Oswald de Andrade, em retrato pintado por Tarsila do Amaral: sua antropofagia é vista hoje como um conceito, na esfera ideológica, que atualiza a questão da globalização

O livro, segundo o poeta concretista Haroldo de Campos, representa "o verdadeiro 'marco zero' da prosa brasileira contemporânea, no que tem de inventivo e criativo". Mesmo assim, houve apenas uma edição ao longo da vida do autor, que morreu em 1954, esquecido e empobrecido, embora tivesse herdado do pai uma das maiores fortunas de São Paulo. A pergunta de Penumbra, no entanto, voltará a ecoar nas discussões da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que, em sua nona edição, entre os dias 6 e 10 de julho, presta homenagem ao herói modernista. A festa renova o desafio: será Oswald, o autor do "Manifesto Antropófago" de 1928, na realidade um brasileiro do século XXI?

Antonieta Marília de Andrade, filha do escritor, não tem dúvida de que Oswald estava à frente do seu tempo. Quando criança, lembra-se de vê-lo muito isolado. O convite da Flip a pegou de surpresa. "Fiquei muito emocionada." Entre os escritores já homenageados no evento (Machado de Assis, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, por exemplo), Oswald continua, possivelmente, a ser o menos conhecido de um público mais amplo. Apesar de ser celebrado em círculos intelectuais há muitos anos – especialmente a partir da histórica montagem de "O Rei da Vela", uma de suas peças, realizada em 1967 por José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina. O diretor foi convidado para ir a Paraty este ano, mas sua participação ainda não foi confirmada. O novo curador da programação da Flip, jornalista Manuel da Costa Pinto, observa: "É a oportunidade de iluminar a obra de um autor que ainda apresenta aspectos inexplorados. Depois de uma absoluta centralidade, entre as décadas de 1920 e 1940, ele acabou obscurecido e foi resgatado sobretudo pelo Zé Celso. Oswald foi muito importante para a poesia concreta, a Tropicália e o Cinema Novo. Mas, dos homenageados até o momento na Flip, é aquele com mais fios a serem atados. Nós o escolhemos porque sua obra é muito aberta".

Não apenas por causa da Flip, 2011 promete ser um ano importante para Oswald. Logo depois do evento, também em julho, o Museu da Língua Portuguesa vai inaugurar uma exposição sobre o autor. Um dos curadores da mostra é o músico José Miguel Wisnik, professor de literatura da Universidade de São Paulo (USP). Conectando os dois eventos, Wisnik foi convidado para abrir os debates na Flip e voltará à festa literária pela quarta vez, nesta edição, provavelmente acompanhando Antonio Candido. Embora raramente participe de debates públicos hoje, o crítico teria aceitado abrir uma exceção para homenagear seu grande amigo. Segundo Marília de Andrade, Candido foi um dos poucos que se mantiveram fiéis a seu pai até o fim. Costa Pinto diz que será "um sonho" se ele de fato participar da abertura.

"Este é um momento novo de releitura de Oswald", assinala Wisnik, escalado ainda para realizar o show de abertura da Flip, com o espetáculo Zé & Celso. No repertório, há canções criadas por ele em parceria com Celso Sim para o Teatro Oficina.


Oswald de Andrade, na época de projeção plena na vida intelectual brasileira: viriam depois tempos de obscuridade, antes de seu nome tornar-se importante para a poesia, a Tropicália e o Cinema Novo

Na Flip, haverá outra exposição sobre Oswald, onde será possível ver, além de fotografias, a primeira edição de obras como "Pau-Brasil", lançada com desenhos e capa da pintora Tarsila do Amaral, com quem o autor foi casado nos anos 1920. Haverá dois núcleos na exposição: um organizado pela Flip e outro, pela Casa Guilherme de Almeida, que destacará a relação de Almeida com Oswald. Depois da Flip, todo esse conjunto poderá ser visto na própria Casa Guilherme de Almeida, que, em parceria com o Museu da Língua Portuguesa, formará o circuito Oswald de Andrade de exposição em São Paulo. "É o primeiro paulista a inspirar uma exposição no museu. Sua obra tem caráter revolucionário, com grande contribuição para o português falado no Brasil", diz o diretor-executivo da instituição, Antônio Carlos Sartini.
A visualidade dos livros de Oswald chamou a atenção dos poetas concretistas no período de resgate de sua obra. Haroldo de Campos lamentava não ser possível reproduzir essa característica nas tiragens comerciais. E não se tratava apenas de beleza. "A poesia de Oswald de Andrade põe um novo conceito de livro", escreveu ele na introdução de "Pau-Brasil". Sua obra, diz Haroldo, "apontava para o futuro" – que se concretiza hoje por meio dos artefatos eletrônicos. Também para a mostra na Flip, o Instituto Moreira Salles (IMS) prepara um fac-símile virtual com partes do diário de "garçonnière" de Oswald, "O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo", que poderá ser folheado no local.

