O Alvorecer da Odisséia, um nome de código talvez dos mais acertados em relação aos seus alvos, iniciou-se à tarde de sábado 19 do mês passado e, até o presente momento, a única certeza absoluta é que ninguém sabe como exatamente está evoluindo, como avançará e, sequer, naturalmente, como e quando será concluído.

Os sucessivos adiamentos com relação a tomada de decisão nos âmbitos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a falta de "briefing diário comum" sobre a evolução das operações militares (algo ao qual estávamos habituados até hoje pelas forças imperialistas quando buscavam cultivar a sensação de "aliança"), a falta mesmo de uma "língua" comum em nível diplomático para os veículos de comunicação, com exceção do conhecido refrão sobre "objetivos humanitários", provaram desde o início que esta jogada militar – a Operação Alvorecer da Odisséia – era diferente das análogas do passado.

Trata-se de uma operação de guerra que foi organizada e está sendo executada com fundamentos formulando a descoberto os vários interesses imperialistas e periféricos, os antagonismos e as antíteses. O único elemento em si da operação – como pelo menos parece até hoje – foi a necessidade impositiva de cada um dos "aliados", por motivos diferentes, do atendimento destes interesses.

Os países da África do Norte (Magreb), do Grande Oriente Médio e do Golfo Pérsico controlam mais de 60% das reservas energéticas mundiais (petróleo e gás natural). Já há anos encontra-se em evolução uma escalada endoimperialista, cada vez mais recrudescente, para o controle destas reservas energéticas e seus dutos.

A disputa se agrava ainda mais pela emersão de potências que consomem mais energia, como por exemplo a China, que controla oleodutos e gasodutos, como por exemplo a Rússia, e potências com crescimento econômico ininterrupto, como por exemplo Brasil e Índia.

"Contos da carochinha"

Ninguém mais acredita na "história da carochinha" de que a invasão e ocupação do Afeganistão tinha como alvo prender Osama bin Laden e muito menos que a invasão e ocupação do Iraque tinha como alvo a eliminação das armas de destruição de massa, que, conforme comprovou-se, jamais existiram no Iraque.

Considerando que a Líbia classifica-se na nona posição mundialmente, com reservas comprovadas de petróleo de 43,6 bilhões de barris e com 1.500 bilhões de metros cúbicos da gás natural, e considerando que o volume de petróleo exportado, em sua esmagadora maioria (cerca de 80%), destina-se ao mercado europeu, e que é de ótima qualidade, que registra ganhos gigantescos, porque seu custo de extração é reduzido, torna-se óbvio por que jamais deixou de fazer parte – por bem ou por mal – dos planos dos imperialistas ex-colonizadores. E a tudo isso deverão ser somadas algumas outras características.

Igualmente valiosas para toda a região são as comprovadas reservas de água potável, em poços de dezenas de anos, sob as areias do deserto do Sul da Líbia, na bacia do Sudeste de Kufra, poços estes que o regime de Kadafi, em colaboração com empresas norte-americanas, já desde a década de 1980, busca explorar por intermédio de uma gigantesca obra – que neste momento está quase concluída – e já transportou água ao litoral do golfo de Sirt.

Além disso, a Líbia faz fronteira com países como Argélia, Tunísia, Egito, Niger e Chad. O continente africano – em seu total – constitui um campo de conflitos de primeira categoria e desfechar ataque contra a Líbia nada mais é do que o motivo que as potências imperialistas e periféricas buscavam para iniciar a desenrolar o fio de derrubada da situação que tem sido conformada hoje no Continente Africano (definição de novas fronteiras e outros).

"Modernização" petrolífera

Tanto a britânica British Petroleum (BP), quanto a francesa Total haviam (a primeira em 2007, a segunda em 2009) garantido contratos de longo prazo para exploração da riqueza energética da Líbia. Contratos análogos possuíam também a italiana ENI, a espanhola Repsol, as norte-americanas Exxon Mobil, Chevron, Ocidental Petroleum, Hess e Conoco Philips, a chinesa China National Petroleum Corp. (que absorve 11% do petróleo da Líbia) e a alemã RW DIA E.

Entretanto, nos últimos tempos, ao que tudo indica, o regime de Kadafi evoluía em busca de alianças novas, diferentes, com potências imperialistas em ascensão. De acordo com o jornal Times os Asia, em entrevista à televisão alemã, Kadafi havia afirmado que os "contratos de exploração de petróleo irão para as mãos de empresas russas, chinesas e indianas".

Isto é, nada casual, os países do Bric, assim como é nada casual que quatro das cinco abstenções no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) foram votadas por estes países (Brasil, Rússia, Índia e China). Simultaneamente, Kadafi formulava novos acordos com as grandes empresas petrolíferas norte-americanas e européias, reduzindo-lhes a comissão sobre o petróleo que extraíssem.

Após estes desdobramentos, torna-se facilmente compreensível o motivo pelo qual norte-americanos, franceses e britânicos assumiram diretamente o papel de liderança na "intervenção humanitária".

Apressaram-se para defender os interesses de suas grandes empresas petrolíferas, que estão sendo diretamente ameaçadas, considerando que Kadafi ameaçou, de forma mais direta, romper os contratos que havia formalizado com as grandes empresas norte-americanas e européias. Mas não ameaçou a chinesa China National Petroleum Corp. Os dados, então, já haviam sido lançados.

Sobrevivência à crise

A guinada de 180 graus de específicas lideranças contra o regime de Kadafi constitui, talvez, a melhor prova não só do hipócrita interesse humanitário dos EUA, França e Grã-Bretanha, mas, também, do agravamento das antíteses imperialistas, enquanto cada vez mais recrudesce a crise econômica capitalista.

Sabe-se que sob a maior pressão encontra-se o capital francês, o qual, além de sua crise dentro da França, que claramente busca exportar, tem recebido sucessivos bofetões nos últimos tempos. Foi obrigado a aceitar as condições do capital alemão em seu projeto para a União Européia com os países do Mar Mediterrâneo, não pode competir com o imperialismo norte-americano, perdeu seus apoios na África do Norte, menos Líbia, e é ameaçado por potências emergentes como Índia e China, na África Subsaariana, onde já estão os EUA.

Em posição análoga encontra-se o capital britânico, com o primeiro-ministro, David Cameron, tendo formalizado, pouco depois de sua eleição, um acordo de "estreita colaboração militar" com a França, trazendo assim de volta, pela primeira vez depois da Segunda Guerra Mundial, a aliança franco-britânica ao proscênio.

Uma "aliança" que havia aparecido pela última vez por ocasião da crise do Canal de Suez, para ser depois obrigada a retirar-se do Grande Oriente Médio pelos EUA, os quais, desde então, controlam a região, e pretendem continuar controlando.

Finalmente, para muitos, a em baixo tom – pelo menos em nível diplomático – postura dos EUA é a mais reveladora de toda a situação. É óbvio que o governo de Washington, além de interesses, tem também interlocutores no "campo de Kadafi". Naturalmente, o imperialismo norte-americano não permaneceria um simples espectador em uma "intervenção" (leia-se invasão e ocupação) que pode representar a chance de abertura aos seus interesses do total do Mundo Árabe e ao Continente Africano.

A intervenção (leia-se invasão e ocupação) na Líbia é apenas o primeiro episódio de uma aventura que apenas começou, com os povos do Grande Oriente Médio a pagar com seu sangue a odisséia da satisfação dos interesses dos monopólios ocidentais.

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Fonte: Monitor Mercantil