No dia 11 de setembro de 2001 eu me encontrava na Bolívia. Estava no país como correspondente do jornal Página/12, de Buenos Aires, e há algum tempo colaborava no suplemento dominical do jornal La Prensa, de La Paz, onde escrevia artigos investigativos e, de vez em quando, comentava a “foto da semana”. No domingo seguinte ao atentado, a editoria do suplemento, a jornalista boliviana Inga Llorenti, escolheu uma foto muito especial para comentar: nela se via um grupo de norteamericanos manifestando sua indignação com cartazes que diziam: “Por que contra nós?” “Por que nos odeiam?”.

Inga pediu-me que comentasse a foto. Então lembrei, nas breves linhas que permitia o texto, os motivos do ódio. Comecei por esse outro 11 de setembro emblemático, o do Chile em 1973; lembrei os 30 mil desaparecidos da ditadura pró-EUA na Argentina, fiz menção ao Vietnã e a Coreia, rememorei a primeira Guerra do Golfo, os massacres na Guatemala, a guerra contra a revolução na Nicarágua, as injustiças com a Palestina e as tantas invasões dos Estados Unidos na América Latina durante o século XX.

Poucos dias depois, o telefone soou inclemente na redação do diário. Era “a Embaixada” (na Bolívia, naquela época, se escrevia com “E” maiúsculo e tamanho era seu poder que não era preciso acrescentar o nome do país para entender a mensagem). Mais precisamente: era o departamento de imprensa da “Embaixada” que me convidava cordialmente para tomar um café em um hotel central de cinco estrelas. Aceitei e antes de ir comentei o encontro com o chefe de redação, Marcos Zalaya, que achou aquilo um pouco estranho: “Se eu fosse você não iria”, me disse. “Se estivesse tudo bem, te convidariam aos seus próprios escritórios. Por que em um hotel?”

Quando cheguei à reunião, meus anfitriões já estavam me esperando. Eram duas mulheres, na verdade. Uma delas, estadunidense – minha memória perdeu seu nome -, era a chefe de imprensa da delegação diplomática. A outra era sua assistente, uma desconhecida jornalista boliviana com aparência de recém formada em uma universidade privada e que jamais havia pisado o solo de uma redação. Depois das saudações de cortesia, me jogaram o morto na cara sem muito preâmbulo: “Você acredita que Bin Laden é como Che Guevara?” – disparou a chefe de imprensa, quanto segurava a taça de café com delicadeza digna de Marcel Proust.

“Perdão?” – foi a única coisa que me veio a mente, totalmente surpreso pelo inaudito da pergunta. “Se acredita que Bin Laden é como um guerrilheiro justiceiro…pergunto pelo que escreveu domingo debaixo da foto. Parece que estava justificando os ataques”. “Não senhora”, respondi, bastante indignado por toda aquela situação, “simplesmente estava respondendo a pergunta feita pelos manifestantes. Eles querem saber por que são odiados. E como tenho percebido que a imensa maioria dos estadunidenses não sabe muito bem o que ocorreu no mundo no último século, procurei lembrá-los do que ocorreu. Não estou justificando nada”.

A mulher não ficou convencida com meus argumentos e contra-atacou. “É injusto”, atirou, “saiba que estamos muito ofendidos por seu comentário”. Ia responder-lhe, mas sua lacaia boliviana se interpôs no caminho. Pegou uma pasta onde havia uma pilha de fotocópias com meus artigos dos últimos meses e sem muita diplomacia argumentou: “Sabemos que você é alguém que escreve contra os interesses da Embaixada. Critica a luta contra o narcotráfico, denuncia a incursão de forças dos EUA em território boliviano, não está de acordo com os transgênicos…”. “Isso, isso!”, acrescentou exaltada a chefe de imprensa. “Como você pode ser contra os transgênicos que vão acabar com a fome no mundo?”.

A essa altura, minha paciência tinha se esgotado. Sem acabar meu café, decidi que tinha chegado a hora de colocar um ponto final na reunião. “Com todo o respeito”, disse às mulheres enquanto me levantava da mesa, “não tenho por que aguentar que vocês questionem meu trabalho e muito menos desta maneira tão…informal. Se publiquei algo que consideram falso, tudo o que têm que fazer é entrar em contato com o diretor do jornal ou pedir direito de resposta e com prazer levarei em conta suas opiniões e a informação que me forneçam”. Dito isso, me levantei e fui embora.

No caminho me dei conta do que havia ocorrido e senti um pouco de temor. A Embaixada estava pressionando, da pior maneira, os jornalistas críticos. Entrei em contato com o direito do sindicato e comprovei que não tinha sido o único convidado a “tomar um café”. Em poucos dias, soube-se que a ordem havia partido do próprio Departamento de Estado e que tinha sido executada em vários países no decorrer daquela semana. Meu jornal não quis jogar lenha na fogueira e não publicou a história. Mas algumas publicações mais à esquerda o fizeram. Os Estados Unidos jamais se desculparam pelo atropelo. Afinal de contas, tudo não tinha passado de uma conversa com um café no saguão de um hotel elegante.

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Jornalista, correspondente na Espanha do jornal Página/12, da Argentina, do Il Manifesto, da Itália, e de El Observador Global, portal de informação internacional latinoamericano. Colaborador do suplemento dominical do jornal Milênio, do México; da revista Arcadia, Colômbia e da revista Gatopardo, México.

Fonte: Carta Maior

Tradução: Katarina Peixoto