A homenagem da Flip, porém, não deve eliminar a controvérsia em torno do nome do escritor, que, muito à maneira de Oswald, poderá até ser aguçada com o debate. Um dos líderes, com Mário de Andrade, da Semana de Arte Moderna de 1922, o autor continua a provocar divergência. A diferença é o enfoque, pois as primeiras análises, muitas ainda importantes, esbarravam no impacto causado por sua personalidade. O amigo Mário escreveu que "Osvaldo", "o mais curioso talvez dos modernistas brasileiros", vivia "entregando a alma como distribuidor de anúncios" e possuía "duas das maiores riquezas do artista: fé criadora e dom de divertir". Oswald era principalmente o "blagueur", tido como o "clown". Teve diferentes mulheres, quatro filhos, muitos inimigos e amigos. Viveu intensamente distintas fases criativas.

"Atualmente se lê a obra dele com muito menos rejeição. Não é fácil, devido à elaboração, mas é instigante. Oswald tinha senso enorme de autocrítica. Isso lhe custou muitas antipatias. Era polêmico, sempre capaz de se superar. E foi um renovador, como no seu pensamento sobre a dependência colonial e o lugar do Brasil no mundo", afirma o professor da USP Jorge Schwartz, coordenador da publicação das obras do autor pela editora Globo.

Serão lançados três livros pela editora em Paraty. "A Alegria é a Prova dos Nove" – título que é uma frase do "Manifesto Antropófago" -, tem introdução e organização do escritor Luiz Ruffato, com ditos de Oswald sobre questões como modernismo e comunismo. "Não se trata apenas de um livro de frases, pois isso soaria como autoajuda, mas de uma antologia para mostrar como suas ideias mudaram ao longo do tempo", explica Ruffato. "Sempre gostei muito do Oswald, grande influência para mim, mas terminei esse trabalho admirando-o muito mais. Antes, eu o via como um homem conflituoso, mas observei que é sempre de uma coerência absurda. Vivenciou profundamente a sua realidade. Quando se envolveu com o Partido Comunista [nos anos 1930], ele o fez apaixonadamente, e o mesmo se deu quando rompeu com o partido. Oswald não tinha medo de mudar. Sempre se posicionou contra o autoritarismo na política, contra a hipocrisia nas relações sociais e contra a mediocridade nas artes."

Os outros dois livros a serem publicados pela Globo integram a reedição da sua obra completa: "Estética e Política" e "A Utopia Antropofágica", no qual se inclui a tese "A Crise da Filosofia Messiânica", que Oswald escreveu tendo em mente um concurso para professor da USP. Segundo Schwartz, "o mais renovador atualmente na análise de Oswald é a esfera ideológica da antropofagia, que atualiza a questão da globalização".

A discussão sobre a globalização está presente em outro lançamento da Flip, o volume "Antropofagia Hoje? Oswald de Andrade em Cena" (Editora É), com quase mil páginas, organizado por João Cezar de Castro Rocha, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Publicado inicialmente nos Estados Unidos, em 1999, o livro reúne textos de estrangeiros sobre a antropofagia oswaldiana. Será editado aqui pela primeira vez, acrescido de artigos de brasileiros.

"Quando fazia meu doutorado na Universidade de Stanford, em 1998, enviei o 'Manifesto da Poesia Pau-Brasil' e o 'Manifesto Antropófago', além de material bibliográfico sobre o modernismo, para especialistas em literatura, de diferentes países, que não conheciam Oswald. Sugeri que, se lessem o conjunto e quisessem escrever a respeito, eu os publicaria. O resultado foi incrível. Não teria sido uma escolha natural para eles, mas produziram textos muito interessantes, a partir de uma perspectiva que não é a nossa", conta Castro Rocha, convidado da programação oficial da Flip.

