHC, a qual foi dada continuidade no governo Lula.

Do DASP getulista, guardamos discursos republicanos em meio a práticas autoritárias e de compadrio, inobstante avanços nas formas legais de admissão de pessoal e de contratação pública.

Da reforma de 1967, ficamos com a praga que foi a contratação por CLT de servidores públicos por todo o país (forma “privada” e empresarial de relação com os servidores), em todas as esferas da Federação, sem concurso ou formas isonômicas de seleção e que até hoje, de forma silenciosa, mas intensa, cobra sua conta do patrimônio público. No mesmo período, surgem estatais gigantescas adotando formas próprias de empresas privadas, com regras e normas que a estas procuravam se assemelhar, algumas das quais eficientes e produtivas, mas em sua maioria verdadeiros dinossauros, poços de ineficiência, corrupção e compadrio, em geral, então dirigidas por militares de alta patente reformados.

Das reformas de FHC, ainda falta a exata descrição histórica dos danos que ocasionou aos serviços públicos no país. Sob o pretexto de acompanhar a então moderna onda neoliberal de privatizações de serviços públicos, entregou a grupos privados – alguns desses consórcios entre corporações privadas e fundos estatais de pensão, comandados por pequenos acionistas que pouco investiram de seu capital próprio, mas ligados politicamente a forças governamentais – a gestão dos principais serviços de infraestrutura do país.

Não o fez, diga-se, apenas por decisão política própria, mas como condição para recebimento de financiamentos e recursos do exterior, condicionados que estavam a estimular o assédio dos serviços públicos pela iniciativa privada em todo o globo, por conta de decisões multilaterais de Estados e grandes corporações financeiras, como o Consenso de Washington e quetais.

Para tanto, produziu uma legislação que, a exemplo do já feito em 1967, introduziu formas “privadas” de gestão pública, enfraquecendo o papel do Estado como poder concedente, atribuindo inconstitucionalmente formas contratuais privadas a serviços estatais e públicos etc.

O governo Lula, por conta da pressão dos mercados, manteve e deu asas à continuidade dessa política. A sociedade ainda hoje prefere cobrar de Lula e de seu governo o caso do “mensalão”, de proporção nitidamente inferior em termos de agressão aos interesses nacionais, como o grande erro de seu governo. Sua omissão no tema dos serviços públicos certamente mais danos ocasiona e ocasionará ao país.

Como resultado da política tecnocrática-privatista de FHC nos serviços públicos, temos hoje, de forma não comentada pela mídia, serviços de infraestrutura que figuram entre os mais caros e ineficientes do planeta, o que significa inequívoco fator de impedimento ao pleno desenvolvimento de nossas forças produtivas.

Tal fato, por óbvio, deve ser atribuído à ineficiência das agências reguladoras como forma de cura do interesse público e das formas contratuais privadas adotadas pelo sistema, que submetem, de forma inconstitucional, as atividades públicas de interesse coletivo ao domínio dos interesses privados e corporativos.

E o pior é que tramitam hoje no Congresso projetos de lei de autoria do Executivo que dão continuidade a essa perspectiva administrativa nociva aos interesses nacionais, com o silêncio obsequioso de nossos meios de comunicação.

A discussão moralista sobre o escândalo do dia encobre o debate sobre a verdadeira corrupção sistêmica que se instaurou e se mantém no país e cujas mais pesadas faturas incidentes sobre nosso desenvolvimento ainda não foram pagas, mas o serão, à nossa custa como cidadania.

Os governos recentes, desde FHC, preferiram investir, muitas vezes de forma bem intencionada, mas não por isso menos perniciosa, em buscar eficiência nos serviços públicos pela mudança de sua forma de gerência, aproximando-a de formas privadas de gestão.

O efeito mais evidente disso é a o default democrático e a perda de valores republicanos que representa. Avenças sem licitação, OSCIPs e ONGs hospedeiras de quadrilhas, agências reguladoras que mais defendem prestadoras de serviços que o interesse público, culpados e ocasionalmente inocentes presos, análises midiáticas pseudo-moralizadoras e redutoras dos problemas atinentes. O efeito mais sentido, mas pouco comentado, é o altíssimo custo tarifário dos serviços e sua má prestação em termos de qualidade técnica.

E a mídia que informa mal, não por razões de mera incompetência, ajuda a criar a mentalidade que o grande responsável por tais mazelas é o servidor público e as formas republicanas de funcionamento do Estado. A função pública, realizada por regras próprias de um Estado democrático e social de Direito, é posta como a responsável por mazelas, em verdade, no mais das vezes, criadas pela adoção de métodos estranhos a tais valores em suas formas de realização e prestação.

Ineficiência e corrupção não são características próprias do Estado, mas sim males que afligem qualquer organização humana, inclusive empresas privadas. A corrupção no interior da iniciativa privada, que muitas vezes onera tarifas pagas pelo público e afeta preços de produtos muitas vezes essenciais, é algo de pouco debate, pouca divulgação, portanto, de pouca percepção pela sociedade, mas não é de ocorrência inusual nem rara.

A ineficiência privada pode ser comprovada agora pelo leitor: ligue para algum serviço telefônico de atendimento ao consumidor de alguma grande empresa e veja o resultado…

A meu ver, eficiência se obtém não apenas pelas normas jurídicas que regulam a atividade, seja pública ou privada, embora estas também sejam muito relevantes, mas também pelo tamanho da organização humana em questão. Quanto menor a organização, mais eficiente. O mercado capitalista, atento a isso, criou formas de diminuir as organizações, exercendo suas formas de gestão mais em rede de pequenas unidades que em grandes estruturas centralizadas, como é o caso do franchising e outros métodos de descentralização.

Certamente, qualquer caminho de solução para os nossos serviços públicos, em vez da adoção de métodos centralizados e privatistas que comprometem valores republicanos e democráticos, terá de adotar formas descentralizadas de prestação como um de seus aspectos fundamentais. Temos de ampliar a esfera de poder e competência de nossos municípios.

Este é um debate que nunca foi travado da forma merecida no país. Municipalismo foi sempre bandeira e discurso e nada em termos de realização. Obviamente, por não interessar nem ao chamado “mercado”, nem aos partidos e grupos dominantes da cena política.

Cabe observar que algo comum à maioria das nações mais desenvolvidas do planeta é o fato de prestarem a maior parte de seus serviços de forma local. A gestão local está mais perto do “olho do dono”, no caso, a cidadania e a comunidade. Não está longe, isolada no planalto central, entregue apenas a suas tecnocracias e lobistas.

Em muitos países, até atividades estruturantes do Estado, como a jurisdição e a segurança pública, são realizadas localmente. Nosso país teve no município sua primeira forma de organização política concreta. É um dos únicos do mundo em que o município tem status de ente federado, em homenagem mais às nossas tradições que ao verdadeiro plexo de atribuições que lhe foi outorgado.

Eficiência nas atividades estatais só se conquista pelo controle real da sociedade sobre os serviços e funções públicas. E tal controle é mais facilmente realizado na localidade onde a cidadania vive e convive: a cidade.

 

Fonte: CartaCapital