Na época, embora não fosse pai e, portanto, sem ainda conseguir mensurar a real dimensão do significado das palavras daquela mãe cinco vezes morta em vida, fui marcado a ferro e fogo por elas. Participava junto com meu irmão Leandro de uma brigada de solidariedade colhendo café nas montanhas do Norte, próximo à fronteira com Honduras, em 1987. Passamos dois meses no país de Sandino, Carlos Fonseca e Ruben Darío. Os braços que faltavam para a agricultura encontravam-se mobilizados para deter a invasão. Então, jovens de todo o mundo foram estender suas mãos.

Enquanto isso, no Brasil, a Veja e outros veículos privados divulgavam que tínhamos ido ser “carne de canhão”. Isso fez com que uma das avós passasse de cama todo o período em que estivemos na Nicarágua. Tomada de horror com tudo o que lia e ouvia pela rádio e televisão, por jornais e revistas, vó Tina procurava ajudar à distância, com caprichadas rezas com as quais evocava proteção aos netos e seus companheiros. Na época, houve um brigadista idiota que voltou falando asneiras, passando a receber, imediatamente, todos os holofotes possíveis e imagináveis dados aos “revolucionários” arrependidos. A nós era reservado o silêncio. Obviamente, nenhuma palavra sobre o processo de erradicação do analfabetismo e das tantas conquistas sociais da revolução sandinista, nem dos mutilados e assassinados pelas bombas e sabotagens da intervenção ianque.

Nem da luta pela superação da miséria a que o país havia sido submetida por décadas de ditadura da família Somoza, aliada fiel dos EUA na América Central. Até o dinheiro da ajuda humanitária para as vítimas do terremoto de 1972, que não deixou prédio em pé na capital, Manágua, o “presidente” deposto, Anastácio Somoza Debayle, levou para o Paraguai no seu exílio, onde foi recebido pelo também ditador pró-EUA Alfredo Stroessener e devidamente justiçado com um bazucaço. Para o governo dos EUA e sua mídia, os contras eram os “combatentes da liberdade”; nós, “os mercenários”. Em visita à Palestina, em 2000, lembro dos soldados israelenses e das centenas de crianças árabes vitimadas por suas balas de aço revestidas com borracha.

O objetivo não era matar, mas “apenas” cegar, mandando um recado para que os jovens e suas famílias não participassem do levante popular, a Intifada. Para que não ousassem levantar a mão nem atirar pedras contra a “incursão” dos tanques nos territórios ocupados. Lembro de crianças com vendas no olho alvejado, erguendo cartazes de Yasser Arafat e ostentando, orgulhosas, a bandeira da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). No mesmo hospital, com o pai ao lado do leito, um menino me mostrava em Gaza seu braço dilacerado pelas balas de fuzil dos invasores. Com o outro braço, erguido, a pequena criança fazia o “V” da vitória, confiante no dia que está por vir. Roubo de mais de 80% da água, assalto às terras palestinas, a ocupação se alastrando como um câncer… Tudo ao alcance da vista, palpável, mas distante – longe mesmo -, das cadeias internacionais de rádio e televisão.

Ainda hoje, os canais pelos quais nossa população é intoxicada cotidianamente reproduzem seriados estadunidenses relacionando os que vestem a kafia, o lenço árabe, com terroristas sanguinários e insensíveis que se explodem por aí E o governo dos EUA continua despejando bilhões de dólares para manter o seu país filial, incrustrado no Oriente Médio. Desta forma fica fácil você saber por que não vê imagens dos campos de refugiados ou do gigantesco muro do apartheid de Israel, construído pela mesma multinacional que ergueu o muro que segrega os mexicanos? Quantas vezes você viu a devastação de oliveiras centenárias ou a derrubada de casas palestinas em Jerusalém? O mundo real não passa na telinha. Até o momento, a intervenção militar estadunidense no Iraque já custou mais de um milhão de vidas.

O despejo de urânio depletado em Faluja, um dos berços da resistência, foi um verdadeiro crime contra a Humanidade, onde a contaminação supera a de Hiroshima, e as crianças – aquelas que conseguem vir ao mundo sem duas cabeças ou outras aberrações – continuam nascendo deformadas. Um verdadeiro circo de horrores, vítimas de um genocídio que os conglomerados de mídia servis ao império, à indústria armamentista e às empresas petrolíferas, se esmera em acobertar. O bombardeio “cirúrgico” a um dos imensos abrigos de Bagdá, onde morreram mais de três centenas de mulheres, idosos e crianças, ilustra até onde pode chegar a prepotência dos EUA. Mas bem poucas linhas foram publicadas a respeito. Imagem? Não lembro de ter visto divulgadas pelos cúmplices da invasão.

O governo estadunidense alegou que embora houvesse uma gigantesca sinalização do Crescente Vermelho – a Cruz Vermelha do Oriente – e de que, portanto, o alvo era um abrigo, jamais poderia confiar em Saddam Hussein, que ”possuía armas de destruição em massa e as poderia estar escondendo ali”. O fúnebre local foi transformado posteriormente em museu anti-imperialista. Meu irmão Luciano relatou o que viu durante uma visita de solidariedade contra a agressão de Bush pai: entre tantos corpos incinerados colados à parede, uma mãe segurando um bebê. Era como se os mais de trezentos cadáveres falassem, mas nem assim conseguiram romper o silêncio sepulcral das redações. E por sede de sangue e petróleo das grandes corporações, uma das nações mais promissoras do Oriente Médio foi reduzida a escombros e cinzas.