A experiência permitiu ao professor pensar a antropofagia além do nacionalismo. A visão mais difundida é aquela que a define como uma metáfora do brasileiro, formada pela deglutição de influências variadas, que podem ser assimiladas ou rejeitadas. No ritual ameríndio, come-se o inimigo para absorver suas qualidades. Na coletânea que publica na Flip, Castro Rocha sugere outra leitura. Para o professor, não se deve mais pensar a antropofagia como intrínseca ao brasileiro, haja vista o sucesso que a ideia faz lá fora. "A bibliografia sobre a antropofagia cresceu muitos no exterior nos últimos 20 anos. Isso, porque oferece uma alternativa teórica para pensar o mundo globalizado, onde pessoas e mercadorias transitam o tempo todo."

No "Manifesto Antropófago", Oswald escreve: "Tupi or not tupi that is the question./ Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos./ Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago".

Segundo Castro Rocha, o gesto antropofágico, em direção ao outro, não permite a definição de uma identidade. Seria sobretudo uma técnica, ou um procedimento cultural, para assimilar o outro e a alteridade. "O antropófago é um sujeito à deriva, mas com uma imensa alegria de se saber assim, porque, como dizia Oswald, a alegria é a prova dos nove", destaca o professor, que vê o escritor como "um sujeito contemporâneo, cibernético, com imensa capacidade de processar dados".

A professora da USP Maria Augusta Fonseca, autora de "Oswald de Andrade – Biografia" (Editora Globo), entre outros livros a respeito do autor, lembra que suas ideias sempre inspiraram "uma questão viva, uma provocação". Não era homem de gabinete: "Seu pensamento era dinâmico, trazia uma inquietação que se expressava na poesia, no romance, no teatro, no jornalismo, no ensaísmo".

Em sua opinião, o escritor tocou em pontos frágeis do Brasil: "O modernismo não foi superado. Nesse sentido, é importante voltar à obra de Oswald e à sua interpretação do país, que é riquíssima e ainda pode estimular muita reflexão. Ele foi um pioneiro no entendimento do Brasil como mistura, algo bastante contemporâneo. Essa consciência da diferença é forte em todo o modernismo e, claro, também no Mário de Andrade". A antropofagia, acredita a professora, continua uma "metáfora brilhante" e vital para a percepção da identidade brasileira.

No entanto, por ser uma "imagem tão forte", e aparentemente fácil, seria usada em excesso. "Corre-se o risco de apropriações indébitas." Se Oswald era um homem à frente do seu tempo, continua a sê-lo, inclusive no estilo, como diz Maria Augusta: "Sua vivacidade e seu requinte no uso da língua estão à frente, ainda, de muitos trabalhos no século XXI".

"O desafio de trabalhar com a obra de Oswald é imenso", completa o poeta e professor Eduardo Sterzi, outro convidado da Flip, autor de "A Prova dos Nove – Alguma Poesia Moderna e a Tarefa da Alegria" (Editora Lumme), em que há um ensaio sobre a alegria em Oswald. "Antonio Candido dizia que, pelas rasteiras que ele dava nos críticos do seu tempo, era de se imaginar quais não daria nos críticos do futuro."

Sterzi se inspira em referências como a do poeta Augusto de Campos e, mais recentemente, a do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro para destacar a força do escritor. Na opinião de Campos, a antropofagia seria "a única filosofia original brasileira". Já Viveiros de Castro a considera "a reflexão metacultural mais original produzida na América Latina", "a única contribuição realmente anticolonialista que geramos". Se Mário teria sido "o grande inventariante da diversidade, Oswald foi o grande teórico da multiplicidade", afirmou numa longa entrevista publicada em livro pela Editora Azougue.

"A alegria em Oswald é composta também de destruição. Não é uma alegria acomodada, apaziguadora. Ao contrário, opõe-se ao que ele via como errado. É sobretudo uma alegria política", define Sterzi, para quem Oswald reflete em toda sua obra sobre a história do Brasil. "Quando se fala que o brasileiro é um povo alegre, trata-se de uma visão conformista, conciliadora. Mas Oswald inverte esse clichê. A boca que ri é também a boca que devora. E devorar, na antropofagia, é transformar."

