Há algo em comum entre a Primavera Árabe e os protestos na terra da rainha. Ambos são, de formas diferentes, produto da crise econômico-financeira que sangra o Estado social desde 2008. As mazelas sociais do neoliberalismo surgem nas ruas na forma de frustração e revolta face à incerta perspectiva de futuro.

Os distúrbios ocorridos em Londres e outras cidades inglesas no início de agosto não foram protagonizados por criminosos comuns, como pretendem as autoridades ao tentar escapar da complexidade das análises sociológicas. Os envolvidos nas turbulências não eram apenas imigrantes, negros, pobres e excluídos. Trata-se, ao contrário, de uma multidão de frustrados, incluindo estudantes universitários, professores, jovens, desempregados.

A origem dos conflitos está no assassinato de um jovem negro, pela polícia britânica, em Tottenham, uma das regiões mais pobres de Londres. Os protestos, que aparentavam contornos de tensão étnica em um bairro desfavorecido, tiveram suas feições transformadas quando se verificou, além dos enfrentamentos com a polícia, a onda de saques na busca por produtos de grifes famosas e eletrônicos. A tentativa de simplesmente criminalizar o problema pretendeu escapar da discussão de questões ligadas à desigualdade social, à crise econômica, ao desemprego, ao enfraquecimento do Estado, à frustração de não ter acesso ao insustentável padrão de consumo de bens supérfluos, característica do capitalismo.

Aqueles que se sentem excluídos do contexto social em que vivem, mediante sentimentos de privação e desempoderamento, de fato afrouxam os laços sociais. O pano de fundo dos distúrbios consiste no mais drástico programa de corte orçamentário da União Europeia, adotado pelo governo de David Cameron, impondo que os impactos da crise econômica e os sacrifícios dela decorrentes sejam desproporcionalmente distribuídos. Ao mesmo tempo em que promove o desmantelamento do Estado social, o governo britânico paga a conta dos bancos responsáveis pela crise de 2008, os verdadeiros promotores do colapso no sistema financeiro internacional.

Paralelamente, no maior campo de refugiados de Mogadício, capital da Somália, que abriga mais de trinta mil refugiados internos, a debilidade física decorrente da desnutrição faz com que, na maior parte do tempo, o choro das crianças seja silenciado. Mergulhada na mais brutal seca dos últimos sessenta anos, a região do chifre da África reproduz a tragédia de meados da década de oitenta, quando fotos de crianças etíopes esqueléticas chocaram o mundo. À seca na Somália, somam-se vinte anos de conflito armado e dificuldade de acesso das organizações internacionais.

A maior parte do sul do país está sob controle do grupo islâmico radical Al-Shabaab, vinculado à rede terrorista Al-Qaeda, e que combate o Governo Federal de Transição da Somália, apoiado pela comunidade internacional, para instaurar um estado muçulmano na região.

Na Europa, que sempre esteve na vanguarda do desenvolvimento econômico, científico e tecnológico, não se trata de miseráveis desnutridos ou de minorias desprovidas de direitos, mas de cidadãos ávidos pela inclusão no acesso às oportunidades e na distribuição da riqueza saqueados pelos especuladores financeiros. No chifre da África, o continente mais explorado, saqueado e injustiçado da história, além dos alimentos e medicamentos que ingressam no país como ajuda humanitária, sequer há riqueza a ser distribuída. A maioria dos refugiados somalis que se deslocam até os acampamentos de Mogadíscio, do Quênia e da Etiópia chegam lá arrastados pela fome e pela mais absoluta degradação humana.

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Doutora em Direito Internacional pela USP e Professora da UniBrasil e da UniCuritiba.

Fonte: Carta Maior