Além do custo em vidas humanas, a natureza também agoniza. Os rios Tigre e Eufrates foram contaminados pelo derramamento de petróleo, transformados em “esgoto a céu aberto”. Mas, para os que se crêem donos da verdade e da última palavra, este é um drama menor, que diz respeito a um país já invadido, uma carta fora do baralho, que já não merece atenção da mídia venal. A Resistência continua.Agora a campanha de demonização chega a Líbia, contra Muamar Kadafi, pintado e deformado com photoshop na capa da Veja, como o “bandido”, “terrorista” e todos os demais qualificativos utilizados pelos barões da mídia para os que não rezam na sua cartilha. Os mesmos meios de comunicação que calaram e continuam sem dizer um pio sobre o assassinato da filha de Kadafi durante o bombardeio dos EUA a Trípoli em 1986, da vergonhosa impunidade deste e de outros crimes cometidos – e assumidos com pompa – pelos sucessivos governos estadunidenses, passados 25 anos.

O silêncio se expande sobre os avanços conquistados pelo governo líbio nos serviços públicos e gratuitos de educação e saúde, na elevação da renda e de um salário mínimo que supera em muito os do Brasil e da Argentina, como bem lembra o amigo Beto Almeida. Mas, fazendo tábua rasa do real, as primeiras “informações” das agências noticiosas internacionais – todas de rabo preso com o império – falaram de “bombardeios contra civis” e “revolta popular” por “liberdade” nas ruas de Trípoli. Assim que ganharam a rede tais “notícias”, o embaixador do Brasil no país, George Ney de Souza Fernandes, informou que “não houve bombardeio sobre Trípoli. Isso foi um bombardeio noticioso da Al-Jazeera”. A mesma Al-Jazeera que à la CNN está em campanha pela volta da monarquia ao país, entrevistando um príncipe e outros democratas de latrina. Monitorando a região com satélites super sofisticados, a inteligência militar russa também negou a ocorrência dos tais bombardeios: “não foram detectados”.

Daí a importância da Telesul estar presente, para informar – e não para deformar – os fatos. E de existirem governos, como o venezuelano, que não se deixam intimidar pelo tom monocórdico da campanha pró-invasão. O próprio presidente Chávez bem sabe, porque o sentiu na pele, como se constrói o processo de satanização. Nas ruas de Caracas, atiradores de elite da CIA e da direita venezuelana abriram fogo contra manifestantes oposicionistas, gente que caiu no conto do vigário e marchava próxima ao Palácio de Miraflores contra Chávez. Foram fulminados com tiros na nuca, para que a conta dos assassinatos fosse paga pelo presidente. As redes privadas ecoaram a posição da direita de que “"Chávez foi quem ordenou disparar contra a multidão". Felizmente, câmaras de televisão capturaram a origem dos disparos e um excelente filme desnudou a trama: “A revolução não será televisionada”.

Na Bolívia, igualmente, os EUA tentaram secessionar a região de Beni, Santa Cruz e Tarija, até que o seu embaixador, Philip Goldberg, que já havia atuado na fragmentação da Iugoslávia, fosse expulso do país. A bandeira desfraldada pelos oposicionistas tinha a suástica nazista.

Em Cuba, onde o criminoso bloqueio continua afetando a vida de milhões de pessoas, quantas frustradas vezes a CIA, o Pentágono e seus indigentes espiões tentaram, comprovadamente e sem disfarces, assassinar a Fidel Castro?

Como bem apontou o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, “nestes dias em que tanto se fala de bombardeios, que o exército da Líbia está disparando seus canhões, tanques, artilharia contra o povo da Líbia, nenhum desses meios que querem a derrocada de Kadafi têm conseguido apresentar uma única foto de aviões bombardeando o povo, nem tanques, nem soldados metralhando. A mídia repete que o povo líbio está sendo bombardeado, mas, o que sabemos, porque vemos, é que têm sido bombardeados os povos do Iraque e do Afeganistão. Sabemos porque vemos, que é bombardeado o povo palestino na Faixa de Gaza. Na Líbia vemos um povo resistindo com o líder da revolução, Kadafi, à frente”. Ortega também conhece de perto as tramas estadunidenses, que tentaram dividir a Nicarágua com a fundação de um “território livre”, na área próxima ao Pacífico, a Miskitia, onde habitam os índios misquitos, que chegaram a ser cooptados inicialmente pela propaganda da contrarrevolução.

Há mais de dois mil e quinhentos anos, Esopo deixou como ensinamento em uma de suas fábulas que “a infelicidade de uns é fonte de sabedoria para outros”. Engane-se quem quiser, alertou recentemente Fidel, o objetivo da campanha de agressão à Líbia é claro e único: o assalto às riquezas petrolíferas do país.A verdade da Líbia não fala – nem nunca falará – pela boca da mídia venal.

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Jornalista da Hora do Povo e membro do Centro de Estudos de Mídia Barão de Itararé