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Memórias sentimentais de Antonieta Marília de Andrade


Oswald, Maria Antonieta e os filhos Paulo Marcos e Antonieta Marilia. Na Flip, ela vai falar sobre momentos da convivência com o pai

Tomar decisões acerca da obra de Oswald de Andrade não é simples, pois envolve diferentes advogados. Seu inventário, arquivado em 1970, foi reaberto há alguns anos e, desde 2009, com a morte de Rudá – filho de Oswald com Patricia Galvão, a Pagu – Antonieta Marília de Andrade tornou-se a inventariante. Há cerca de 200 solicitações para uso da obra de Oswald aguardando resposta. A homenagem na Flip só foi possível porque Marília contratou caros advogados para obter, com prontidão, a autorização do juiz. O mesmo precisou fazer em relação à exposição no Museu da Língua Portuguesa, prevista para julho. "Mas não consigo fazer isso para todos os pedidos", diz a filha de Oswald, que não conta com o dinheiro dos direitos autorais, depositado em juízo enquanto não se encerra o inventário, 57 anos depois da morte do autor.

Ao todo, Oswald teve quatro filhos, sendo Marília a única mulher. Além de bailarina, é estudiosa da dança. E foi por meio do pai, que morreu quando ela tinha 8 anos, que trilhou o caminho artístico. O próprio Oswald a levou para ter aulas de balé quando Marília tinha 4 anos. Certamente não era à toa, mas ela ainda não sabia: das namoradas do escritor, uma de suas maiores paixões foi a bailarina Landa Kosbach, que conheceu em 1912, aos 22 anos, numa viagem de navio à Europa. Ele chegou a cometer uma gafe, como reconheceria, ao comentar sobre Landa com Isadora Duncan, que, numa visita ao Brasil na mesma década, o convidou para jantar. Tornaram-se amigos, e Oswald conta que Isadora dançou para ele quase nua, no pôr-do-sol.

"Isadora e meu pai eram duas pessoas muito à frente do seu tempo", afirma Marília. Até os anos 1980, porém, não conhecia muito sobre Isadora, quando recebeu um convite do editor Luiz Schwarcz, então na Brasiliense, sugerindo-lhe que escrevesse um livro sobre ela. Como ia passar uma temporada nos Estados Unidos, aceitou. Teria tempo e possibilidade de se aprofundar no estudo da artista. Mas o encontro revelou-se tão intenso, que Marília não conseguiu concluir o livro na época. Foi além: tornou-se uma autoridade sobre a bailarina. Nos anos 1990, levou coreografias originais de Isadora para a Europa, dançando no papel que fora dela.

"Quando os amigos precisavam, Oswald nunca hesitava em ajudá-los, dando-lhes terrenos. Acabou perdendo tudo", conta filha do escritor

Em 1984, havia recebido convite para montar o curso de dança da Unicamp, onde deu aulas até se aposentar. E, por ser uma profissional da dança, sempre teve curiosidade em descobrir quem era Landa, cujo nome real mantinha-se um mistério. No fim dos anos 1980, uma pesquisadora da obra de Oswald solucionou o caso. Landa seria a bailarina Carmen Brandão. Marília teve então um choque: Carmen fora sua primeira professora de dança. Seu pai as havia apresentado. "Eu não poderia nunca suspeitar que a minha professora era a Landa, uma senhora quando eu a conheci. Fiz aula com ela até os 7 ou 8 anos."

Na exposição da Flip a respeito de Oswald, Marília vai contar, pela primeira vez, como foi seu encontro com Carmen-Landa depois dessa descoberta. Foram muitas as emoções que seu pai lhe reservou ao longo dos anos. Quando ainda não conhecia bem a obra de Oswald, Maria Antonieta d'Alkmin, sua mãe, sempre lhe dizia que ele era um grande escritor, dos maiores que o Brasil já teve. Mas não lhe parecia assim. Lembra-se de, na infância, sair de carro com os pais, por bairros nobres de São Paulo, à procura de terrenos ainda desocupados: anotavam a localização e conferiam a propriedade. As terras eram parte da herança de Oswald. "Chegamos de fato a encontrar um ótimo terreno, com o qual pagamos muitas dívidas. Quando os amigos precisavam, ele nunca hesitava em ajudá-los, dando-lhes terrenos. Acabou perdendo tudo."

O convite para a homenagem na Flip a pegou de surpresa. "Quando me telefonaram, a emoção foi muito grande", conta Marília, feliz também com a exposição no Museu da Língua Portuguesa. "Coincidência ou não, é muito bom ver esse novo movimento."

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Uma alma esquiva, procurando estar longe para estar perto


Manuel Bandeira (segundo à esq.) visita os organizadores da Semana de Arte Moderna, no Hotel Terminus, em São Paulo. Oswald está sentado no chão

José Castello

Mais de meio século depois de sua morte, em outubro de 1954, ainda hoje é difícil dizer onde, no grande mapa da cultura brasileira, está Oswald de Andrade. Mesmo seus contemporâneos não conseguiam localizá-lo com segurança. Ele dava saltos, escapava. Em Oswald, a distância era expressão de interesse e de proximidade. Estar longe para estar perto: eis sua estética. Já em 1956, Antonio Candido assinalava o papel da estratégia da distância na obra e na vida de Oswald. Escreveu: "A viagem era um meio de conhecer e sentir o Brasil, sempre presente, transfigurado pela distância". Suas duas ficções mais importantes, "Memórias Sentimentais de João Miramar" (1924) e "Serafim Ponte Grande" (1933), se desenrolam em torno do deslocamento entre dois mundos. Entre o Novo e o Velho Mundo, mas, sobretudo, entre dois tempos distintos da história. Foi um escritor aventureiro, com alma esquiva, a escorregar pelas frestas da história. Ainda hoje, quem o pega? Quem pode dizer onde está Oswald?
Uma filosofia do tempo está, sem dúvida, no centro de sua obra. Ela se expressa em seu interesse prioritário pela transição e pela mudança. Manifesta-se, ainda, no que o próprio Oswald chamava de "estilo telegráfico", em que o tempo lógico se quebra a favor de súbitas iluminações, mensagens ríspidas e cifradas, fortes explosões. Ninguém pode negar que Oswald foi um escritor explosivo – e isso se manifesta em seu gosto pelos fragmentos. Não foi, porém, na explosão que trabalhou, não era um incendiário. Trabalhava um segundo depois dela, naquele momento em que o mundo se desordena e, desordenado, expõe suas entranhas. Há, na obra de Oswald, uma forte agitação e deslocamento. Personagens e ideias movimentam-se com fúria, renovando suas identidades e fertilizando novos caminhos. Pode-se gostar, ou não, de Oswald. Pode-se reconhecer, ou não, sua grandeza como escritor. O que não se pode é lhe roubar a fúria.

Sim, 57 anos depois de sua morte, a literatura brasileira sente falta de alguém como ele. Não é o caso, como muitos acreditam, de santificá-lo e adorá-lo – até porque isso o anularia. Volto a Candido, que o viu como um autor dividido: de um lado, o escritor avançado e libertador de João Miramar e de Serafim; de outro, o autor "inesperadamente passadista, apesar da técnica", como assinala Candido com precisão, o autor da "Trilogia", e até da série inacabada "Marco Zero". Pode-se discordar, aqui e ali, do paradoxo proposto por Candido, ajeitar suas fronteiras, reagrupar alguns livros. Mas a divisão está aí. Na nossa cara e até hoje.

Uma filosofia do tempo está no centro de sua obra. Ela se expressa em seu interesse prioritário pela transição e pela mudança

Por que, aliás, negar a divisão, se é dela que Oswald retira não só sua aptidão para a mudança (que começa nele mesmo), mas também para o transe – visto aqui como o viu, muito depois, Glauber Rocha, isto é, como assassinato, mas também celebração? Não há dúvida de que Oswald foi mais provocador do que Mário de Andrade, embora Mário tenha mergulhado mais fundo nas coisas e seja, inegavelmente, um escritor maior. Ao contrário dele, Oswald agia como um patinador: deu voos rasantes na superfície da cultura, rasgou feridas e esgarçou as máscaras europeias que a recobriam, fez vibrar a paisagem monótona com o som estridente de seus manifestos. Oswald nunca esperava ser chamado: simplesmente entrava. Foi, também, um arrombador, que, sem cerimônia, estabeleceu conexões onde havia distância, experimentou elos onde vigoravam repulsas, e que se arriscou a romper inclusive com muitos dos laços – de amizade, de afinidade – que o sustentavam.

Já em seu romance de estreia, "Alma" (1922), Oswald incorpora a linguagem e as paisagens movediças do cotidiano, arrastando para dentro da ficção as cisões e incongruências do mundo. Há algum sentido, hoje, em pedir que Oswald seja coerente? Não foi um realista, tampouco um retratista, foi muito mais que isso: não se limitou a enquadrar e copiar realidade, ao contrário, arrastou o mundo para o interior da ficção, onde todos os significados se deformam, onde as conexões tradicionais entram em pane e na qual a tradição, em vez de manto, se torna uma placenta de que nos alimentamos. Sim, mais um Oswald: o devorador – vocação que o levou à antropofagia e à decisão de mastigar o presente, não para engoli-lo (e dele se apossar), mas para cuspi-lo na face maquiada dos senhores da arte.

Oswald mexeu no presente para buscar o futuro – e por isso escreveu que, "para os verdadeiros modernistas, o passado das nações ou dos indivíduos não conta". Olhava para a frente, feliz e obstinado, e por isso, como alguém que atravessa uma avenida sem dar atenção para os lados, foi tantas vezes atropelado pelas carruagens da incompreensão. Ainda hoje, pensando bem, continua a ser. Infelizmente, a tradição vanguardista congela Oswald numa espécie de "futuro eterno" – quando é bem mais útil vê-lo em um "futuro do passado", tempo verbal que indica um futuro que ocorre no passado, ou dizendo melhor, uma coisa que "poderia ter acontecido". Apesar de sua obra forte e de sua notável aptidão para a luta intelectual, o mais importante em Oswald talvez seja o conjunto dessas coisas que poderiam ter acontecido, mas não aconteceram. Não se lançou sobre o futuro como um cientista, mas como um artista. Não busca provas, ou efeitos, mas novas visões. Observar sua obra como um lamacento rascunho do futuro, e não como uma fria prospecção técnica, retira-o da posição de profeta, que não merece, e o lança naquele que é seu lugar: de homem inquieto, sempre pronto a se deslocar e a repuxar limites, sempre experimentando o gosto da dúvida.

Cultuar Oswald como profeta, venerá-lo no papel de grande timoneiro das vanguardas, é dele roubar aquilo que teve de mais marcante: a inquietação. Não se pode enquadrar alguém como Oswald. Até porque é muito difícil encontrar alguém como ele. Daí precisarmos hoje não de herdeiros fiéis de Oswald, ou de discípulos abnegados – já que a antropofagia não é uma religião -, mas sim de homens que, de outras posições, com outros argumentos e experimentando novas formas de rebeldia, lancem-se não no culto do legado oswaldiano (porque isso, mais que traí-lo, é empedrá-lo), mas na apropriação – libertária, feroz, não autorizada – de sua posição no mundo. Infelizmente, as vanguardas guardam fortes tendências religiosas, adotam uma linhagem e um sangue que não lhes pertencem, e, em vez de devorar seus mestres (como Oswald aconselha), os congelam. Mestres como Oswald não desejavam se converter em estátuas. Oswald queria, ao contrário, servir de alimento para o presente – aos muitos presentes que se sucedem em velocidade cada vez mais atordoante. Servir de combustível para novas explosões de ideias, e não de manto para a perpetuação de superstições intelectuais.

Dizia Oswald que o homem é o animal que vive entre dois grandes brinquedos: o amor onde ganha, a morte onde perde. A consciência dos extremos humanos, porém, em vez de elevá-lo para as esferas metafísicas, o jogou no meio da rua. Citando Nietzche, ele diz que "o habitat dos grandes problemas é a rua". Foi observando as ruas e nelas transitando que Oswald descobriu os restos da opressão colonial, apesar da República; os vestígios rançosos da catequese, que transforma o saber em pregação; o colonialismo cultural, que transforma – ainda hoje, como negar? – a fruição esperta do outro em submissão deprimente. Nada mais distante da estética oswaldiana, como já observou Leyla Perrone Moisés, do que "a nostalgia de uma idade do ouro". Pois é nessa idade do ouro que, hoje, muitos de seus seguidores, sinceros e apaixonados, insistem em detê-lo.

O que seria, hoje, tornar-se oswaldiano? Talvez, antes de tudo, devorar o próprio Oswald de Andrade. Nada de reverências, cultos, messianismos. Se, como diz Leyla, "Miramar" e "Serafim" "são a autobiografia sincopada de um burguês brasileiro dos anos 20", se são "o registro fiel de ritmo alucinado desses anos", experimentar uma posição oswaldiana seria, antes de tudo, afastar-se de Oswald para se perguntar o que seria ele diria e escreveria caso vivesse hoje. Sempre útil retornar à fórmula fundamental: "A Alegria é a Prova dos Nove". E a alegria, o que é? Ela está além dos protocolos e das expectativas, muito além do bom comportamento e do adequado. A alegria é o riso que explode – de novo a explosão -, é essa mistura, oswaldiana, da grandeza do Amor (sempre ao presente) com a certeza da Morte (já que futuro não haverá). Ser oswaldiano não é imitar Oswald. Imitar Oswald é matar Oswald. Se ele nos deixou uma mensagem que se perpetua, ela é simples assim: não ter medo de agarrar-se ao presente.

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Oswald: uma releitura


Capa de Tarsila do Amaral para "Pau Brasil", livro de poesias de Oswald de Andrade, publicado em 1925 em Paris, pela editora Au Sans Pareil. Exemplares dessa e outras obras de Oswald estarão em exposição durante a Flip

João Cezar de Castro Rocha

Renovar a leitura do "Manifesto Antropófago", publicado em 1928, exige um tratamento complexo das ideias de Oswald de Andrade, pois a canonização de sua obra tem dificultado a tarefa. Muito diferente de seus últimos anos de vida, passados em sofrido ostracismo, Oswald de Andrade alcançou o status reservado aos mitos: citado sem nenhuma parcimônia, mas, efetivamente, muito pouco lido.

Para a releitura que constitui o propósito de "Antropofagia Hoje? Oswald de Andrade em Cena", a seguinte hipótese parece necessária: o "Manifesto Antropófago" é pouco original, representando menos uma "criação" oswaldiana do que um autêntico gesto antropofágico de apropriação da atmosfera cultural dos anos 20 do século XX. Por isso, e sem intenção de alimentar falsas polêmicas, mas de estar à altura da potência do pensamento de Oswald de Andrade, acreditamos que para atualizar a leitura do "Manifesto Antropófago" é preciso desnacionalizá-lo e desoswaldianizá-lo. É preciso, sobretudo, realizar esses movimentos ao mesmo tempo, pois um implica o outro.

A intuição de Oswald nada tem a ver com a afirmação de uma hipotética originalidade de pensamento ou com a identificação de um imaginário caráter nacional. Recordemos que, segundo o próprio Oswald, a obra-prima antropofágica foi escrita por Mário de Andrade, "Macunaíma", cujo subtítulo vale por todo um ensaio: "O Herói Sem Nenhum Caráter". Isto é, o sujeito macunaímo-antropofágico inviabiliza qualquer pretensão ontológica. Muito pelo contrário, o vigor da antropofagia se relaciona com a capacidade de enriquecer-se através da assimilação do alheio.

A fim de compor sua teoria do canibalismo cultural, Oswald associou uma série de figurações do canibalismo com o passado colonial brasileiro, sistematizando-as na antropofagia. Na abordagem que proponho importa apontar o caráter propriamente nacional das formulações oswaldianas, mas desde que tal caráter não se limite exclusivamente à história intelectual brasileira, ou seja, à história do modernismo, pois a antropofagia oswaldiana possui um potencial reflexivo muito mais amplo.

De fato, desde a Primeira Guerra, a imagem do canibalismo retornou com força no cenário europeu. Tratava-se de uma forma de assimilar as consequências do conflito, visto como autêntico fratricídio. Em lugar de produzir riquezas e promover o bem-estar geral, a sociedade industrial multiplicou a produção de cadáveres, através da utilização bélica da tecnologia mais avançada. Pense-se, por exemplo, na metamorfose do avião em arma de guerra – circunstância que levou Santos Dumont a lamentar sua própria invenção!

Oswald de Andrade processou dados brutos produzidos na Europa e os sintetizou numa teoria cultural: a antropofagia

Impressionados pela temática, os intelectuais europeus reagiram tanto aos horrores da guerra quanto às pressões da sociedade industrial reciclando a metáfora do canibalismo. Em 1920, Francis Picabia publicou o "Manifesto Canibal Dada" e, no mesmo ano, circulou a revista "Cannibale". Porém, Picabia utilizou o termo "canibal" sobretudo pela conotação polêmica associada ao sacrifício, muito ao contrário do emprego sistemático inventado por Oswald de Andrade. Aliás, os casos de utilização da metáfora são inúmeros.

Em 1926, buscando uma imagem-síntese da desumanização das relações de trabalho, Fritz Lang, no filme "Metrópolis", imaginou uma fábrica cujo centro de produção se transformava numa enorme boca alimentada pelos corpos dos operários. Entre 1924 e 1927, Paul Valéry produziu uma série de reflexões sobre o problema da influência artística. Para o poeta, um "caso de estômago". Numa passagem ainda mais expressiva, Valéry notou: "Nada mais original, nada mais próprio do que nutrir-se dos outros. Mas é preciso digeri-los. O leão é feito de carneiro assimilado".

Dos beiços antropófagos ao bispo Sardinha: o banquete antropofágico vinha sendo preparado por vários cozinheiros em latitudes as mais diversas. Comer, digerir, nutrir-se: verbos onipresentes na sintaxe dos anos 20 e que tentavam definir uma forma renovada de relacionamento com o diferente, com a alteridade.

Muitos são os exemplos, mas o importante é salientar a abstração alcançada por Oswald na perfeita fórmula: "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago". Ou seja, os criadores europeus forneceram a matéria-prima: a reinvenção metafórica do canibalismo. Por sua vez, Oswald processou os dados brutos e os sintetizou numa teoria cultural: a antropofagia.

Assim, enquanto boa parte dos artistas europeus somente intuía a dimensão do dilema causado pela Primeira Guerra e pelo advento das sociedades capitalistas modernas, Oswald processou suas impressões, respondendo com a sistematização contida no "Manifesto Antropófago", posteriormente ampliada em textos da década de 50, com destaque para "A Crise da Filosofia Messiânica. Eis a "novidade" oswaldiana: a inversão do modelo das trocas culturais. É por isso que apenas desnacionalizando e desoswaldianizando o "Manifesto Antropófago" faremos justiça à sua complexidade. Entenda-se, contudo, o alcance da proposta. Não se trata de desqualificar a obra de Oswald de Andrade, mas de recuperar sua potência, numa autêntica história literária antropofágica. Em tal história, a "angústia da influência" daria lugar à "produtividade da influência", pois o inventor se consideraria tanto mais forte quanto mais célebres suas "influências" se revelarem.

Portanto, com o "Manifesto Antropófago", Oswald deu sentido teórico à irônica proposta de uma poesia de exportação na forma de uma experiência teórica renovada e cada dia mais atual nas circunstâncias do mundo globalizado. Ora, se o grande dilema contemporâneo é inventar uma imaginação teórica capaz de processar a vertigem de dados recebidos ininterruptamente, então, a antropofagia oswaldiana bem pode mesmo tornar-se uma teoria de exportação.

Por isso, a atualidade de Oswald reside na arte de transformar o lema de Rimbaud ["Je est un autre"] numa renovada forma de compreender tanto a dinâmica do pensamento quanto o ato de criação. Recorde-se, para concluir, a observação de Caetano Veloso: "Na verdade, são poucos os momentos na nossa história cultural que estão à altura da visão oswaldiana. Tal como eu vejo, ela é antes uma decisão de rigor do que uma panaceia para resolver o problema da identidade do Brasil". Afinal, compreendida enquanto essência, a identidade do Brasil recorda o célebre verso de Carlos Drummond de Andrade: "Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?"

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João Cezar de Castro Rocha, um dos autores convidados da Flip-2011, é professor de literatura da Uerj e organizador de "Antropofagia Hoje? Oswald de Andrade em Cena" (Editora É), que será lançado em Paraty. Este artigo é um trecho da introdução do livro.

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Fonte: Valor Econômico